27.6.21

O RIO, A PONTE E O DIA DA AMIZADE GALAICO-MINHOTA

 

Vista da janela sobre o Rio Minho, desde a ante-câmara do Arquivo Diocesano de Tuy/Catedral de Tuy

 

 

 

A Pandemia trouxe para muitos a experiência do regresso das fronteiras. Em Caminha ficámos outra vez separados de Santa Tecla, ainda que o Monte Trega - como lhe chamam os nossos queridos vizinhos - continue a tutelar o nosso horizonte.

Um dos conselhos que repetidamente dou a quem nos visita é o de não deixarem de fazer a travessia do Rio Minho no Ferry Boat Santa Rita de Cássia e de subir ao cume do Monte Santa Tecla.

Só a subida da estrada do Monte, por si só, vale a viagem até àquele cume de onde se alcança uma das vistas mais perturbadoras (de beleza e intensidade) que conheço.

A presença humana antiquíssima emanada dos vários núcleos de Castros (construções circulares em pedra anteriores à era cristã e provavelmente contemporâneas do início desta), completa o insólito daquele lugar único: dominador, marítimo, solar, lunar, vegetal, granítico, enfim: o lugar do Atlântico.

Talvez por isso sinto que Caminha não está completa sem que exista a possibilidade de “dar um salto” a Santa Tecla e, com tempo, descer à Praia do Moinho, jantar no Perro Verde, ou - nos meses estivais - ir a um Furancho, ou - com ainda mais vagar – à Taberna O Lagar en Eiras, regressando então pela Ponte da Amizade, já que o Ferry geralmente apanha-se só para ir (até pela irregularidade dos horários, determinada pela impossibilidade da travessia durante a maré vaza, ou durante a hora do almoço, ou durante o período nocturno, porém, até essa “limitação” acaba por dar mais um encanto ao “programa” Ferry, ao obrigar-nos a estar a par do horário das marés).

Os nossos vizinhos, por sua vez, têm uma espécie de inveja bem-disposta e bem resolvida da beleza de Caminha, do bem cuidados que estão os centros das vilas da raia fluvial (Âncora, Caminha e Cerveira): os habitués das povoações galegas da outra margem, (Camposancos, A Guarda, Rosal, San Miguel de Tabagon) sabem também dos horários do Ferry e usam-no, quando podem, em especial quando o Ferry pode navegar nas manhãs de Quarta-Feira, dia de feira aqui.

O Ferry é o último sobrevivente de uma antiquíssima tradição de utilização do Rio Minho como eixo de comunicação, também entre as duas margens do Minho, ancestralmente unidas por um fundo comum (desde logo a língua, o Galaico-português), ainda que tantas vezes separadas por decreto.

Um dos períodos em que as margens estivaram reciprocamente interditas correspondeu à guerra que se seguiu à aclamação em Lisboa de D. João IV, como Rei de Portugal (guerra da Restauração para os portugueses, “da Aclamação” para os espanhóis, que durou vinte e oito anos)

Um dos primeiros decretos de D. João IV foi precisamente o de punir com pena de morte e confisco de bens aquele que tivesse negócio ou trato com os súbditos de Castela.
Como teriam reagido as populações de aqui a essa mudança radical, a essa limitação “contra a natura” do rio?

Terão alguns reagido fazendo jus à origem da expressão “contrabando”, que designa a atitude daqueles que estavam contra o Bando, sendo “Bando” a designação que se dava aos que em nome de El Rei percorriam os centros das populações apregoando as novas leis do reino. Alguns estariam contra aquela nova realidade que lhes ditava a proibição de qualquer contacto com o vizinho de rio, com o Colega de ofício, com o amigo de infância, com o amor de toda a vida.

Habituados a usar a rio para se comunicarem alguns dos habitantes de ambas as margens passaram a usar o rio “contra o Bando”.

Ora, durante essa guerra um dia houve em que ambas as margens se voltaram a unir unir, parando literalmente por um dia as pilhagens as mortes violentas e a destruição, para celebrar e festejar em conjunto aquilo que só pode ser explicado por uma antiquíssima amizade, entre os alto e os baixos minhotos (os do Alto Minho, para os de aqui e os do Baixo Miño para os de lá).

Esse dia aconteceu num Domingo, a 20 de Outubro de 1658, dia de São Francisco. Nesse Domingo a guerra parou e numa variação da música de Chico Buarque: o dia amanheceu em paz.

O sucedido ficou registado para a posteridade numa carta que o Reverendo Gonçalo da Rocha de Morais escreveu no ano de 1721 para a recém criada Academia Portuguesa de História que nessa ano fora fundada.

Nessa carta - cujo original se encontra guardado na sala dos manuscritos da Biblioteca Nacional, que fez o favor de a digitalizar e de nos enviar - aquele Pároco, nascido e criado em Caminha - narra o que presenciou naquele Domingo, 20 de Outubro de 1658.

Tinha então o futuro Padre 13 anos e coubera-lhe segurar o pequeno bota fumeiro de incenso, com que acompanhou aquela tão insólita quanto inesperada procissão. Sessenta anos depois do que aconteceu nesse memorável dia, o Padre Gonçalo de Rocha Morais, considerou dever relatar os factos vividos, como registo para memória futura.

Esse manuscrito, de muito difícil leitura, volvidos que estão precisamente três séculos desde que foi redigido (1721), foi decifrado e transcrito pelo historiador de Caminha Serra de Carvalho que, juntamente com a leitura de outro manuscrito do mesmo pároco, intitulado “Grandezas da Villa de Caminha & seu Termo”, reconstituiu aqueles acontecimentos num artigo publicado no nº. 6 da Revista Caminiana, Ano IV, Junho de 1982, pp. 11 a 30.

Tudo teria começado numa incursão nocturna dos soldados portugueses capitaneados por António de Azevedo (escrivão da Câmara de Caminha e Capitão dos terços de Seixas e Lanhelas).

Pelas três da madrugada, saídos de Lanhelas (provavelmente da ilha do Paço de Lanhelas - que é várias vezes mencionada nos relatos feitos pelos nossos vizinhos em episódios dessa guerra, como lugar em que se encontrariam várias embarcações utilizadas pelos portugueses para os ataques) desembarcaram na povoação que fica em frente a Seixas, San Miguel de Tabagon, onde terão incendiado diversas casas, palheiros e celeiros.
 
Reagiram os espanhóis atacando os barcos atacando os barcos em que se tinham feito transportar os poprtugueses, inutilizando uns e obrigando os restantes a fugir para evitar a mesma sorte.

Impedidos de regressar, entrincheiraram-se os soldados portugueses no adro da Igreja de San Miguel de Tabagon (cujo campanário se vê ainda hoje da nossa margem, desde o cais de Seixas).  Aí  entrincheirados procuraram esperar até ao momento em que os viessem resgatar no local  previamente combinado, com o seu Capitão.

Durante os confrontos um dos nossos soldados terá arrombado a sacristia da Igreja, apoderando-se de um “vaso de prata onde estavam 2 partículas e 8 hóstias consagradas” .

Regressados a Lanhelas, o soldado que havia roubado o “Vaso Sagrado”, informa o seu Capitão do sucedido, procurando entregar-lhe o “espólio” de guerra.

Ao aperceber-se do que se tratava o Capitão “não quis sequer pôr-lhe as mãos”, pedindo de imediato que fosse chamado o Padre de Lanhelas, que era então o Reverendo João Alves Soutelo, de forma a que este se pronunciasse sobre o destino a dar àquele cálice da Eucaristia, um dos Santos Sacramentos da Santa Madre Igreja.

À chegada do Padre, ordenou o Capitão que todos os homens  se descobrissem e que o autor do roubo, também de cabeça descoberta, se ajoelhasse e relatasse ao Padre de Lanhelas o que ocorrera.

Ouvida a confissão do soldado ajoelhado, tomou o Padre em suas mãos o Cálice, guardando-o na Igreja de São Martinho de Lanhelas, ficando a aguardar pelas instruções do Cabido da Sé de Braga, a quem de imediato mandara participar o sucedido.

Poucos dias após chegaram as esperadas instruções.
Determinou o Cabido de Braga que o Padre de Lanhelas deveria levar secretamente o cálice à Vila de Caminha para que desde aí fosse restituído à igreja de onde tinha sido retirado, levando-o com a maior pompa e solenidade possível, “obrigando todos os clérigos da vila e termo de Caminha, uma légoa ao redor, sob pena de excomunhão, a acompanhar o Divino Sacramento até à Galiza, tal como se costuma fazer na procissão de Corpus Christi.” Designou então para o efeito o próximo Domingo, dia de São Francisco, 20 de Outubro.

É assim que no dia 20 de Outubro comparecem em Caminha, não só os clérigos obrigados a tal, sob pena de excomunhão, como muitos dos nobres da região, assim como o próprio Conde de Castello Melhor  e seu filho Luís Vasconcelos e Sousa , bem como o 1º Alcaide-Mór de Caminha, o já referido, Rodrigo Pereira de Sotto Mayor.

A estes juntam-se milhares de pessoas que acorrem nesse dia a Caminha.

Nos dois cais e na praia se acumulavam centenas de barcos que em breve seguiriam em procissão fluvial e com a recomendada solenidade e pompa de verdadeira procissão do Corpo de Cristo, até San Miguel de Tabagon, procurando assim devolver o que para ambas as margens era sagrado e - como tal - deveria estar acima das guerras, a ponto de todos terem aceite como natural aquela suspensão por um dia, dos confrontos sangrentos e devastadores (os quais continuariam logo no dia seguinte e por mais dez anos, a título de mera curiosidade, o Capitão da incursão em que se deu o roubo do Cálice Sagrado, terá falecido exactamente um ano após essa mesma incursão no Forte de São Pedro da Torre, onde ficou prisioneiro dos espanhóis).

O relato da procissão realizada naquele dia merece ser transcrito, tal a riqueza dos detalhes e o seu implícito significado de hino à amizade entre estes dois povos vizinhos, unidos há milhares de anos por um rio.

“No momento do embarque das sagradas partículas, um Batalhão de Infantaria da guarnição da vila, fez uma descarga de mosqueteiro, salvando das muralhas do novo revelam de São João, em frente à Matriz, a artilharia da praça com estrondoso fragor.
Seguindo rio acima, lá se dirigiu para Espanha o enorme cortejo fluvial da reparação ao sacrílego acto, tendo sido saudado já no meio do rio, pela artilharia da Fortaleza de Nossa Senhora da Ínsua. Chegados que foram à margem contrária, aguardavam a grande procissão fluvial, impecavelmente formados, os soldados de um batalhão de ordenanças do comando do sargento-mór de La Guardia, os quais fizeram, por sua vez, uma grande descarga de mosquetes.

Chegada a barca que levava o Santíssimo, ajoelharam todos de cabeças descobertas junto das águas do Rio Minho, onde se encontrava o abade da freguesia de San Miguel de Tabagón, Francisco Perez Pintelos, com capa de asperges, acompanhado por doze clérigos.

Aguardavam esta procissão, mas de vinte cruzes alçadas com pendões e pálio, a cujas varas seguravam seis nobres da Galiza, tudo ao redor de duas charolas, em que figuravam as imagens de Nosso Senhor e de São Miguel, padroeiro da igreja, assim como muito povo da freguesia.

Parando a nossa barca onde ia o Santíssimo Sacramento, chamou o abade Pintelos para que desembarcassem, o que logo executaram os nossos, fazendo sair o nosso Pálio que era sustentado por oito varas de prata seguras por outros tantos clérigos, sob o qual seguia o eleito Bispo de Angra com o Sagrado Vaso, desviando-se o Pálio dos espanhóis.

Seguiram à frente do nosso Pálio as cruzes dos espanhóis, encorporando-se as nossas depois deste.

Já todos desembarcados, rogou muito o Padre Perez Pintelos ao Bispo de Angra que quisesse levar o Santíssimo até à igreja, ficando ele junto do Pálio, seguindo diante dos sacerdotes portugueses os espanhóis cantando louvores Deus.

Chegados à Igreja de San Miguel de Tabagon, pediu o abade Pintelos a D. Pedro de Sousa (Bispo de Angra) e aos sacerdotes portugueses que cantassem a missa, o que fizeram com muita solenidade, estando galegos e portugueses todos juntos, com muita compostura, vendo-se nos olhos de todos muitas lágrimas de contentamento, pois havia dezoito anos que as lutas tinham começado entre Portugal e Castela.

Antes do embarque, nas margens do rio, divertiam-se e folgavam os novos com moças de sua idade, bailando e cantando ao som de gaita de foles e outros instrumentos, sendo para todos um dia de muito gosto e alegria, despedindo-se todos com muitas saudades.”

Assim termina o relato feito pelo Padre Gonçalo à Academia Portuguesa de História, o relato daquele dia que bem poderia ser o dia da amizade galaico-minhota, testemunhada e unida por um rio há milhares de anos.

Curiosamente, no precioso Arquivo Diocesano de Tuy (que ainda hoje funciona na Catedral de Tuy), até onde nos deslocámos para recolher mais informação sobre estes acontecimentos, agradecendo-se ao Sr. Padre D. Avelino Bouzon toda a ajuda que nos prestou - existe uma janela que poderia ilustrar esta história (ver foto). É uma enorme janela aberta em par sobre o Rio Minho que nos une!



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