4.10.23

O JOALHEIRO (The Jewller – Tom Rapp / Pearls Before Pigs – by This Mortal Coil)

Conheci um joalheiro a quem esta canção poderia ter sido dedicada. O seu nome é Frederic Zaavy (9-10-1964 – 15-09-2011) e conheci-o durante a Exposição “Alba Atroz, no Príncipe Real. Jantámos depois, em Agosto de 2010 na Comporta, num jantar inesquecível, como o são todas as despedidas conscientes. O próximo painel que vou pintar ser- lhe-à dedicado, como teria sido certamente a canção “The Jeweller, caso esse outro génio (Tom Rapp dos Pearls Before Pigs) o tivesse conhecido: A Frederic Zaavy - joalheiro a quem a casa Fabergé encomendou a mais fantástica colecção de jóias produzida pelo milagre que somos e a que agora, depreciativamente, nos referimos como “humanidade”
THE JEWELLER A canção acompanha-me desde meados dos anos 80 e fez parte do som da brisa que subindo desde o Mondego, entrava pela janela do quarto da Dias da Silva (um quarto que foi o meu melhor lugar de sempre. Tinha um guarda fatos, uma cama, uma mesa de cabeceira uma mesa e uma estante para livros e uma pequena televisão, outrora de um carro, a preto e branco. Acrescentei à janela um pano cor de laranja, duplo lençol de lona envelhecida. Com ele o interior do quarto ficava com a melhor luz em que vivi. Comprei também um púcaro para aquecer o leite e uma enorme chávena de porcelana. Foi numas das ruas da Baixa de Coimbra, uma daquelas de estreiteza medieval que vão dar à igreja de Santiago. É uma das minhas canções do fundo do pensamento, quase desde que a ouvi pela primeira vez (1986). (Depois de comprar a chávena, juntei dinheiro para comprar um “tijolo” da Sony com dois leitores de cassetes. Comprei-o na loja da Singer que existia na Rua da Sofia. Gravava as cassetes com método e disciplina. A cassete pirata dos This Mortal Coil creio que me foi emprestada pelo Américo da Rádio Livre. Era um dos maiores rebeldes de Coimbra, com nariz entre o de um boxeur e o do Depardieu, um olhar sempre divertido e um sobretudo como o meu, amarrotado, diário, cinzento de flanela espessa e toque de Cachemira - tinha também uma namorada linda, saída do filme da “Diva e os Gangsters” ou do “La Lune dans Le Caniveau” que então passou no Teatro Académico Gil Vicente, num dos ciclos que mensalmente dedicava a um realizador, escolhido pelo Manuel Guerra, nesse mês e ano - 1986 - Jean-Jacques Beineix - creio que se chamava Laura e enchia o Tropical do perfume negro/fatal da Nouvelle Vague dos futuristas que sempre de negro encenavam e coreografavam os lugares das mesmas atmosferas do Joy Division; Cocteu Twins / This Mortal Coil; Smiths; algumas músicas dos Sétima (Legião); duas dos Heróis do Mar e várias dos GNR]). Comprei a edição em CD na loja dos “discos/tesouro” que existia na Travessa que havia na Travessa da Queimada, que fazia esquina com as águas furtadas da Rua Diário de Notícias, a rua da minha primeira casa depois daquele quarto de Coimbra. Também aí a luz era especialmente luminosa, filtrada pelo espelho do Tejo e ligeiramente colorida de uma réstia do outro laranja, vinda dos reflexos das telhas, sobretudo nos dias de calor, quando o sol estava obliquo a elas. A canção, por sua vez era sombria, mas aconchegava como o meu sobretudo de Coimbra, especialmente nas manhãs em que ia para a faculdade pelo Jardim Botânico e levava os “head-phones”, da Toshiba que o meu pai trouxera um dia do Japão (1979!) e que tinham umas esponjas também cor de laranja para não magoarem ou ouvidos (música que se cruzava com os Joy Division e com o Wim Mertens e com Mahler - o Schubert veio muito mais tarde). A canção foi escrita por Tom Rapp fundador de uma banda chamada “Pearls Before Pigs”, numa óbvia referência à passagem de onde vem a expressão “dar pérolas a porcos” [Sermão da Montanha no Novo Testamento da Bíblia / Mateus 7:6 : Não dês aos cães o que é sagrado, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas; para que não as espezinhem e, voltando-se, vos despedacem.] Interrompo-me várias vezes e ainda não escrevi o que me fez começar a escrever. Vim aqui para agradecer. Agradecer o momento que vivi no passado Domingo dia 1 de Outubro, por ocasião da colocação dos painéis no tapume a meio da Rua Direita. Agradecer a todos os que vieram: Ao Jaime Couto, afilhado da minha Avó Olga, que veio com o seu neto Raúl; ao Manuel Lobo (Garcia da Selva) e à sua pincepezinha Ema, ao Sr. Jorge (Duque de Caminha) e Diva do Olimpo Culinário que foi durante anos o Restaurante Duque de Caminha; ao Chico do After Eight, guardião e testemunha viva do melhor deste quarteirão e da sua possibilidade; à Nettie Burnete, inspirada e inspiradora presença, igualmente joalheira deste quarteirão, à Minda, Daniel, Vanessa e Núria, vizinhos e amigos da Alminha de Gondarém, que continuam o luxo da boa vizinhança há mais de cinco gerações, à Filipa e ao Sebastião, Arquitectos que têm Caminha no coração e na mão que risca, ao gentil Galego anónimo que vindo de Orense aqui passou, ao Amândio que fez o favor de me aturar mais uma vez, alimentando-me o ego e o estômago, ao Prof. Paulo Bento a aos seus doze alunos / discípulos que fizeram também o favor de me ouvir, assim como o Prof. Miguel Gonçalves, Presidente da Junta de Freguesia de Matriz e Vilarelho, que coincidiu com essa visita e pacientemente deixou que eu falasse, demais, como é timbre; à D. Fernanda (“Fifi”) nos tempos do João Ratão, por se ter deixado fotografar a cada vez (e foram três) as vezes que coloquei os painéis na rua. Devo porém um agradecimento muito especial a duas pessoas: Ao Sr. Manuel Ferreira que desde as primeiras “instalações” que fui fazendo ao longo destes anos, sempre me acompanhou, fazendo que o milagre que foi cada um desses momentos, acontecesse. Nada teria feito sem a sua força e empenho. Desde o dia 10 de Junho de 2017 (“Mil Anos de Solidão”), passando pela exposição na Ilha dos Amores (“a nous amours” – Agosto de 2021) até à viagem e colocação dos painéis no Mercado do Bolhão, 2022, o Sr. Manuel tem sido a Alminha física da Alminha e sem ele nada disto tinha sido possível. A última “instalação”, aquela que fiz no passado dia 1 de Outubro é também obra sua. Para além do Sr. Manuel tenho de agradecer ao Paulo Tude autor da fotografia que desencadeou este arrazoado. Olho para a fotografia que o Paulo Tude tirou e fez.me o favor de enviar e revejo-me totalmente, é o melhor retrato que me fizeram e vejo-a logo com aquela canção de fundo. Curiosamente o Paulo fotografou-me em 2013, quando a ideia da Alminha começou a ganhar “corpo” e posteriormente, já na Alminha em Caminha, a fotografia que se encontra a seis publicações desta – e que se vê logo que é dele. O Paulo Tude publica as suas fotografias no Instagram. Eu sempre gostei das imagens que os fotógrafos nos dão. Sempre gostei de olhar pelo olhar dos outros e o Paulo tem um olhar igual ao da canção de Tom Rudd, do genial Tom Rudd, como genial foi Frederic Zaavy e o Paulo Tude! Finalmente devo o maior obrigado de todos a quem verdadeiramente me desculpa o indesculpável - o capricho de continuar a pintar: a minha querida mulher, que se assina “Mar”! Interrompo novamente a revisão do que escrevi. A grua que se vê na fotografia do Paulo, vai embora. Vejo que o chefe da obra já está no fim da rua. Recolho os postais e os três painéis em choupo 30/30 (“uma para o Sr. dono da obra, outra para o Sr. empreiteiro e outra para o Sr. encarregado geral da obra”). Já vai no fundo da rua. Tenho de correr para o apanhar. Está a trabalhar, ajuda o camion a fazer a manobra. Diz que depois passará lá. E continua o que está a fazer. Compreendo-o perfeitamente. Pergunto ainda se não posso deixar dentro da carrinha que faz a manobra e insiste que depois passará por lá. Ainda lhe procuro dizer que não saberei se estarei quando passar, mas compreendo perfeitamente, sinceramente. Regresso a casa. Tenho de parar duas vezes porque só de correr aqueles poucos metros me doem as pernas – hesito em culpar a vacina, prefiro continuar a acreditar que me pode ter salvo, ainda que marcado. Vejo o encarregado da Obra. Despede-se dos homens depois de indicar as medidas da próxima cobertura (que isolará apenas a entrada do prédio “até à lage”. Compreendo que será mais uma oportunidade. A de pintar o próximo painel com as medidas que esse novo tapume venha a ter. Comprimento-o da varanda, diz que já aqui passa. Vem ao postigo e passo-lhe as três placas de choupo, os três postais e a “folha de rua” que fiz e entreguei a cada um a quem antes agradeci. A que agora acrescento – e mais vale tarde que nunca – ao dono da obra e responsáveis pela mesma, que desde o primeiro momento acolheram e incentivaram o que acabou por se realizar no passado dia 1 Obrigado! Regresso à revisão do texto e falha-me o tempo e a paciência para a continuar. Alea Jacta Est. Digo nestas alturas, em processo de auto-convencimento face ao complexo da desistência precoce, provavelmente na base de todo o comportamento obsessivo compulsivo que procuro não ter ou, pelo menos, não transparecer. Regresso à varanda e vejo o Sr. Encarregado da obra partir (é de Vila Praia de Âncora e diz-me que a filha veio ver os painéis. Obrigado também, conhecendo os pais de aqui, sei que lhe será entregue o quadrado de choupo o postal e a folha de rua. Quando vou para fechar a janela, sinto um olhar que me faz olhar para trás. É uma pomba, a mesma que ontem entrou e saiu. Olha-me tranquila. Recuo até meio da sala, para lhe desimpedir a saída pela janela. Procuro não assustá-la, mas lembro-me que o voar das pombas é muito mais preciso do que o dospardais e outros pássaris pequeninos. Não tem a precisão do das gaivotas, mas não estando assustadas têm um controlo que lhes permite alcançar a saída, que também identificam melhor que os piscos. Lembro-me da rola que tive encarcerada numa gaiola sobre o guarda-fatos do quarto de há pouco. Salvei-a dos gatos, quando percebi que estando prestes a ser alcançada, no ramo da laranjeira onde pousara, não voara quando atingi com um sapato a copa da árvore, ao contrário dos gatos, que fugiram imediatamente, dando-me tempo para o “resgate” [e desencadeando tudo o que a partir de então se passou: a ida a uma loja de rua paralela à rua da Sofia, onde se vendiam aquelas gaiolas grandes, de madeira e arame, para os pássaros de maior porte. O regresso a pé com a gaiola na mão, porque não queria ocupar o Trólei com um volume tão grande e intrigante nas mãos de um manifesto caloiro. O suplício do acordar ao nascer do sol com o irritantemente trinuante e insinuante arrullhar da rola. Disso tudo me lembro agora que olho a pomba e me recordo dos dias em que experimentei se ela já estava boa da asa. Calaftando os vidros das janelas, com pano preto de feltro que tomara de empréstimo do Círculo de Artes Plásticas, onde então pintava, mesmo em frente ao lugar de onde regressava (Clepsidra). Quanto chegava tarde aprendi a colocar um pano de feltro preto sobre a gaiola. Ao acordar retirava-o. Sincronizava assim os despertares. Confesso que passei a tirar o pano só quando já estava mesmo pronto para sair, abria a janela e virava-a para ela, para que não se desabituasse do céu a que haveria de voltar. Especialmente quando fazia aquele céu que só em Coimbra, de um azul/Portugal dos Pequeninos, azul Raul Lino em aguarela de Roque Gameiro. Fotografo a pomba no seu percurso até à saída e filmo a sua despedida. Regresso à revisão. Os barulhos da obra. Levantam o novo tapume. Volto a ouvir a canção para terminar a revisão. Está longo isto. Vai ultrapassar o limite do texto possível no Instagram (intrigante limitação quando o peso principal é o das imagens. Talvez se fizer um directo e ler o texto possa conseguir depois editar um vídeo publicável, mas não pode ter mais de 60 minutos. Não sei qual o tempo de leitura de uma página. Mas deve ser superior a 1 minuto. Quando estudava sabia que conseguia ler e estudar um máximo de 10 páginas por hora. Dividia assim os dias de estudo pelo número de páginas de cada sebenta (variando a verdadeira média em função do grau de clareza / objectividade e loucura do autor, sendo que as duas primeiras qualidades eram as mais raras, salva excepção total à regra: Prof. Baptista Machado in Direito Internacional). Tradução (traição) da letra: O Joalheiro tem uma oficina na esquina da rua. à noite, com óculos pequenos, ele procura polir velhas moedas. Usa saliva, panos e cinzas. Fá-las brilhar com as cinzas. Ele conhece o poder das cinzas. Ele louva a Deus com cinzas. As moedas frequentemente são antigas quando chegam ao joalheiro. Com sua mão e cinzas, ele tenta o seu melhor. Sabe que apenas pode polir, não reparar os riscos. Sabe que até moedas novas trazem cicatrizes, então simplesmente sorri. Ele conhece o poder das cinzas. Ele louva a Deus com cinzas. Na mais profunda das noites, Ambas as mãos lhe ardem. Frequentemente abrem-se dolorosamente e o sangue escorre por elas. Trabalha para tirar das caras de moedas escuras, as marcas de tantas eras. Desejaria poder curar as cicatrizes. Quando se esquece, por vezes chora. Conhece o poder das cinzas. Ele louva a Deus com cinzas. Ele sabe, Ele sabe. Ele louva a Deus com cinzas.

30.12.22

O tempo é redondo e no entretanto move-se

[Postal da 1ª Alminha / Cerveira, 2014] O tempo é redondo e no entretanto move-se É este o latejar tic-tac, a cada constatação da repetição travestida em novidade, banda sonora deste deja vu/já estive aqui. Sabemos que podem vir outros cometas, sabemos que virão certamente outros glaciares e outros Hitler's ou Stalines e sabemos também que tendo a terra 4.500.000.000 de anos e tendo a espécie humana, Homo sapiens, aparecido há cerca de 300.000, sendo que há cerca de 100.000 anos começamos a enterrar os nossos mortos e a escrever primeiras, tendo as primeiras civilizações humanas de que há notícia surgido há não mais de 10.000 anos. Nesta espécie de milésimo de segundo a que sabe a desproporção entre a nossa idade, enquanto espécie e a idade da terra, aprendemos pelo menos que existe o tempo e que o mesmo é ritmado por ciclos Neste final de ano, saímos dele com a sensação de “já vivi isto tudo”, “já estivemos aqui”. Nesse mesmo momento percebemos que sendo o tempo circular, conseguimos antecipar o que é que se segue a cada repetição constatada, o que é que ela anuncia. Temos a história a dizer-nos isso nos jornais de há cem anos, hoje digitalizados e acessíveis desde qualquer parte do mundo . Se folhearmos os jornais da década de trinta, percebemos que só o decor temporal, a arquitectura dos prédios, das ideias e das palavras, é que mudou. A paisagem de fundo é a mesma, o ruído de fundo é o mesmo. Se continuarmos a folhear qualquer um desses jornais e percorrermos as páginas das décadas seguintes [o que no caso da imprensa francesa se consegue com enorme facilidade, já que há jornais regionais que duraram desde o início do século XX até ao início da II Grande Guerra (altura em que a maior parte deles viu a sua publicação interrompida] estremecemos com o cenário que os eventos agora repetidos antecipam. Medo! A palavra que reprimimos ao antecipar o que os ventos repetidos trazem, começa a estar presente no olhar sobre as coisas. Começamos a ver com o medo a fazer parte do olhar. Procuramos os sinais da confirmação da repetição que encontrámos, como se uma parte de nós quisesse ainda (e muito) negar a realidade intuída. Talvez por isso nos seja tão difícil ver as notícias de hoje e o súbito consenso generalizado, também na gritaria com que nos exprimimos, aquela que julgávamos privativa dos idos tempos dos linchamentos públicos, das denúncias por inimizades antigas, dos excessos das massas bestiais, anónimas e, logo, inimputáveis, imperseguiveis. A força das massas, a força da turba, o motor de História, o degelo da humanidade, cada revolução seria o clímax da luta de classes, transformada em guerra civil. A sucessivos clímaxes estaríamos assim tão condenados como está a humanidade condenada aos ciclos dos glaciares. Estaríamos assim condenados pela natureza das coisas ao inevitável conflito e precariedade. Qualquer paz seria ilusória, não só porque provisória, mas também porque impura, já que nos dias dela cresciam também as sementes daquela luta e dos seus ciclos: Primeiro a conquista, depois o domínio, a que se segue a servidão até ao detonador da revolução: o momento em que se ultrapassado o limite do sacrifício. Aquele momento em que a existência do populus, da população como esse todo colectivo a que chamamos espécie humana deixasse de acreditar na sua viabilidade (incluindo, ou a começar, pela individual). A luta pela sobrevivência, a nossa matriz/bússola animal a revelar-se como magneto no movimento da história da própria terra. Toda ela estaria unida na observância da mesma lei fundamental, lei observada pelo mais elementar neutrino, e pelo mais complexo ser humano, como o foi o recentemente falecido Papa emérito Bento XVI: Permanecer vivo o maior lapso de tempo, dispensando o mínimo de energia. Quando a vida é ameaçada, a espécie humana como que tomaria para si as rédeas do corcel da história, apagando o que tinha falhado e reconstruindo uma nova realidade em que fosse possível experimentar de novo a viabilidade. Tudo isto se passaria ao nível de um inconsciente colectivo, que seria uma nuvem a que estaríamos todos ligados, seja através do ADN seja através de outros aglutinadores colectivos, como a religião, o desporto, as nações, a mesa……… O tsunami histórico a que chamamos populismo é isso mesmo. A força do populus ameaçado está antes daqueles que entre si encontre como os melhores catalisadores para a destruição de mais uma hipótese de sobrevivência que fracassou. A força do populus de cada tempo de revolução. Esse seria o grande turbopropulsor da história, que acelera a entropia, como a onda do tsunami suga a água da beira mar. Seria essa a força que está antes de todos os líderes no seu seio encontrados. Inevitável? Sim, mas do mesmo modo que essa força destrói, também contém já em si as sementes do que há de prevalecer, quando no entretanto o tempo mover-se para uma nova ilusão de viabilidade. Do mesmo modo que toda a paz é precária, também toda a entropia, toda a destruição também o é. Nunca choveu que non escampara”, diz-se na Galiza da frente. À tempestade segue-se a bonança. É curioso como replicamos relativamente à nossa própria história as metáforas do clima, das manifestações do tempo natural. Ora se o que destrói é a descrença colectiva, então o que reconstrói é a crença colectiva, tendo ambas como limite, como fonteira entre a terra da utopia e a terra do realizável, ou do legitimamente sonhável, o slogan americano: “The economy, stupid”. , Ora tanto a descrença, como a crença, implicam uma zona de dúvida. Eu deixei de acreditar, porque já acreditei. Ainda que haja quem possa dizer “eu nunca acreditei”, quem critica, quem destrói, fá-lo (inicialmente) porque acredita na vantagem de o fazer, no sentido que faz esse gesto de dispendio de energia e recursos, ao serviço de um fim maior: o prolongamento da vida. Nessa máxima dos tempos de guerra em que os fins justificam os meios, em última análise prevaleceria a vida, na intencionalidade destrutiva. Ela estaria ao serviço de uma futura paz, que a guerra faz desejar cada vez mais, até que nos encontrássemos dispostos a procurar superar a anterior fasquia do “limite do sacrifício”. O Humano, o espírito humano que sonha e que por isso comandou a vida até aqui. Regressará o tempo da paz, ainda que breve, mas sonhada como a regra e não como a excepção que já não somos. No entanto, o tempo move-se. Tem de se mover para lá da aparente repetição em aparente eterno retorno. Que o diga a nossa mão, que o diga a o aumento paulatino do tempo de esperança de vida, que o diga a ampliação do pensável, do imaginável, como último limiar da realidade que a imaginação antecipa, nos confins da lógica e do indizivel invisivel. Acreditar na humanidade é tarefa cada vez mais difícil nos tempos que correm. Entre o meu tempo de escola e o de agora, a noção que a humanidade tem de si própria alterou-se de um extremo para o seu oposto. Há cinquenta anos apreendiamos que o Homem, através da ciência chegaria a quase-Deus [o “quase” vem da noção de que a própria ideia de Deus exclui a possibilidade de ser igualado], que o mundo seria um lugar cada vez mais agradável para se viver e que estaríamos a caminho da realização dos grandes ideais (também os da Revolução Francesa), através de um continuum de progresso civilizacional em que o centro do mundo era o lugar onde havíamos nascido: a velha Europa. O Estado Social queria-se universal e aí estavam as constinuições Europeias a abrir o caminha para a realização bem-intencionada desse ideal das sociais-democracias europeias, sínteses dos compromissos gerados por um sistema que sempre teve na sua capacidade de se reeinventar, a sua notável capacidede de sobrevivência. Ora, esse movimento para lá da repetição, esse mover-se nos entretantos, é o que nos convence da inevitável esperança como parte da alegria de estar vivo. Vamos melhorando, só posso acreditar nisso, ainda que para lá chegarmos seja necessário passar por estes tempos feios e dos medos que parecem de sempre e para sempre, mas que já não o foram e voltarão a não o ser. Um muito feliz ano novo para todos.

17.12.21

FINGIDOS DO MAR / GALERIA BAR AFTER EIGHT / CAMINHA / DEZEMBRO 2021


 

 

Desde que abri a Oficina da Alminha em Caminha que todos os anos, em Dezembro, fazemos (eu e o Francisco Ramalhosa, feliz proprietário do After Eight - Galeria/Bar) uma exposição com trabalhos da “oficina da Alminha” [“oficina” porque foi sempre o que mais me interessou na pintura: a possibilidade do trabalho de artificie, da sua disciplina e da sua humildade no fazer, sabendo-se um mero instrumento, uma mera caixa ao vento soando, eventualmente bem, e aí: misteriosamente bem; “da”, porque sempre “assinei” os trabalhos feitos nessa oficina com o seu nome, na tradição medieval de não ser a criação coisa individual, mas do lugar; “Alminha” porque a primeira oficina aconteceu em Outubro de 2014, numa casa em Cerveira a que chamávamos “das Alminhas”, por ter um nicho do Senhor dos Passos na sua esquina.].

Todos os anos esta exposição tem-me dado um motivo para orientar a produção da Oficina para essa exposição; organizo o trabalho sistematizo-o e preparo a sua montagem.

Para este ano escolhi a terra dos meus trisavós paternos: Seixas - que é também o lugar que une tantos grandes artífices (com Vilar de Mouros e Lanhelas). Eram famosos os Ferreiros; Serralheiros; Estucadores; Canteiros; Arquitectos (Miguel Ventura Terra); Pintores (o avó do Cruzeiro Seixas era de Seixas; o Pai de António Pedro também era de Seixas, Guilherme Renda era de Seixas; Raul Pérez, meu querido amigo, também poderá ter antepassados em Seixas, o que ainda investigo).

É curiosa esta coincidência de serem de Seixas os supostos melhores “Pintores Fingidores” e depois serem também de Seixas aqueles referidos pintores e o próprio Arq.to Miguel Ventura Terra. Sem “bairrismo” é coisa que intriga. Invocar os “Pintores Fingidores” era - e é - a intenção desta exposição.

Invocar esses artistas que foram todos os outros artífices nas suas artes de aqui (ferreiros, serralheiros, canteiros, estucadores). Verdadeiros Artistas como o era o Tio Antonino Recaredo Cruz, que fez os estuques nos tectos da casa de Gondarém, casa para a qual sempre pintei, como era o avô de Francisco Ramalhosa, Eduardo Sousa, de quem é a autoria do fingido de madeira, executado sobre o louceiro, também de madeira, que está no lado direito da barra do After Eeight, como o foram todos aqueles cuja história e nome foi revelada nos notáveis livros do Prof. Paulo Bento: “Dos Caidores aos Estucadores e Maquetistas Vilamourenses” e  “Ferreiros e Serralheiros de Vilar de Mouros”, ambos disponíveis na Biblioteca de Caminha.

Na anterior exposição procurei mostrar a possibilidade de se extrair do pigmento da “uva tinta” (uvas da casta tintureira Vinhão ou Sousão), um efeito cromático que supera o dos pigmentos que geralmente uso nas aguarelas. Nesta procuro mostrar como a repetição do gesto dos Pintores Fingidores, tem uma beleza que foi sempre o último reduto da minha esperança de não ter feito uma escolha desastrosa quando escolhi ser pintor e deixei de ser advogado: se nenhum valor tiver o que faço, ao menos que tenha o valor do trabalho que está no que faço. Porém, aos poucos fui aprendendo que esse seria o maior predicado a que o meu trabalho poderia aspirar: conter trabalho, conter em si tempo dedicado. Não seria assim: “no pior dos casos”, mas "no melhor dos cenários": O que faço procura conter essa dedicação, praticamente total, ao que me propus fazer a pintar; comunicar-me da melhor maneira que o sei fazer: por imagens. Imagens o mais próximas possível do ambiente marítimo que procuro Fingir, simulando no papel o que de verdade vejo de olhos fechados, como simulando a água com a água com que pinto, como no poema de Fernando Pessoa:

“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.”

Os fingidos eram uma arte de simular materiais nas pinturas de paredes, tectos, portas, armários, etc.. Era a arte dos “Pintores Fingidores”, assim designados nas Bases para Orçamentos para as obras civis, os quais recebiam por jorna 1.500 reis, enquanto que o “vulgar” Pintor de Pincel recebia 700 reis (já o “Pintor Decorador”, nessa mesma Tabela de 1880, recebia à peça e não à jorna, tendo maior liberdade na execução dos trabalhos solicitados).

Terão sido os fingidos de madeira aplicados sobre uma porta também de madeira, em casa de um amigo de Fernando Pessoa, que o terão motivado o poema “Autopsicografia” _ e certamente ao próprio título (a história foi contada por Júlio Pomar e se não for verdade é, pelo menos, muito bem caçada), tal como os fingidos de madeira executados no louceiro do After Eight pelo avô de Francisco Ramalhosa, deram o “clique” para esta exposição.

Quem saberá ainda hoje replicar os fingidos de mármore ou azulejos sobre estuque, ou de madeira sobre madeira, executar os estuques trabalhados, românticos, ora barrocos, ora ingénuos, simples ou como se fossem filigrana, o serpentear do ferro, trabalhado, sem soldaduras, só com rebites? O saber destes Mestres merece mais do que uma homenagem, merece que se pense seriamente se não deveríamos dar-lhe futuro, a bem do presente. Para quando uma escola de Artes e Ofícios (em Caminha ou em Seixas, ou em Vilar de Mouros) que honre este saber que distinguiu durante anos os artistas deste concelho?

Gondarém, 17 de Dezembro de 2021

11.9.21

Y A TI, QUE TE GUSTA EN LA VIDA?

 


D. Rodrigo Uría, fotografia de Marta Robles

O tempo estava encoberto, todas as divisões da casa no Campo Santana onde então vivia davam para a varanda mais bonita da minha memória. Uma varanda com largura suficiente para ter uma mesa para quatro pessoas, poder estar a chover e poder-se comer confortavelmente “à” chuva. De manhã tomava ali o pequeno almoço.

Ouvia a Dolores O'Riordan dos The Cranberries. Era o DVD que ainda estava a dar em loop na televisão, porque no dia anterior a Carolina (então com 4 anos) pedira para pôr “aquele da senhora da música forte”.

A casa tinha aquela suspensão das sombras das folhas praticamente imóveis, a suavidade dos seus movimentos nos tectos e paredes permitiam saber a brisa que fazia, aquela brisa fria que antecede a chuva. 

Tínha acabado de acordar para o dia “D”. Era o dia da viagem a Madrid. O dia em que seria entrevistado por vários sócios da Uria & Menéndez a quem Coloma Armero me recomendara para abrir o escritório que a U.M. acabara de abrir em Lisboa. A mim caberia dar início a um Departamento de Tribunal e, provisoriamente, Laboral (procesal como era assim chamado o Departamento em Espanha). Tinha 37 anos e era uma espécie de chegar ao sonho de trabalhar num escritório com um rigor, disciplina de trabalho, vocação para a excelência que pode existir na profissão de advogado. 

Para mim era como passar a fazer parte da Fórmula 1. 

Antes disso conhecera a possibilidade dessa nobreza na profissão ao trabalhar no gabinete ao lado de Francisco Sá Carneiro (filho do falecido Primeiro Ministro mais saudoso de Portugal) e que foi de longe o advogado mais exemplar dessa possibilidade de auto-superação que pode dar a advocacia quando exercida sob a sua máxima que corria no écran do seu do seu monitor [Try Hard to do it better]. Máxima que depressa inverti para “Try better to do it harder”, dadas as diferenças entre as nossas duas advocacia: a dos negócios e a dos Tribunais. Na dos tribunais a máxima invertida parecia-me mais aplicável, sobretudo na área a que me dediquei desde o estágio - O Direito Penal. 

Há vinte anos, enquanto me preparava para o avião que seria - salvo erro, pelas 11:00 da manhã, vestia-me e poderia muito bem estar a dar o nó à gravata da sorte - uma gravata que tinha representada em pequenos desenhos de um corvo e de uma raposa a dita fábula de La Fontaine, “da sorte” porque era aquela que me fazia lembrar do defeito fatal [nos momentos decisivos] que é a vaidade] 

Telefonaram-me a perguntar se estava a ver a televisão? Liguei e vi as primeiras imagens. Um avião a embater contra uma enorme torre, estilhaçando-se com o realismo das imagens da série de filmes com “Aeroporto” no título. 

Ainda estávamos na incredibilidade das primeiras imagens quando a cena se repete na outra torre. Um silêncio após a exclamação do terror da surpresa: Outro avião… na outra torre. O que era então um pior cenário entre vários emergiu nítido. Notícias da possibilidade de existirem outros aviões com outros alvos. Notícias do eventual risco em que estariam outros alvos como o Pentágono ou a Casa Branca. 

Fui para o aeroporto. Apanhei o avião. Sentei-me e olhei para as nuvens. Foi aí que tive uma imagem: estas nuvens não diziam nada do que estaria a acontecer em baixo, nem permitiam ver a superfície da terra, como aconteceria se estivesse numa capsula espacial. 

O que é que estaria a acontecer lá em baixo? Será que quando o avião aterrar o mundo já não é o mesmo que eu conheço?

Foi um daqueles momentos “clarão” em que o pensamento se ilumina e aparece nas suas sete quintas de tão nítidas que são as perguntas que então se formulam, as hipóteses que se colocam, a vertigem das infinitas possibilidades que o pensamento começa então a desmultiplicar. 

De repente consigo ver “terra”, é imediatamente antes daquela que seria a primeira de muitas aterragens no Aeroporto de Madrid. 

Liguei o telemóvel, confirmei a hora da primeira entrevista, creio que ainda foi antes do almoço e terá sido com uma referência da magistratura Espanhola, entretanto tornado advogado, Carlos Bueren. Um penalista e um enorme pensador das questões centrais do Direito Penal, como a culpa ou a teoria “da culpa da formação da personalidade” para fundamentar a especial punição dos especialmente perigosos com menos livre arbítrio por terem crescido num meio crimonógeno. Questões que então se discutiam ainda num plano de teoria do direito penal, em que a culpa era a pedra angular de toda uma catedral do pensamento “jurídico” humano. Daí à relatividade dos conceitos, como o acabara de experimentar durante a viagem que tinha feito, em que pensara que quando aterrasse o mundo poderia já ser outro. Terá sido assim que terminou a nossa conversa. 

Seguiu-se um almoço num restaurante que existia em frente do escritório, na Calle Jorge Juan. Um restaurante Tailandês (?) com uma decoração entre o filme Casa Blanca e um jardim de Alhandra. Recordo o excesso de verde, até na luz e de não haver entre esse excesso a luz que procurava, a luz de um écran que me dissesse o que teria mais acontecido, desde a última vez que me tinham dito que não acontecera mais nada. 

 Seguiu-se outra conversa com o responsável do Departamento de Procesal, Jesus Penálver. Um advogado de mão cheia, com aquela humildade natural que os torna os mais temíveis, porque acrescentam à defesa do cliente o timbre do seu carácter humilde, sério e enormemente trabalhador. Departamento, gestão do conhecimento. Tecnologias. Era a minha praia preferida nas conversas sobre os escritórios. Sobre as enormes possibilidades dos grandes escritórios na utilização da sua própria experiência acumulada, num sucessivo refinamento dessa mesma experiência e bibliotecas e artigos e constante discussão interna. Tudo o que eu queria ouvir. Finalmente o momento. O momento mais aguardado. A “charla” com D. Rodrigo Uría.

Entrei e dou com um daqueles sorrisos que preenche todo o lugar, sobrepondo-se ao enquadramento. Um daqueles sorrisos que só tem quem já teve muito mundo humano. A um tempo caloroso e desarmante da tranquilidade melancólica de quem já não espera ser surpreendido.

Cumprimentamo-nos. Tinha os dois últimos botões dos três das mangas do casaco fora das respectivas casas. Detalhe dos fatos “à inglesa” feitos em alfaiate. Só me fez uma pergunta. Tirou os óculos olho-me nos olhos e disse: - “Y a ti que te gusta en la vida?”. 

Uf. Podia estar à vontade, mas não à vontadinha (a gravata lembrava os limites). Respondi sem medos, como então se dizia no snooker do bairro alto, antes de uma bola difícil. 

Acabámos a falar de arte e da dificuldade do conceito jurídico que supõe a “criação original do espírito humano” e como nem o original, nem - portanto - a criação (individual) pode ou não existir. 

Pedi-lhe no fim e a propósito do lugar que dera à Mesa no meu enorme monólogo anterior, que me indicasse um restaurante. Disse-me: 

- “Arce” vai ao Arce. Te va a gustar. 

E lá fui. Primeiro para um Hotel NH, tomar um duche, mudar de roupa. Pedi para reservarem uma mesa no tal “Arce” e à hora marcada lá me receberam e sentaram numa mesa sólida com espaço. Toalhas brancas impecáveis. 

Aparece o Chef do Acre. 

Uma enorme pessoa, uma montanha afável e que interrompeu o que estava a fazer para perguntar: “Hambre o Apetito?”.Lembro-me da minha avó a dizer que “fome” era de três dias. Consigo responder só: “es mas apetite”. É então que o Chef atira com “Y a ti que te gusta en la vida”?. 

Respondo. Nova torrente. Nova, tanto quanto possível para não me sentir a repetir a resposta que antes dera a D. Rodrigo. Com mais foco na mesa. Na maior arte de todas que deveria ser a mesa, porque é aquela que mais anos tem de continuado aperfeiçoamento (da culinária aos vinhos às próprias “regras”, etc.). 

O Chef lá se conseguiu desembaraçar de mim e eu voltei ao branco da toalha, ao peso dos pratos, às cintilações dos talheres areados, dos copos terminados de lavar à mão, em água fria. 

Como numca mais me trazem a carta, peço-a. O Chef desaparecera para os seus domínios. Vem o empregado à mesa e diz que não será necessário carta porque o Chef te vai preparar “la cena de tu vida." E foi, foi sem dúvida um dos melhores jantares da minha vida. Talvez um dos últimos jantares antes da vida ter mudado para sempre. Uma espécie de fim de ciclo. Para terminar o chef voltou à mesa e trouxe um café e a “bebida dos piratas”. Foi então que bebi Calvados pela primeira vez. 

Cada vez que voltava a Madrid voltava ao Arce. Por essa razão, um dia, ao despedir-me do Chef lhe tenha dito: - “Ganhaste um cliente para a vida”. Ao que me respondeu “Un cliente no, un amigo. Un amigo desde que me contaste toda tu vida quando te perguntado si te gustava carne o pescado”. Protestei: "Que no! Me as perguntado que me gustava en la vida”. Respondeu-me: “Si. Eso es. Si te gustava carne o pescado. Asi se pergunta". Pensei que fazia todo o sentido. Em especial se perguntado depois de “Hambre o apetito?”.


Hoje, escrevo esta memória em Caminha, onde pinto, num lugar que fui construindo chamado Alminha. Hoje sei que é este o mundo em que aterrei naquele dia. Não é fácil, mas não deixa de ter aquela luz da incrível frase que Adelino Amaro da Costa citava de Mao Tze Tung: “Vai uma grande confusão em terra e no mar, mas a ocasião é excelente.” [frase que se encontra inscrita no chão em frente da actual sede do P.P., ao Largo do Caldas. Profética inscrição.

 

Caminha, 11 de Setembro de 2021 

 



27.6.21

O RIO, A PONTE E O DIA DA AMIZADE GALAICO-MINHOTA

 

Vista da janela sobre o Rio Minho, desde a ante-câmara do Arquivo Diocesano de Tuy/Catedral de Tuy

 

 

 

A Pandemia trouxe para muitos a experiência do regresso das fronteiras. Em Caminha ficámos outra vez separados de Santa Tecla, ainda que o Monte Trega - como lhe chamam os nossos queridos vizinhos - continue a tutelar o nosso horizonte.

Um dos conselhos que repetidamente dou a quem nos visita é o de não deixarem de fazer a travessia do Rio Minho no Ferry Boat Santa Rita de Cássia e de subir ao cume do Monte Santa Tecla.

Só a subida da estrada do Monte, por si só, vale a viagem até àquele cume de onde se alcança uma das vistas mais perturbadoras (de beleza e intensidade) que conheço.

A presença humana antiquíssima emanada dos vários núcleos de Castros (construções circulares em pedra anteriores à era cristã e provavelmente contemporâneas do início desta), completa o insólito daquele lugar único: dominador, marítimo, solar, lunar, vegetal, granítico, enfim: o lugar do Atlântico.

Talvez por isso sinto que Caminha não está completa sem que exista a possibilidade de “dar um salto” a Santa Tecla e, com tempo, descer à Praia do Moinho, jantar no Perro Verde, ou - nos meses estivais - ir a um Furancho, ou - com ainda mais vagar – à Taberna O Lagar en Eiras, regressando então pela Ponte da Amizade, já que o Ferry geralmente apanha-se só para ir (até pela irregularidade dos horários, determinada pela impossibilidade da travessia durante a maré vaza, ou durante a hora do almoço, ou durante o período nocturno, porém, até essa “limitação” acaba por dar mais um encanto ao “programa” Ferry, ao obrigar-nos a estar a par do horário das marés).

Os nossos vizinhos, por sua vez, têm uma espécie de inveja bem-disposta e bem resolvida da beleza de Caminha, do bem cuidados que estão os centros das vilas da raia fluvial (Âncora, Caminha e Cerveira): os habitués das povoações galegas da outra margem, (Camposancos, A Guarda, Rosal, San Miguel de Tabagon) sabem também dos horários do Ferry e usam-no, quando podem, em especial quando o Ferry pode navegar nas manhãs de Quarta-Feira, dia de feira aqui.

O Ferry é o último sobrevivente de uma antiquíssima tradição de utilização do Rio Minho como eixo de comunicação, também entre as duas margens do Minho, ancestralmente unidas por um fundo comum (desde logo a língua, o Galaico-português), ainda que tantas vezes separadas por decreto.

Um dos períodos em que as margens estivaram reciprocamente interditas correspondeu à guerra que se seguiu à aclamação em Lisboa de D. João IV, como Rei de Portugal (guerra da Restauração para os portugueses, “da Aclamação” para os espanhóis, que durou vinte e oito anos)

Um dos primeiros decretos de D. João IV foi precisamente o de punir com pena de morte e confisco de bens aquele que tivesse negócio ou trato com os súbditos de Castela.
Como teriam reagido as populações de aqui a essa mudança radical, a essa limitação “contra a natura” do rio?

Terão alguns reagido fazendo jus à origem da expressão “contrabando”, que designa a atitude daqueles que estavam contra o Bando, sendo “Bando” a designação que se dava aos que em nome de El Rei percorriam os centros das populações apregoando as novas leis do reino. Alguns estariam contra aquela nova realidade que lhes ditava a proibição de qualquer contacto com o vizinho de rio, com o Colega de ofício, com o amigo de infância, com o amor de toda a vida.

Habituados a usar a rio para se comunicarem alguns dos habitantes de ambas as margens passaram a usar o rio “contra o Bando”.

Ora, durante essa guerra um dia houve em que ambas as margens se voltaram a unir unir, parando literalmente por um dia as pilhagens as mortes violentas e a destruição, para celebrar e festejar em conjunto aquilo que só pode ser explicado por uma antiquíssima amizade, entre os alto e os baixos minhotos (os do Alto Minho, para os de aqui e os do Baixo Miño para os de lá).

Esse dia aconteceu num Domingo, a 20 de Outubro de 1658, dia de São Francisco. Nesse Domingo a guerra parou e numa variação da música de Chico Buarque: o dia amanheceu em paz.

O sucedido ficou registado para a posteridade numa carta que o Reverendo Gonçalo da Rocha de Morais escreveu no ano de 1721 para a recém criada Academia Portuguesa de História que nessa ano fora fundada.

Nessa carta - cujo original se encontra guardado na sala dos manuscritos da Biblioteca Nacional, que fez o favor de a digitalizar e de nos enviar - aquele Pároco, nascido e criado em Caminha - narra o que presenciou naquele Domingo, 20 de Outubro de 1658.

Tinha então o futuro Padre 13 anos e coubera-lhe segurar o pequeno bota fumeiro de incenso, com que acompanhou aquela tão insólita quanto inesperada procissão. Sessenta anos depois do que aconteceu nesse memorável dia, o Padre Gonçalo de Rocha Morais, considerou dever relatar os factos vividos, como registo para memória futura.

Esse manuscrito, de muito difícil leitura, volvidos que estão precisamente três séculos desde que foi redigido (1721), foi decifrado e transcrito pelo historiador de Caminha Serra de Carvalho que, juntamente com a leitura de outro manuscrito do mesmo pároco, intitulado “Grandezas da Villa de Caminha & seu Termo”, reconstituiu aqueles acontecimentos num artigo publicado no nº. 6 da Revista Caminiana, Ano IV, Junho de 1982, pp. 11 a 30.

Tudo teria começado numa incursão nocturna dos soldados portugueses capitaneados por António de Azevedo (escrivão da Câmara de Caminha e Capitão dos terços de Seixas e Lanhelas).

Pelas três da madrugada, saídos de Lanhelas (provavelmente da ilha do Paço de Lanhelas - que é várias vezes mencionada nos relatos feitos pelos nossos vizinhos em episódios dessa guerra, como lugar em que se encontrariam várias embarcações utilizadas pelos portugueses para os ataques) desembarcaram na povoação que fica em frente a Seixas, San Miguel de Tabagon, onde terão incendiado diversas casas, palheiros e celeiros.
 
Reagiram os espanhóis atacando os barcos atacando os barcos em que se tinham feito transportar os poprtugueses, inutilizando uns e obrigando os restantes a fugir para evitar a mesma sorte.

Impedidos de regressar, entrincheiraram-se os soldados portugueses no adro da Igreja de San Miguel de Tabagon (cujo campanário se vê ainda hoje da nossa margem, desde o cais de Seixas).  Aí  entrincheirados procuraram esperar até ao momento em que os viessem resgatar no local  previamente combinado, com o seu Capitão.

Durante os confrontos um dos nossos soldados terá arrombado a sacristia da Igreja, apoderando-se de um “vaso de prata onde estavam 2 partículas e 8 hóstias consagradas” .

Regressados a Lanhelas, o soldado que havia roubado o “Vaso Sagrado”, informa o seu Capitão do sucedido, procurando entregar-lhe o “espólio” de guerra.

Ao aperceber-se do que se tratava o Capitão “não quis sequer pôr-lhe as mãos”, pedindo de imediato que fosse chamado o Padre de Lanhelas, que era então o Reverendo João Alves Soutelo, de forma a que este se pronunciasse sobre o destino a dar àquele cálice da Eucaristia, um dos Santos Sacramentos da Santa Madre Igreja.

À chegada do Padre, ordenou o Capitão que todos os homens  se descobrissem e que o autor do roubo, também de cabeça descoberta, se ajoelhasse e relatasse ao Padre de Lanhelas o que ocorrera.

Ouvida a confissão do soldado ajoelhado, tomou o Padre em suas mãos o Cálice, guardando-o na Igreja de São Martinho de Lanhelas, ficando a aguardar pelas instruções do Cabido da Sé de Braga, a quem de imediato mandara participar o sucedido.

Poucos dias após chegaram as esperadas instruções.
Determinou o Cabido de Braga que o Padre de Lanhelas deveria levar secretamente o cálice à Vila de Caminha para que desde aí fosse restituído à igreja de onde tinha sido retirado, levando-o com a maior pompa e solenidade possível, “obrigando todos os clérigos da vila e termo de Caminha, uma légoa ao redor, sob pena de excomunhão, a acompanhar o Divino Sacramento até à Galiza, tal como se costuma fazer na procissão de Corpus Christi.” Designou então para o efeito o próximo Domingo, dia de São Francisco, 20 de Outubro.

É assim que no dia 20 de Outubro comparecem em Caminha, não só os clérigos obrigados a tal, sob pena de excomunhão, como muitos dos nobres da região, assim como o próprio Conde de Castello Melhor  e seu filho Luís Vasconcelos e Sousa , bem como o 1º Alcaide-Mór de Caminha, o já referido, Rodrigo Pereira de Sotto Mayor.

A estes juntam-se milhares de pessoas que acorrem nesse dia a Caminha.

Nos dois cais e na praia se acumulavam centenas de barcos que em breve seguiriam em procissão fluvial e com a recomendada solenidade e pompa de verdadeira procissão do Corpo de Cristo, até San Miguel de Tabagon, procurando assim devolver o que para ambas as margens era sagrado e - como tal - deveria estar acima das guerras, a ponto de todos terem aceite como natural aquela suspensão por um dia, dos confrontos sangrentos e devastadores (os quais continuariam logo no dia seguinte e por mais dez anos, a título de mera curiosidade, o Capitão da incursão em que se deu o roubo do Cálice Sagrado, terá falecido exactamente um ano após essa mesma incursão no Forte de São Pedro da Torre, onde ficou prisioneiro dos espanhóis).

O relato da procissão realizada naquele dia merece ser transcrito, tal a riqueza dos detalhes e o seu implícito significado de hino à amizade entre estes dois povos vizinhos, unidos há milhares de anos por um rio.

“No momento do embarque das sagradas partículas, um Batalhão de Infantaria da guarnição da vila, fez uma descarga de mosqueteiro, salvando das muralhas do novo revelam de São João, em frente à Matriz, a artilharia da praça com estrondoso fragor.
Seguindo rio acima, lá se dirigiu para Espanha o enorme cortejo fluvial da reparação ao sacrílego acto, tendo sido saudado já no meio do rio, pela artilharia da Fortaleza de Nossa Senhora da Ínsua. Chegados que foram à margem contrária, aguardavam a grande procissão fluvial, impecavelmente formados, os soldados de um batalhão de ordenanças do comando do sargento-mór de La Guardia, os quais fizeram, por sua vez, uma grande descarga de mosquetes.

Chegada a barca que levava o Santíssimo, ajoelharam todos de cabeças descobertas junto das águas do Rio Minho, onde se encontrava o abade da freguesia de San Miguel de Tabagón, Francisco Perez Pintelos, com capa de asperges, acompanhado por doze clérigos.

Aguardavam esta procissão, mas de vinte cruzes alçadas com pendões e pálio, a cujas varas seguravam seis nobres da Galiza, tudo ao redor de duas charolas, em que figuravam as imagens de Nosso Senhor e de São Miguel, padroeiro da igreja, assim como muito povo da freguesia.

Parando a nossa barca onde ia o Santíssimo Sacramento, chamou o abade Pintelos para que desembarcassem, o que logo executaram os nossos, fazendo sair o nosso Pálio que era sustentado por oito varas de prata seguras por outros tantos clérigos, sob o qual seguia o eleito Bispo de Angra com o Sagrado Vaso, desviando-se o Pálio dos espanhóis.

Seguiram à frente do nosso Pálio as cruzes dos espanhóis, encorporando-se as nossas depois deste.

Já todos desembarcados, rogou muito o Padre Perez Pintelos ao Bispo de Angra que quisesse levar o Santíssimo até à igreja, ficando ele junto do Pálio, seguindo diante dos sacerdotes portugueses os espanhóis cantando louvores Deus.

Chegados à Igreja de San Miguel de Tabagon, pediu o abade Pintelos a D. Pedro de Sousa (Bispo de Angra) e aos sacerdotes portugueses que cantassem a missa, o que fizeram com muita solenidade, estando galegos e portugueses todos juntos, com muita compostura, vendo-se nos olhos de todos muitas lágrimas de contentamento, pois havia dezoito anos que as lutas tinham começado entre Portugal e Castela.

Antes do embarque, nas margens do rio, divertiam-se e folgavam os novos com moças de sua idade, bailando e cantando ao som de gaita de foles e outros instrumentos, sendo para todos um dia de muito gosto e alegria, despedindo-se todos com muitas saudades.”

Assim termina o relato feito pelo Padre Gonçalo à Academia Portuguesa de História, o relato daquele dia que bem poderia ser o dia da amizade galaico-minhota, testemunhada e unida por um rio há milhares de anos.

Curiosamente, no precioso Arquivo Diocesano de Tuy (que ainda hoje funciona na Catedral de Tuy), até onde nos deslocámos para recolher mais informação sobre estes acontecimentos, agradecendo-se ao Sr. Padre D. Avelino Bouzon toda a ajuda que nos prestou - existe uma janela que poderia ilustrar esta história (ver foto). É uma enorme janela aberta em par sobre o Rio Minho que nos une!



28.3.21

O Caso da Princesa Arménia, peregrina no Século XI (Artigo publicado na Edição de 26/03/2021 do Jornal "O Caminhense")


Igreja de Vaspurakan (c. 921, mandada edificar por Gagik I, Arquitecto: Bispo Manuel, Ilha de Aghtamar, actual Turquia, antiga Arménia)


Mosteiro de São Salvador de Castro de Avelãs, data de construão desconhecida, lugar onde se teria dado o caso da Princesa Arménia e do Cavaleiro Mendo Alam

A protecção da condição de peregrino foi (e procura continuar a ser) uma das razões do actual crescente sucesso dos “Caminhos de Santiago”. Talvez por isso uma das histórias mais antigas sobre peregrinos seja justamente a da flagrante violação desse dever de protecção que desde os tempos mais remotos da Idade Média se procura assegurar

Neste ano Santo, de Jacobeo provavelmente não assistiremos ao regresso em massa dos peregrinos que a partir desta altura começávamos a ver a calcorrear troços do caminho de Santiago ou a aguardar a próxima travessia do Ferry. Entretanto o Papa Francisco, decidiu prorrogar por mais um ano “os benefícios rituais concedidos aos fieis que visitem a Basílica Catedral Metropolitana de Santiago durante o ano em que o dia da celebração  memória litúrgica do Santo - 25 de Julho - se celebra a um Domingo, como acontece neste ano de 2021.

Na sua mensagem, o Papa Francisco convida ao caminho, sugerindo que nos desliguemos das coisas que nos pesam, tendo presente que na vida não caminhamos sozinhos e que devemos confiar nos nossos companheiros sem suspeitas e desconfianças.

O código de solidariedade que acompanha a peregrinação a Santiago encontra-se em muitos dos seus sinais, práticas e costumes - a título de exemplo a antiga prática de oferecer ao peregrino da comida que ele conseguisse retirar com a sua vieira, o dever de hospitalidade.

A protecção da condição de peregrino foi (e procura continuar a ser) uma das razões do actual crescente sucesso dos “Caminhos de Santiago”. Talvez por isso uma das histórias mais antigas sobre peregrinos seja justamente a da flagrante violação desse dever de protecção que desde os tempos mais remotos da Idade Média se procura assegurar. Refiro-me à história do “Conde Preso”, contando em romanças de tradição oral e que Almeida Garret, no seu Romanceiro, transcreveu da seguinte forma:

“Preso vai o conde, preso,
preso vai a bom recado;
Não vai preso por ladrão,
Nem por homem ter matado,
Mas por violar a donzela
Que vinha de San Tiago:
Não bastou dormir com ela,
Senão dá-la ao seu criado!
Acometeu-a na serra,
Mui longe do povoado:
Por morta ali a deixara
Sem mais dó, sem mais cuidado
Chorou três dias, três noites,
E mais teria chorado,
Senão que Deus sempre acode
A amparar o desgraçado.
Passou por ali um velho,
Um pobre velho soldado,
Suas barbas brancas de neve,
Em sua espada abordoado;
Vieiras traz na esclavina,
O chapéu delas cercado;
Chegou-se à pobre romeira
Com muito amor, muito agrado:
«Não chores mais, filha minha,
Filha, demais tens chorado;
Que esse vilão cavaleiro
Preso vai a bom recado.»
Levou consigo a donzela
O bom velho do soldado;
Vão à presença del-rei,
Onde o conde era levado:
– «Eu te requeiro, bom rei,
Pelo Apóstolo sagrado,
Que nesta sua romeira
O foro seja guardado.
Da lei divina é casar-se,
Da humana ser degolado:
Que não valem fidalguias
Onde Deus é o agravado.
Disse el-rei aos do conselho
Com semblante carregado:
– «Sem mais detença, este feito
Quero já desembargado.»
– «Visto está o feito, visto,
Julgado está, bem julgado:
Ou há-de casar com ela,
Ou se não... ser degolado.»
– «Pois que me praz» disse o rei:
O algoz que seja chamado:
Ou já casar, co a romeira
Ou aqui ser degolado.»
– «Venham algoz e cutelo.
Respondeu o acusado:
Mas antes morrer mil vezes
Que viver envergonhado»
Agora ouvireis o velho,
O bom velho do soldado:
– «Fazeis, bom rei, má justiça,
Mau feito tendes julgado:
Primeiro casar com ela,
E depois ser degolado.
Lava-se a honra com sangue,
Mas não se lava o pecado»
Palavras não eram ditas,
A espada tinha arrojado,
Despe insígnias de romeiro,
Despe as armas de soldado,
Nos trajos de um santo bispo
Aparece transformado;
Sua mitra de pedras finas,
De oiro puro o seu cajado:
Tomou a mão da romeira,
A mão do conde há tomado,
Por palavras de presente
Ali os tem desposado.
Choravam todos que o viam,
Chorava mais o culpado;
Chorando, pedia a morte
Por não ficar desonrado.
O santo bispo o absolvia
Contrito de seu pecado:
Dali o levam por morto
Que nem o algoz foi chamado,
Justiça de Deus foi nele,
Antes de uma hora é finado!
Mas acudiu àquela alma
O Apóstolo sagrado,
Que outro não era o romeiro,
O bispo nem o soldado.

No primeiro livro de linhagens de Portugal que se conhece, o chamado Livro Velho das Linhagens, que se supõe escrito no Século XIII, aparece uma referência a um “afilhamento forçado”, cometido por um Cavaleiro/Abade, Conde Mendo Alam (ou Alanis ou Alam), que no Mosteiro de São Salvador de Castro de Avelãs, teria hospedado uma princesa Arménia que iria de peregrinação a Santiago de Compostela.

Lê-se naquele livro, na parte dedicada à linhagem dos Braganções (uma das cinco principais linhagens existentes no Século anterior à fundação do reino) que “D. Mendo Alão de Bragança filhou por força uma filha do Rey da Arménia que hia em romaria a Santiago e fez nela D. Fernão Mendes, o Velho e D. Ouriana Mendes”. Noutro apontamento de linhagens, conhecido por Fragmento , encontra-se notícia do mesmo acontecimento: “D. Alam foi clérigo e filho-dalgo (fidalgo) , e filhou a filha d’El Rey da Arménia, quando ia em oração a Santiago e foi sa hospedada em São Salvador de Castro de Avelãs.” Já no Nobiliário do Conde de D. Pedro de Barcelos (Século XIV), a parte dedicada à linhagem dos Braganções (Título 38) começa justamente com o referido Mendo Alão, que dá como casado com Dona Francisca (sem mais), ambos pais de Fernão Mendes de Bragança, o Velho e de Ourana Mendes de Bragança. De referir - a talhe de foice - que neste mesmo Título 38 do Nobiliário do Conde de Barcelos surge a referência a Álvaro Pires de Castro, filho de Aldonça Lourenço (Valadares) e de Pedro de Castro (o da Guerra), ou seja: Álvaro Pires de Castro, o único irmão inteiro de Inês de Castro - e 1º Conde de Caminha - é referido naquele nobiliário, como sendo descendente directo daquele mesmo Mendo Alão e de sua mulher, o que faz de Inês de Castro, provável descendente directa da princesa Arménia, a ser verdade a história/lenda do “rapto da princesa da Arménia”.

Diversos estudos ou comentários foram-se sucedendo quanto à probabilidade de ser verdadeiro esse episódio “fundador” de uma linhagem que o tempo acabaria por revelar impar na nossa História (se percorrermos os vários descendentes desse episódio encontramos: Santo António de Lisboa, Inês de Castro, D. Lara de Castro - que casou com o Infante D. Duarte, irmão de D. João IV e que faleceu encarcerado na Torre de Milão - Duque de Caminha (1º e 2º Duques de Caminha), Fernando Pessoa…

Um desses estudos foi feito na Argentina por um genealogista e jornalista do jornal “La Nacion” de Buenos Aires, Narciso Binayan Carmona. O estudo, publicado em 1978, intitula-se “Uma princesa Arménia en Compostela en el siglo XI. Su Genealogia”.

A partir desse e de outros estudos anteriores, é proposta a identificação da princesa Arménia como sendo a Princesa Joana Ardruzni, que seria filha do Rei Senekerin do Reino de Vaspurakan , neta de Gagik I (também nomeado por Cacício I) e que terá sido um dos primeiros reinos cristãos. Aquele reino tinha a sua sede e paláciona ilha do Lago Van chamada Aghtamar. Aí mandou Cagik I edificar uma das mais notáveis igrejas da história do cristianismo: a igreja de Aghtamar, na ilha com o mesmo nome. A essa mesma família real Ardruzni (ou Ardzuni, ou Arzerúni, como também é designada), pertence um dos primeiros historiadores Arménios, Tomás Ardzuni e que no Século X deixou escrita a “História da Casa Arzerúnio”, traduzida para Francês no Século XIX por Marie-Félicité Brosset.

Ora, o curioso é que o próprio mosteiro de Castro de Avelãs acaba por ser mais semelhante (na parte que resta da sua construção primitiva) com a igreja de Aghtamar (cuja data de construção se situa entre 915 a 921) do que com qualquer outra igreja em Portugal, sendo aliás um dos únicos exemplares em Portugal da chamada arquitectura Romano-Mudejar. Ao contrário do que acontece com a Igreja de Aghtamar ainda hoje ignoramos a data em que terá sido edificado a Igreja de Castro de Avelãs, pese embora serem conhecidas referências à sua existência enquanto lugar de acolhimento de peregrinos, pelo menos desde o Século XII.

A ter ocorrido o episódio narrado no Livro Velho, no Fragmento e nas Romanças de tradição oral, o mesmo terá acontecido imediatamente após o fim do reino da Vaspurância, o que ocorreu a 1021, com a sua passagem para o Império Bizantino, na sequência de acordo de paz feito pelo seu último Rei, Serekin, pai da Princesa Arménia.

Considerando a devoção patente na Igreja de Aghtamar, a circunstância daquela dinastia ser a única cristã das várias casas reais arménias, faz sentido não só a ideia da peregrinação a Santiago de Compostela, como não deixa aliás de ser intrigante que o arquitecto da Igreja de Aghtamar surja identificado (no excelente site dedicado
àquela igreja – e vale mesmo a pena ver as imagens do seu interior) como sendo o “Monge, Bispo Manuel” (sem, porém, se esclarecer qual a sua origem, bem como a de um nome próprio como “Manuel” no reino de Vaspurakan).

A ter ocorrido essa peregrinação faz também sentido a hospedagem no Convento de Castro de Avelãs, assim como a sua ligação ao referido Conde Francês, que como outros cavaleiros integravam a Ordem Beneditina, vocacionada desde a sua fundação a servir os pobres, os peregrinos
O lugar de Castro de Avelãs estava no mapa dos principais itinerários romanos que ligavam Roma, França, Portugal e Espanha, constituindo paragem obrigatória da via XVII do Itinerário de Antonino nas peregrinações a Santiago de Compostela.

Mil anos depois a dúvida sobre este episódio subsiste. Entretanto, nos principais sites de genealogia, a princesa Ardzuni é confirmada como mulher de Mendo Alão e mãe de Fernão Mendes de Bragança, o Velho, e Ourana Mendes de Bragança. Se foi “filhada à força”, como diz o Livro Velho, poderá ser a outra parte do mistério que jamais se poderá desvendar, quanto à origem arménia, em breve o ADN o poderá demonstrar, já que é hoje possível saber onde estão os supostos descendentes desse mesmo episódio.

Uma coisa é certa: gravita em torno das mulheres que antecederam e sucederam àquela princesa, uma aura de mistério, beleza e fado que não deixa de surpreender.

Desde logo a própria origem do nome da Ilha Aghtamar. Segundo a lenda, o lago deveria o seu nome uma história de amor entre um Nobre Arménio e uma princesa, de nome Tâmara, que vivia na Ilha do Lago de Van (então Arménia, hoje Turquia). Todas as noites, em segredo, a princesa acendia uma fogueira numa das escarpas da ilha. O seu amado mergulhava então no lago e guiado por aquela luz, nadava o nobre Arménio ao encontro da Princesa Tâmara, que o aguardava, junto ao fogo. Numa noite, o Rei terá sido informado do segredo. Aguardou que a princesa fosse ao local onde acendia a sua fogueira, esperou que ela repetisse o fogo, aguardou que o mesmo pudesse ser visto do outro lado da margem da ilha, aguardou um pouco mais e dirigiu-se então à fogueira, apagando-a. Segundo a lenda uma tempestade abateu-se então sobre o lago negro de Van. Segundo a mesma lenda, desde então que nesse lago se ouve o grito do amante da princesa arménia Tâmara: “Ak Tâmar!”, “Ak Tâmar!” (aqui Tâmara, aqui Tâmara!), perdido no meio da tempestade, sem a luz da fogueira que lhe servia de orientação (em homenagem a esta história os Arménios fizeram uma estátua de uma mulher que acena com um braço erguido para o lago, estátua que se encontra no Lago de Sevan).

Seria a Princesa Tâmara do lago a que deu nome (Aktamar ou, actualmente, Aghtamar) avó da Princesa Joana Ardzuni?

Seria a Princesa Joana Ardzuni: 4ª avó de Santo António de Pádua (nascido em Lisboa em 1190, falecido em Pádua em 1231); 7ª avó da Castelhana Maria de Molina, rainha consorte, mulher de Sancho IV de Leão e Castela e Rainha Regente nos reinados de Fernando IV e do seu neto Afonso XI, ambos de Leão e Castela?; 8ª avó da Portuguesa Aldonça Lourenço Valadares por quem se enamorou, o Galego (de Monforte de Lemos) D. Pedro Fernandes de Castro, o da Guerra, bisneto de Sancho IV de Castela e com quem teve pelo menos dois filhos: Álvaro Pires de Castro (1º Conde de Arraiolos e de Viana da Foz do Lima, onde D. Fernando fez incluir o Condado de Caminha e 1º Condestável de Portugal)?; 9ª avó dos irmãos Inês de Castro e Álvaro Pires de Castro?; 10ª Avó de Beatriz Infanta de Portugal, filha de D. Pedro I e D. Inês de Castro?; 11ª Avó de Isabel de Portugal, dada como filha de Beatriz Infanta de Portugal - e de seu meio irmão, o futuro Rei D. Fernando - que casou com Afonso, Duque de Noroña e Gijon, avós do primeiro Marquês de Vila Real (casa do futuro Ducado de Caminha)?;  16ª Avó de Beatriz de Meneses, que casou com Pedro de Médicis   17ª Avó de Maria de Lara e Meneses, curiosamente denominada por “A Peregrina”, irmã do 1º Duque de Caminha e que em segredo casou com o Infante D. Duarte, irmão de D. João IV, o mesmo que mandou executar o seu sobrinho D. Miguel Luís de Noronha,e que viu o seu irmão partir de Vila Viçosa, por não se entender com a sua mulher, D. Luíza de Guzman, que lhe censurava o indiscreto interesse por uma das suas aias, provavelmente aquela com quem o mesmo Infante D. Duarte viria a casar em Vienna, no ano de 1635, antes de ser preso, tendo falecido em Milão, no ano de 1649?; Toda esta descendência consta hoje acessível e comprovável nos sítios de genealogia. Outras certamente poderão estabelecer-se ou revelar-se. Não deixa, porém, de ser notável como a partir de um episódio novelesco encontramos na vida dos seus descendentes, uma espécie de marca de tragédia amorosa que parece fazer parte do ADN dos Braganções e seus sucessores.
Como diz um amigo alentejano (numa variante do dito Italiano com o mesmo sentido): se não é verdade é bem caçado (si non e vero e ben trovato).

Gondarém, 16 de Março de 2021

14.2.21

Ganhei o dourado do trigo

 

 

O instante de onde vem o para sempre da esperança, o instante da visão da paz, da sua presença, esse instante aconteceu ontem em directo, tão desprevenidamente como desprevenida e directamente nos entraram as imagens da invasão do Capitólio.

Aquele instante súbito. Com a luminosidade única da côr mais maravilhosa, mais próxima do maravilhoso dourado dos campos de trigo do Princepezinho, apareceu como uma Garça dessa Graça que é estarmos vivos, com o mesmo olhar de pássaro, com a leveza da inocência que só de si é a mais bela das belezas.

E éramos um ali, o nosso melhor ali, a vir-nos buscar. Lembrei-me da personificação da esperança: as novas gerações, a renovação, o conforto da probabilidade de que essa beleza, enquanto existir, prevalecerá.

Essa beleza não é daquele pássaro cortante de intensidade majestática no olhar mais próximo dessa certeza que até hoje vi.
Essa beleza vem da nossa própria circunstância comum: de experimentarmos a verdadeira união, ou a força dela, ainda que saibamos que essa mesma vertigem (a do sentimento de união, de comunhão), possa gerar a perda da possibilidade da ilusão do eu, perante a força dos imensos outros de que no fundo são feitos todos os tempos em que essa multidão de imensos outros, toma conta de nós, transformando-nos involuntariamente em soldados de um exército sem vontades próprias. Enquanto pensava isto, entre estúpidas lágrimas que já desistira de procurar moderar, comecei a ouvir naquele olhar e naquelas mãos a frase do refrão da mais enigmática canção do Nobel Dylan: The answer is blowin' in the wind.

Seria essa a legenda daquela imagem que para sempre ficará gravada: Amanda Gorman, a quem o presidente eleito ouviu um dia ler um poema (no mês de Dezembro passado). Quis conhecê-la e pediu-lhe para escrever um poema para o dia da inauguração. Ela escreveu. Durante a sua preparação leu. Leu os discursos de todos os grandes da História do Capitólio. Depois aconteceu o que aconteceu no dia 6, naquele lugar. Ela viu, ouviu e escreveu aquilo que Disse, como ninguém o dirá assim (provavelmente nem ela própria), mais nenhuma vez.

Que momento! Entretanto o dia amanheceu e acordei no mesmo mundo que ontem, ainda que com essa certeza: a de que vale a pena e é disso que se alimenta o sempre da esperança. Desses vislumbres da beleza pura.

Quando a raposa pede ao Principezinho para a cativar, diz-lhe:

“se tu me cativas, a minha vida ficará cheia de sol. Reonhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos fazem-me fugir para debaixo da terra. Os teus chamar-me-ão para fora da toca, como se fossem uma música. E depois, olha! Vês lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa nenhuma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, far-me-à lembrar de ti. E eu passarei a amar o barulho do vento no trigo…”

O diálogo termina com a despedida:

“– Ai! – suspirou a raposa – Ai que me vou pôr a chorar…
– A culpa é tua – disse o principezinho. – Eu não te desejava mal nenhum, mas tu pediste para te cativar!
– Pois pedi – disse a raposa.
– Mas agora vais-te pôr a chorar! – disse o principezinho.
– Pois vou – disse a raposa.
– Então não ganhaste nada com isso!
– Ai ganhei, sim, senhor! – disse a raposa. – Ganhei a cor do trigo."


O HOMO STUPIDUS E NÓS, OS SAPIENS





Nos últimos vinte anos têm-se acumulado notícias de descobertas surpreendentes sobre o Homem de Neanderthal a quem nós (Homo Sapiens Sapiens) – há cerca de trinta mil anos teríamos sucedido no território Europeu - que fora a sua casa durante trezentos mil anos - e a quem chamámos estúpido.

1.    O MENINO DE LAPEDO

A primeira notícia foi a da descoberta de um fóssil de esqueleto de um menino (que ficou conhecido como o “menino de Lapedo”) e que projectou o lugar do “Vale de Lapedo” para o mundo da Arqueologia e da História da humanidade.

No Abrigo designado por “Lagar o Velho”, nesse vale em Leiria, foi encontrada a sepultura de uma criança de cinco anos que se revelou o mais perfeito exemplo de híbrido Neanderthal e Sapiens. A criança apresentava-se como um mosaico misto de Neadenthal e Sapiens. Efectuados os testes de datação, as ossadas foram situadas cerca de 22.500 a.c.. (ou seja, supostamente milhares de anos depois da suposta desaparição do Homem de neanderthal da Peníncula Ibérica).

 Ter-se-à encontrado nas suas características mistas de ora Neaderthal, ora Sapiens, evidência do que muitos já suspeitavam: a existência de cruzamentos, bem sucedidos, entre duas “populações”, supostamente pertencentes a duas espécies distintas do mesmo género (hominídeos) que a dada altura – e ainda que por pouco tempo no caso da Europa - coincidiram no mesmo espaço, no final da era do gelo (cerca de 30.000 a.c. ou 32.000 BF (before present), acasalando e gerando o que se poderiam chamar de quimeras (caso se aceite estarmos perante espécies diferentes).

De imediato choveram críticas ao que parecia o regresso da heresia à palentologia. O Homem Moderno, descendente directo do Sapiens, supostamente superior ao Homem de Neanderthal e cuja chegada à Europa teria determinado a extinção deste, tinha afinal não só convivido com o seu antecessor Neanderthal, como chegara mesmo a gerar o que seria uma quimera (cruzamento entre duas espécies diferentes). Ora, essa foi uma das primeiras e mais fortes críticas à interpretação da ossada do menino de Lapedo como constituindo o primeiro hominídeo  híbrido de Sapiens e Neanderthal, que sendo duas espécies distintas não poderiam (ou não deveriam poder) gerar entre si.

De facto a possibilidade de procriação entre Neandertais e Sapiens apenas se demonstrou ter ocorrido (e após a análise de vários genomas sequenciados) no acasalamento entre homem Sapiens e mulher Neanderthal, já que o cromossoma “Y”, responsável pela determinação do sexo masculino, não tem no Homem Moderno quaisquer vestígios de Neandarthalidade, do que se concluíu que só os Homens Sapiens e as mulheres Neanderthais (e não as mulheres Sapiens e os Homens Neanderthais) contribuíram para a miscigenação  entre as duas espécies ou raças (conforme a opção que seja tomada sobre a questão). Esta “assimetria” na possibilidade de gestação (apenas possível nos cruzamentos Homem Sapiens/Mulher Neanderthal), terá certamente contribuído para e progressivo desaparecimento da população Neanderthal, que sendo já então pouco numerosa e geneticamente enfraquecida por longos períodos de enorme consanguinidade, poderá ter diminuído drasticamente a sua capacidade reprodutiva, o que não acontecia com a população mais numerosa dos Sapiens, em crescimento demográfico contínuo e com muito maior diversidade genética.

Um outro aspecto que poderá ter colaborado quer nos cruzamentos mistos com geração, quer na extinção do Homem de Neanderthal, terá sido a possibilidade (real) dos Sapiens só terem adquirido imunidade aos vírus que encontraram no seu novo território (Europa) por via dessa miscenização, transmitindo para os seus filhos a imunidade genética que possuíam os seus avôs maternos Neanderthais, podendo também ter acontecido que os Neanderthais, por sua vez, não tivessem adquirido essa mesma imunidade, relativamente aos novos vírus de que os Sapiens pudessem ser portadores.

2.    A REVELAÇÃO DO ADN NEANDERTHAL

A segunda notícia foi a sequenciação de 60% do ADN nuclear de uma mulher Neanderthal - uma mulher que viveu na Sibéria (nos Montes Altai, Rússia) há 122 mil anos.

Seis anos após ter sido sequenciado pela primeira vez o genoma humano, o que ocorreu em 2004, conseguimos, em 2010, chegar pela via genética a dados absolutamente surpreendentes sobre um dos grupos de hominídeos mais próximos de nós.

Com graus de variação relevantes (entre uma média inferior a 1% nos africanos e de 4%, nos Europeus, assim como nas populações da Ásia), a sequenciação do genoma do Neanderthal e a sua comparação com o do Homem Moderno demonstrou que não só tinham existido casamentos mistos bem sucedidos na descendência, como as consequências desse (as)salto genético permanecem “vivas” no nosso fundo genético.

Poderá assim a Península Ibérica (e para algins Paleontólogos: Portugal) ter sido um dos últimos redutos do Homem de Neanderthal. É este o entendimento de João Zilhão, Investigador e Professor da Universidade de Barcelona.  Como se a história se repetisse e a Península Ibérica (e nesta provavelmente a sua parte Noroeste), tivesse sido para os Neanderthais ante os Sapiens o que foi para Galaicos e Lusitanos e outros povos que habitaram o noroeste peninsular, face aos Romanos: O último lugar de refúgio perante o “invasor”.

Por outro lado a baixa densidade populacional dos Neanderthais - que distribuídos pelo continente, nos últimos cem mil anos, não seriam mais do que 70.000 (J.P. Bocquet Appel & A. Degioanni Neanderthal Demographie estimates” Current Anthropology, citado por Silvana Condemi e François Savatier; Néanderthal, mon frére, Champ Sciences – 2019 , pp. 124
), o que considerando a totalidade do território ocupado e o número médio de cada clã (cerca de 35 individuos), daria a cada clã uma área de cerca de 5.000 Km2, correspondendo a um quadrado de 70 km por 70 Km - explicaria uma diminuição dos contactos entre clãs diferentes, o que poderá ter estado na origem no enfraquecimento genético e na progressiva diminuição dessa população.

As instáveis condições climatéricas, do último período inter-glaciar (57-000 a 29.000 a.c.) poderão ter contribuído para o efectivo isolamento dos diversos clãs de Neanderthais o que determinou o progressivo empobrecimento genético decorrente de uma inevitável consanguinidade extrema, que poderá também explicar o que muitos apontam como um outro facto concorrente da sua extinção: a diminuição da feritildade Neanderthal versus a superioridade demográfica e maior robustez genética dos Sapiens..

Finalmente - e a título de mera curiosidade - uma das razões adiantadas por alguns paleontólogos para a “derrota” do Neanderthal pelos Sapiens, terá sido a aliança destes com os lobos.

 Enquanto o Neanderthal caçava em grupo, procurando sobretudo grandes presas que permitissem a constituição de reservas para futuro, os Sapiens passaram caçar com cão, triplicando, segundo foi estudado, a sua produtividade venatória, o que permitia aquela acumulação, necessária à travessia dos períodos de carência de alimentos.

3.    CAPACIDADE DE EXPRESSÃO SIMBÓLICA DO NEANDERTHAL

A terceira das notícias surpreendentes resultou da atribuição aos Neanderthais da autoria de uma das mais notáveis colecções de Arte Rupestre no mundo (notável no sentido da qualidade da própria expressão dos motivos desenhados, em que sobressaem a capacidade figurativa e expressiva de animais como o leão ou o cavalo).

Depois de em 1994 três arqueólogos franceses terem descoberto em Valon Pont-Arc, uma gruta contendo diversos desenhos e pinturas do paleolítico, diversos testes de datação foram sendo efectuados ao longo dos tempos, tendo os mais recentes concluído que as primeiras pinturas rupestres datariam do paleolítico superior, cerca de 37.000 a 33.500 anos. A datação obtida coincide com um período em que o Homo Sapiens ainda não tinha chegado à Europa, razão pela qual se atribuiu a autoria daquele impressionante conjunto pictórico aos Neanderthais.

Já em 2010, perto de Múrcia, na localidade conhecida por “Cueva de los Aviones”, encontraram-se diversas conchas perfuradas e que haviam sido pintadas com  pigmentos minerais complexos (laranja, encarnado e preto), cuja datação remonta a 115.000 a.c., altura em que também os únicos hominídeos que aqui viviam (Europa, Península Ibérica) eram também os Neanderthais.

Curiosamente, junto ao pescoço do Menino de Lapedo foi encontrada uma concha tingida de ocre, que se supõe ter feito parte de um colar. A concha pintada do menino de Lapedo e as conchas perfuradas e pintadas na Cueva dos Aviones (Múrcia, Espanha), bem que se poderia ter transformado no símbolo da perturbante descoberta: O Neanderthal, muito antes do próprio Sapiens - cerca de pelo menos 40.000 anos, considerando a datação dos pigmentos das conchas da Cueva de los Aviones – 115.000  anos e os primeiros artefactos equivalentes do Sapiens em África - já  oproduzia graficamente o que consideramos como privativo e distintivo do humano: o símbolo.

Afinal, Neanderthal e Sapiens foram não só contemporâneos, como ambos detinham  as mesmas capacidades cognitivas e de expressão. Aliás a existir uma ordenação de mais para menos, provavelmente seríamos levados a colocar as capacidades intelectuais do Homem Stupidus - como então foi baptizado pelo zoólogo Ernst Haecke o hominídeo encontrado em Neanderthal.


4.    O GENE NEANDERTHAL E A ACTUAL PANDEMIA

A quarta notícia - e esta não poderia ser mais contemporânea deste tempo que vivemos -  foi a constatação cientifica da existência de uma relação entre os quadros mais severos de COVID e a presença de um gene Neanderthal nesses pacientes (o último destes estudos foi publicado na Revista Nature em 30 de Setembro de 2020 e elenca os estudos anteriores que concluem no mesmo sentido: o risco genético para a existência de quadros severos dos infetados pelo SARS-CoV2 “Corona Vírus Disease 2019” – Covid19 –  como risco a acrescer aos factor de risco dois principais: idade e estado geral de saúde - está associado à presença de gene “Neaderthal”, no ADN de algumas populações que o herdaram do cruzamento destes com os Sapiens ocorrido há cerca de 50.000 anos (segundo a data apontada no estudo referido), quanto aos Europeus.

Estas quatro noticias, todas elas dos últimos dez anos, iluminaram com foco de estrela principal um antepassado que vínhamos desvalorizando. Se não chegámos ao ponto de o baptizar como Homo Stupidus, como pretendia o Zoólogo, não deixámos, de reservar para nós a designação de Homo Sapiens, às vezes “sapiens, sapiens” (inteligente) para o primeiro Homo Sapiens encontrado em África há cerca de 315.000.

5.    E CAMINHA COM ISSO?

A concentração na Península Ibérica de grande parte das manifestações de Arte Rupestre, durante a parte final da idade do gelo, conjugada com a circunstância de ter sido a Peninsula Ibérica e nesta Portugal,  para muitos paleontólogos, um dos últimos redutos do Homem de Neanderthal; com a evidência de ter existido cruzamento de espécies na Europa, entre Sapiens e Neanderthal algures nos últimos 50.000 a.c., assim como o sucessivo “abaixamento” temporal do momento “crepuscular” do Homem de Neanderthal, tornam os vestígios arqueológicos do Paleolítico, ou pré-históricos, existentes no concelho de Caminha, uma certeza de um promissor futuro arqueológico para o concelho.

Referimo-nos não só as jazidas da chamada industrial lítica na foz do Minho, que foram objecto de atenção especial de vários arqueólogos (M. Sarmento; E. Jalhay; Serpa Pinto; A. Viana; Baptista Lopes; J. Meireles) e que desde o final do Século XIX vêm alertando para a importância dos vestígios de utensílios de corte ou perfuração, característicos da idade da pedra e utilizados pelas populações de Neanderthais, como às gravuras de arte rupestre que foram sendo encontradas no Monte de Góios, as chamadas Lage das Fogaças e Lage das Carvalheiras e as restantes gravuras que foram sendo descobertas recentemente, por ocasião da construção do troço Caminha/Gondarém, em cujos trabalhos preparatórios foi efectuado uma prospecção e levantamento que pode ser consultado on line aqui:

https://www.museuarqueologicodocarmo.pt/publicacoes/outras_publicacoes/III_congresso_actas/artigos/Art4.6_IIICAAP.pdf (Publicação em pdf da Associação dos Arqueólogos Portugueses; Arqueologia em Portugal – Estado da Questão; pp. 571 a 598), estudo onde se enumeram os anteriores trabalhos sobre aquele santuário rupestre, inventariando-se com imagens e descrições técnicas, cada uma das gravuras actualmente existentes e que aguardam a classificação como monumento nacional (anúncio 12/2019, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 10, de 15 de janeiro de 2019, rectificada Declaração de Rectificação 744/2019 de 8 de Outubro).

Para quem estiver interessado, a relação da arte rupestre no noroeste português pode ser encontrada e percorrida (na maior parte com imagens associadas à ficha de cada elemento) em http://cvarn.org/.

 










ÍNSUA: A ESTRELA DO MAR ESQUECIDA

 



 

Uma nova interpretação da Via XX, ou Per Loca Marítima (via romana descrita no “Itinerário de Antonino”) vem colocar Caminha no mapa do Império Romano. Caminha e em particular a belíssima e perturbadora Ínsua.

 

Há cerca de dois mil anos, o Império Romano, criou a primeira rede intercontinental de vias (umas marítimas, outras terrestres). “Todos os caminhos vão dar a Roma”, traduz, enquanto expressão popular, essa mesma “novidade” na história da humanidade: Os Romanos criaram a primeira rede de caminhos com uma lógica não só militar (permitir a incursão dos seus exércitos, à medida que ia satisfazendo a sua fome de império), como comercial (permitir a ampliação do comércio de mercadorias e a circulação de pessoas entre os mais distantes pontos do mundo conhecido até então). Um mundo que acabaria no Cabo Finisterra (onde a terra acabava e começaria o mundo desconhecido).

 

Se os Actos de Paulo e Tecla (a que nos dedicámos nos três números anteriores do Caminhense) são para muitos o primeiro Romance, enquanto género literário, da história da humanidade, o “Itinerário de Antonino” que faz a relação das vias romanas existentes no Século III – data em que terá sido escrito ou compilado - será o primeiro guia de viagens da humanidade: enumerando localidades, indicando o tipo de estabelecimentos existentes em cada uma delas e as respectivas distâncias.

 

Entre as 372 vias descritas nesse itinerário 34 dizem respeito à então Hispânia (nome Romano para a Península Ibérica) e 11 a Portugal, sendo que 2 destas (as vias nº. 19 e 20) se localizavam todas nesta parte noroeste da Península Ibérica.

 

Um dos quebra-cabeças que a interpretação desse itinerário suscita há séculos, é o de determinar qual seria a exacta localização da via XX, conhecida também por “PER LOCA MARITIMA” e cujo nome significa “através de lugares marítimos. O itinerário dessa via tem sido objecto das mais diversas propostas de localização do seu traçado, não tendo ainda a ciência, os historiadores, navegadores, romanistas, chegado a consenso.

 

Procurar desvendar o enigma da “Per Loca Marítima” que ligaria Braga (Bracara Augusta) a Asturicam, obriga ao cruzamento de vários saberes e fontes, algumas das quais perdidas e de que só se tem conhecimento indirecto. Aos lugares foram sendo dados diferentes nomes, sendo difícil, relativamente a muitos deles, estabelecer correspondência, ao que acresce a alteração da configuração de várias lugares da costa noroeste peninsular.

 

Porém, com o avanço protagonizado pela segunda grande rede na história da humanidade, a internet [no que se incluem as bases de dado geradas e respectivos “motores de busca”, com a progressiva digitalização da que já foi escrito pela espécie humana numa nova Torre de Babel digital, e com as ferramentas que permitem navegar através de toda a terra, proceder a medições exactas e ver até a evolução dos locais na fita do seu tempo, é hoje possível, a qualquer um, procurar decifrar o quadro que tantas e tão estimulantes questões tem suscitado, incorporando-se assim numa discussão em aberto. O quadro do enigma é o seguinte:

 


 

(quadro retirado do artigo, de César M. González Crespán, Parte de la vía romana nº XX “per loca marítima” iba por el mar, publicado no Blog Astrovigo da Associação Astronómica de Vigo a 15/09/2015). [www.astrovigo.es]

 

Recentemente, um navegador/investigador Galego – César M. González Crespán, propôs “Uma Nova Interpretação da Via Romana nº. XX, “per loca marítima”, que aponta para a Ínsua como o termo do primeiro troço daquela mítica via. Estudo publicado na Revista Glaupis, Boletim do Instituto de Estudos Vigueses, Ano XXI – nº. 21 – 2016 e que gentilmente me foi enviado pelo seu autor, a quem agradeço o gesto em tempos de pandemia.

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Defende Crespán  que as quatro secções da Per Loca via se faziam apenas por rio e por mar e não por terra. O Percurso da Per Loca iniciar-se-ia em Braga (Bracara), repartindo o caminho com a Via Romana nº. XIX até Tuy (Tude). A partir deste ponto a Per Loca seria uma variante a essa via até Astorga. A variante constituiria assim a continuação da Via XIX, pela Via XX, com início em Tuy, continuando pelo Rio Minho, águas abaixo, através do seu canal navegável, até à sua confluência com o mar, na Ínsua Nova (designada como Aquis Celenis no Itinerário). De Caminha/Insua seguiria, via marítima, até ao Cabo de Bicos (Vicos Caporum no Itinerário) na Ilha Sul das ilhas Cies. Depois continuaria essa mesma rota em direcção a norte até ao Castro da praia da Lanzada (município e província de O Grove, já na província de Pontevedra) e de aqui seguiria, até chegar à foz do Rio Ulla, na praia de Bamio (na Catoira), próximo das Torres do Oeste (lugar que corresponde no itinerário de Antonino a Glandimiro). A partir deste ponto a Per Loca Marítima, passa a fazer-se por terra, até Santiago de Compostela (Atricondo no Itinerário), passando por Bigantum, Caranico, Lugo (Luco Augusti), chegando então à capital conventual de Astorga.

 

Para chegar a esta proposta de percurso, Crespán enunciou as seguintes razões ou dados:

 

1.     O nome da via “per loca marítima”, significa “por lugares marítimos” indicando que uma parte dessa via decorria por mar;

2.     As unidades de medida utilizadas no itinerário para as quatro secções fluvial e marítimas consideradas, estão em stadia (estádios, correspondendo cada stadia aos 600 pés que media o estádio de Olympia, cerca de 185 metros), ao contrário do que acontece com as unidades de medida que no Itinerário se utilizam para todas as restantes secções millia passum (milha romana, que corresponde a mil passos duplos de um soldado médio em passo natural, não forçado, o que corresponde a cerca 1.478 metros. Ora a unidade de medida stadia era reservada pelos gregos (e romanos) para as medições de navegação ou de astronomia e estava claramente diferenciada dos valores indicados para as restantes secções, já que as quatro secções marítimas do itinerário têm todas magnitudes superiores a 100, começando por “C”, (100 romano) enquanto que nas restantes secções, em que a medida começa por “X” (dez romano);

3.     As distâncias de todas as secções estão equilibradas, sendo da mesma ordem de valores e correspondendo  a jornadas de navegação de ”um dia”.

4.     A existência do Cabo de Bicos na Ilha Sul das Ilhas Ciés (Cabo de Bicos que em latim corresponde ao nome da segunda “estação” marítima indicada no Itinerário: Vicos Caporum);

5.     Aquis Celenis corresponderá também a um lugar na foz do Rio Minho, Moledo, Caminha, ou a Ínsua, que nada tem a ver com localidade com o mesmo nome, em Caldas de Reis, Espanha, Galiza. Para além de ser comum a existência de localidades com o mesmo nome, existe sempre a possibilidade de ter havido erro na transcrição.

6.     O termo latino “item”, advérbio, significa “também” ou “da mesma maneira”.

7.     A terminação “am” em “Asturicam” é de um acusativo e significa “até” (neste caso “até Astorga”);

8.     O advérbio “usque” significa “continuamente”, “sem interrupção”, ou “em continuação”.

 

Esta nova interpretação da Per Loca Marítima vem colocar Caminha no mapa do Império Romano. Caminha e em particular a belíssima e perturbadora Ínsua (Nova, para a diferenciar da dita “Velha”, através da qual esteve em tempos ligada à margem de Camposancos no sopé do Monte Trega (Santa Tecla). Relativamente a esta ligação perdida, existe a referência de um dos primeiros Frades do Convento - Frade Póvoas - que habitou a ilha posteriormente à edificação do Convento Franciscano (1392) que aí existiu até à extinção das Ordens religiosas em 1832, e que deixou aos seus irmãos Franciscanos o aviso de se acautelarem com as cabras de Camposancos, porque estas por vezes vinham comer as heras e a horta!

 

 

 

Este estudo leva-nos à pergunta: Terá Caminha (ou a Ínsua) sido um porto Romano? Corresponderá Caminha à “Aquis Celenis” indicada como estação da Per Loca Marítima?

 

Se lermos as passagens da “Geografia” de Estrabão, (escrito e publicado por volta do ano 23) não podemos deixar de persentir que alguma importância Caminha deveria ter, para merecer do geógrafo greco-romano atenção que este lhe deu:

 

Depois deste, o Báinis  (outros, no entanto, dizem Minho), é de longe o maior dos rios na Lusitânia e igualmente navegável por oitocentos estádios (Posidónio afirma que este corre desde território dos Cântabros). Diante da sua embocadura situa-se uma ilha com dois quebra-mares e ancoradouros. (...) Foi precisamente este o limite da campanha de Bruto.”

 

Refere-se Estrabão a Décios Júnios Brutos, Procônsul da Galaecia e primeiro dos Romanos a chegar a este limite: a Caminha. Aqui terminando a sua incursão pela costa noroeste da Península, contra os Galaicos, procurando vingar o apoio destes a Viriato.

 

Na verdade, no ano 138 antes do nascimento de Cristo, Brutus terá chegado ao Rio Lima. Conta-se que a legião de soldados que o acompanhava, perante tanta beleza, entenderam estar perante o mitológico Rio Lethes, o Rio do Esquecimento, desde que Artabros e Turdulos aí se envolveram em batalha, após o que ambos  os contentores dispersaram, acabando por ficar e povoar as suas margens, tendo-se esquecido do caminho de regresso.

 

Perante aqueles campos, em que reconheceram os Campos Elísios que eram no mito a margem do Rio Lethes e perante aquele Rio, chamado “Esquecimento”, entenderam os Romanos estar perante a fronteira entre o “Mundo dos vivos” e o “Mundo dos mortos”. Estacaram e todos se recusaram a cruzá-lo, como lhes ordenara Décios Brutus.

 

Então no silêncio do temor de todos pelo lugar, Brutus dirigiu-se ao porta-estandarte, retirou-lhe o estandarte com a Águia imperial e empunhando-o ao alto atravessou o rio. Chegado à outra margem, Brutus ( “O Galaico”) ter-se-á voltado para os soldados que permaneciam na outra margem, começando a chamar, um por um, e pelo respectivo nome, os centuriões, os quais, com os seus soldados,  lhe obedeceram então.

 

É este o episódio que se encontra representado na tapeçaria de Portalegre da autoria de José de Almada Negreiros exposta no Hotel Santa Luzia (o mesmo Almada Negreiros que dedicou à Ínsua uma série de “desenhos em movimento” - para serem visualizados em sequência, à luz de uma lanterna - onde se narra outro episódio: o quase naufrágio que sofrera na Ínsua, quando a meio do pic-nic que na ilha decidiram fazer, se abateu uma súbita tempestade, tendo sido todos resgatados a salvo, mas com bastante risco e muitas preces, corria o ano de 1934).

 

Após atravessarem o Rio Lima dirigiram-se os Romanos então mais para norte, pela costa, tendo finalmente chegado ao Rio Minho, o qual terão atravessado, certamente com o mesmo ou maior receio ainda, tendo visto do cimo do promontório a que hoje chamamos Monte Tegra, o Sol a ser engolido pelo Oceano. Um sol de um tamanho como nunca tinham visto e um mar imenso a sorvê-lo para o mundo das trevas, em que subitamente tudo mergulhou. Apavorados os soldados debandaram para sul. As legiões romanas só regressariam ao noroeste peninsular 40 anos depois, com Públio Crasso, que nos anos 96 a.C. comandou nova campanha a noroeste, tendo então tido notícia da riqueza de minérios que esta zona possuía e, muito provavelmente, da navegabilidade final do então Rio Báenis, que latinizando-se passou a ser o Minius de onde vem o nosso Minho.

 

Poucos anos após esta segunda incursão e já após a paz de Augusto, o Geógrafo Estrabão, apoiando-se nos relatos de Posidónio e Plínio o Velho, descreve a foz do Minho da seguinte forma:

 

Em seguida outros rios, e após estes o Lethes, a que alguns chamam Lima e outros Belião; também este flui desde território dos Celtiberos e Vaceios. Depois deste, o Báinis (outros, no entanto, dizem Minius), de longe o maior dos rios na Lusitânia e igualmente navegável por oitocentos estádios (Posidónio afirma que este corre desde território dos Cântabros). Diante da sua embocadura situam-se uma ilha e dois quebra-mares com ancoradouros. É justo louvar a natureza, porque estes rios têm as margens altas e capazes de receber o mar nos seus canais quando a maré sobe, de modo que não transbordam nem inundam as planícies. Foi precisamente este o limite da campanha de Bruto; mas mais adiante existem muitos outros rios, paralelos aos mencionados.” (in Geografia, Estrabão, cerca de 20 d.c.. Ou seja: há dois mil anos, a Ínsua já era descrita e utilizada, como revela a existência de dois ancoradouros).

 

Ou seja: há dois mil anos, a Ínsua já era descrita e utilizada, como revela a referência à existência de dois ancoradouros.

 

Porém, a primeira referência escrita conhecida sobre a Ínsua, é atribuída por muitos à seguinte passagem do “poema geográfico” conhecido por “Ora Marítima” ou “Orla Marítima”, de Rufo Fiesto Avieno, e que seria uma compilação, tradução de escritos de viagens (périplos, como se chamavam), de navegadores do Século V a.C.: Diz-se nessa parte do poema:

 

“Existe depois (“depois” de “duas ilhas, despovoadas pela estreiteza das suas paragens“, que parecem corresponder às duas ilhas Cies) antes das Rias de Vigo. uma ilha, em alto mar, rica em plantas e consagrada a Saturno. Porém, a força da sua natureza é tão potente que se algum navegador se aproximar, imediatamente o mar em volta da ilha se revolta, e a própria ilha agita, estremecendo o seu chão desde as profundidades, enquanto que todo o restante mar circundante permanece silencioso como um lago.” (in Ora Marítima, Afieno, Séc. IV, baseando-se provavelmente no Périplo de Himilicão – que remonta ao Século V a.C.).

 

Ora, se a Ínsua era conhecida pelos Romanos desde a sua chegada ao noroeste peninsular, se o Rio Minho, que nela desagua era já então navegável, pelo menos até Monção e se tivermos presente quer a existência de salinas por toda esta região, com destaque para as que recentemente foram postas a descoberto no Seixal, parece fazer todo o sentido a proposta de Crespán.

 

Com esta nova interpretação da Per Loca Marítima, a Ínsua e o Rio Minho (até Tuy) entram no mapa do Império Romano, a que se somam as Ilhas Cies, a Praya da Lanzada e a Praia do Castro da Catoira. Trata-se de um percurso de “cortar a respiração” pela intensa beleza dos lugares que cruza (a meio deste percurso temos Cerveira, seguida pelas ilhas da Boega e dos Amores, depois aquela a que chamam “Bela Marinheira”, Caminha e logo: a Ínsua.

 

A Insua a quem o Prof. Hermano Saraiva dedicou ums dos seus últimos programas que termina com um grito de socorro por esta ilha, entretanto esquecida de um passado que agora ressurge na teoria de Crespán, confirmando as suspeitas de muitos: que a Per loca Marítima passaria necessariamente por Caminha, que a dada altura seria conhecida por Aquis Celenae, Silenae, ou Cilenis.

 

Ignoro em absoluto se até à data foi realizado qualquer levantamento arqueológico na Ínsua. A teoria de Crespán e as referências da antiguidade à existência de dois ancoradouros;  o facto da Ilha poder ter sido habitada, ou de alguma forma objecto de rituais de culto, ainda antes do início da construção do Convento (o que seria possível dada existir na ilha uma fonte de água doce;  a mesma fonte que permitiu que frades lá vivessem a partir de 1392, alguns deles por mais de duas décadas sem nunca irem a terra); as referências à existência de uma ermida de culto a Santa Maria da Ínsua, nomesmo lugar onde depois foi edificado o Convento; as referências à prática na ilha de um um culto pré-românico a Saturno (para outros, a Neptuno); a existência de inúmeras camboas (poças escavadas nas rochas que funcionavam como armadilhas para os peixes que ali ficavam retidas após a baixa da maré) e de dois cemitérios, ainda hoje referidos por quem por último viveu na Ilha: os faroleiros, constituem razões para ficar na expectativa do que possa mais vir a ser descoberto.