30.10.10

No Fio da Navalha


- "Eu aqui vejo", e começa a história e a escalada no seu entusiasmo que faz dele o solitário menos visitado da cidade.
O silêncio de não se ouvir a falar faz-lhe bem, pensa ele, apura o timbre para a primeira palavra quando ela tiver de ser dita e diz:

Eu aqui vejo: um rapaz de costas, sentado num cadeirão, a ler. À frente dele, de perfil está um homem que também lê. Ele é o neto do homem. Lê o Record, muito direito e desatento, displicente. O outro foi um caso sério, sobretudo para si próprio, agora é um caso de séria preocupação para os pais do miúdo que lê o que não acontece ao seu Sporting.



O avô lê a Flama, encosta cada página aos olhos semi cerrados e procura nelas o anuncio da Retrosaria que teve na Praça da Figueira. Chamava-se “O Fio da Navalha”, como uma música que ouvira uma vez na rádio, pouco antes do sócio morrer e de ter comprado a quota à viúva. Na altura a loja chamava-se o Fio de Ouro.


Procura o anúncio há muito tempo. Empilhou na mesa a colecção das Flamas que existem na Biblioteca da Casa do Alentejo, nas Portas de Santo Antão que prolongavam as tardes depois da Praça da Figueira e antes da descida ao amargo doce Cais do Sodré.


Procura o anúncio há muito tempo. Desde que a sua amiga Rosinha se riu quando ele lhe disse que tinha tido em tempos uma retrosaria.


O neto está ali para que o “louco do velho”, como lhe chama a sua mãe, não o vá gastar todo sabe-se lá onde. O avô às vezes desaparecia, dias seguidos. Eles passaram então a pensar num lar, mas a casa onde viviam era dele e não era assim, não podia ser assim, dizia-lhe o pai do miúdo, o filho falhado do avô que encontrara finalmente o anúncio.


“O Fio de Ouro informa os seus prezados fregueses e freguesas que doravante adoptará a firma comercial de Fio da Navalha, com nova gerência e a mesma continuada vontade de Vos servir cada dia melhor”.


O morcão do neto continua ali. O avô diz-lhe que tem de ir aos serviços, o rapaz não lhe responde, nem desvia o olhar da linha onde destá encalhado.


Leva a revista debaixo do braço, escadas a baixo, apoia-se no corrimão para que cada passo seja suave e sente o gozo da fuga, o mesmo que conhece desde que em miúdo fugia de manhã para o rio.


Está na rua e é leve o passo. Repara nisso, sabe porquê. Como pode viver sem isto? E vai agora ainda mais depressa até às casas de banho do Matim Moniz, onde está a Rosinha sentada num banco verde, a fazer renda branca por cima da bata rosa.


“Torrãozinho”! – aqui tens a prova provada. Retrosaria Fio da Navalha.


Oh, o meu treco treco, malandreco veio-me visitar! Ela pega-lhe na revista sem se levantar e sorri da doidice daquele homem que nunca lhe tinha falado daquilo e "ohs" anos que o conhece.


Conhece-o do tempo em que ele a ia buscar ao barzinho no Cais do Sodré onde guardava casacos e vendia cigarros postais, ali perto do Califórnia. Ele ia sempre rente ao final da hora e ficava ali entretido a bebericar até que ela lhe dava o sinal, vestindo o casado de malha que ele, levantando-se, ajudava a compor dizendo sempre a mesma coisa: “a madama consente que a acompanhe a casa?”.


- Então é mesmo verdade sim senhor Treco.


Passaram a tarde a rir e a olhar para quem de vez em quando entrava lá nas sentinas do Martim Moniz.


Quando acabou a tarde, ele pediu-lhe para a acompanhar e foram os dois de braço dado, orgulhosos um do outro, caminhando vagarosamente até Alfama.


Há muito tempo que ele não a trazia a casa. Era cada vez mais difícil conseguir andar sozinho por causa daquela gente.


Quando chegaram ela foi buscar as cadeiras de lona que punha à porta para ali ficar. Fez sopa e comeram ali sentados.


- Porque é que nunca casámos Rosinha?


- Porque tu sempre gostaste muito de viver no Fio da Navalha."

Ele continua a olhar para o desenho (o que está debaixo), segura-o na mão. Ela diz que tem de se ir embora. Ele não lhe responde, mas levanta-se para a acompanhar à porta enquanto canta: "Tu és completa e perfeita; ela não é sequer parfeira. Tu pôes-me à noite a sonhar; Ela tem an(g)ústia no lhar. Tu és do tipo cerebral; Ela é apenas emocional. Entre ficar e partir, nem sempre é fácil decidir. O Fio da Navalha, O Fio da Navalha" ( a versão original pode ser ouvida aqui).

26.10.10

O Prazer da Leitura

(Por causa de um livrinho de Marcel Proust: "O Prazer da Leitura" - clicar na imagem para a ver maior)

ALFREDO HÉRVIAS MENDIZÁBAL

Morreu o Alfredo



Como é que se escreve sobre a morte do Alfredo sem sentir a batota de lhe sobreviver?
Não é que queira morrer por solidariedade, mas alguém como o Alfredo que era tanto e que constantemente submergia das suas caminhadas com o espectáculo humano de quem “vive para a viver e para a contar”, não nos pode anteceder na morte sem que deixe um sentimento de que a vida ficou mais pobre, de que ficámos com menos para viver.
A memória sofreu, desde que ontem soube da notícia, uma mutação que tornou o Alfredo muito nítido: o sorriso dele - que como todos os grandes sorrisos começava no olhar - está nítido demais, está aqui enquanto escrevo, eu sou um pouco desse sorriso agora, mas ainda não me sei habituar a ele. Precisava de ser o Alfredo para lhe sorrir também porque nunca conheci ninguém que melhor celebrasse a alegria de estar vivo que o Alfredo. Vou tentar!

25.10.10

Desenhos do 1º Fim de Semana de Outono

A música é de Wim Mertens que vai cá estar em Lisboa, no CCB, no próximo 6 de Novembro. Recordo-me de o ouvir num tijolo que punha no banco de trás do 2 CV quando regressava de Coimbra a Lisboa (k7s e pilhas grandes, com mais seis de reserva para mudar em Pombal, durante a tigelada de ovos), nessa altura chamava-se "Soft Veredict".

6.10.10

Vácuo


quando eu me for embora
faz como se eu nunca tivesse estado
limpa, por favor, as migalhas da despedida,
para debaixo do sofá de há pouco não,
para o vácuo
para o vácuo, mas no sentido oposto ao vácuo para onde me fui.