28.3.21

O Caso da Princesa Arménia, peregrina no Século XI (Artigo publicado na Edição de 26/03/2021 do Jornal "O Caminhense")


Igreja de Vaspurakan (c. 921, mandada edificar por Gagik I, Arquitecto: Bispo Manuel, Ilha de Aghtamar, actual Turquia, antiga Arménia)


Mosteiro de São Salvador de Castro de Avelãs, data de construão desconhecida, lugar onde se teria dado o caso da Princesa Arménia e do Cavaleiro Mendo Alam

A protecção da condição de peregrino foi (e procura continuar a ser) uma das razões do actual crescente sucesso dos “Caminhos de Santiago”. Talvez por isso uma das histórias mais antigas sobre peregrinos seja justamente a da flagrante violação desse dever de protecção que desde os tempos mais remotos da Idade Média se procura assegurar

Neste ano Santo, de Jacobeo provavelmente não assistiremos ao regresso em massa dos peregrinos que a partir desta altura começávamos a ver a calcorrear troços do caminho de Santiago ou a aguardar a próxima travessia do Ferry. Entretanto o Papa Francisco, decidiu prorrogar por mais um ano “os benefícios rituais concedidos aos fieis que visitem a Basílica Catedral Metropolitana de Santiago durante o ano em que o dia da celebração  memória litúrgica do Santo - 25 de Julho - se celebra a um Domingo, como acontece neste ano de 2021.

Na sua mensagem, o Papa Francisco convida ao caminho, sugerindo que nos desliguemos das coisas que nos pesam, tendo presente que na vida não caminhamos sozinhos e que devemos confiar nos nossos companheiros sem suspeitas e desconfianças.

O código de solidariedade que acompanha a peregrinação a Santiago encontra-se em muitos dos seus sinais, práticas e costumes - a título de exemplo a antiga prática de oferecer ao peregrino da comida que ele conseguisse retirar com a sua vieira, o dever de hospitalidade.

A protecção da condição de peregrino foi (e procura continuar a ser) uma das razões do actual crescente sucesso dos “Caminhos de Santiago”. Talvez por isso uma das histórias mais antigas sobre peregrinos seja justamente a da flagrante violação desse dever de protecção que desde os tempos mais remotos da Idade Média se procura assegurar. Refiro-me à história do “Conde Preso”, contando em romanças de tradição oral e que Almeida Garret, no seu Romanceiro, transcreveu da seguinte forma:

“Preso vai o conde, preso,
preso vai a bom recado;
Não vai preso por ladrão,
Nem por homem ter matado,
Mas por violar a donzela
Que vinha de San Tiago:
Não bastou dormir com ela,
Senão dá-la ao seu criado!
Acometeu-a na serra,
Mui longe do povoado:
Por morta ali a deixara
Sem mais dó, sem mais cuidado
Chorou três dias, três noites,
E mais teria chorado,
Senão que Deus sempre acode
A amparar o desgraçado.
Passou por ali um velho,
Um pobre velho soldado,
Suas barbas brancas de neve,
Em sua espada abordoado;
Vieiras traz na esclavina,
O chapéu delas cercado;
Chegou-se à pobre romeira
Com muito amor, muito agrado:
«Não chores mais, filha minha,
Filha, demais tens chorado;
Que esse vilão cavaleiro
Preso vai a bom recado.»
Levou consigo a donzela
O bom velho do soldado;
Vão à presença del-rei,
Onde o conde era levado:
– «Eu te requeiro, bom rei,
Pelo Apóstolo sagrado,
Que nesta sua romeira
O foro seja guardado.
Da lei divina é casar-se,
Da humana ser degolado:
Que não valem fidalguias
Onde Deus é o agravado.
Disse el-rei aos do conselho
Com semblante carregado:
– «Sem mais detença, este feito
Quero já desembargado.»
– «Visto está o feito, visto,
Julgado está, bem julgado:
Ou há-de casar com ela,
Ou se não... ser degolado.»
– «Pois que me praz» disse o rei:
O algoz que seja chamado:
Ou já casar, co a romeira
Ou aqui ser degolado.»
– «Venham algoz e cutelo.
Respondeu o acusado:
Mas antes morrer mil vezes
Que viver envergonhado»
Agora ouvireis o velho,
O bom velho do soldado:
– «Fazeis, bom rei, má justiça,
Mau feito tendes julgado:
Primeiro casar com ela,
E depois ser degolado.
Lava-se a honra com sangue,
Mas não se lava o pecado»
Palavras não eram ditas,
A espada tinha arrojado,
Despe insígnias de romeiro,
Despe as armas de soldado,
Nos trajos de um santo bispo
Aparece transformado;
Sua mitra de pedras finas,
De oiro puro o seu cajado:
Tomou a mão da romeira,
A mão do conde há tomado,
Por palavras de presente
Ali os tem desposado.
Choravam todos que o viam,
Chorava mais o culpado;
Chorando, pedia a morte
Por não ficar desonrado.
O santo bispo o absolvia
Contrito de seu pecado:
Dali o levam por morto
Que nem o algoz foi chamado,
Justiça de Deus foi nele,
Antes de uma hora é finado!
Mas acudiu àquela alma
O Apóstolo sagrado,
Que outro não era o romeiro,
O bispo nem o soldado.

No primeiro livro de linhagens de Portugal que se conhece, o chamado Livro Velho das Linhagens, que se supõe escrito no Século XIII, aparece uma referência a um “afilhamento forçado”, cometido por um Cavaleiro/Abade, Conde Mendo Alam (ou Alanis ou Alam), que no Mosteiro de São Salvador de Castro de Avelãs, teria hospedado uma princesa Arménia que iria de peregrinação a Santiago de Compostela.

Lê-se naquele livro, na parte dedicada à linhagem dos Braganções (uma das cinco principais linhagens existentes no Século anterior à fundação do reino) que “D. Mendo Alão de Bragança filhou por força uma filha do Rey da Arménia que hia em romaria a Santiago e fez nela D. Fernão Mendes, o Velho e D. Ouriana Mendes”. Noutro apontamento de linhagens, conhecido por Fragmento , encontra-se notícia do mesmo acontecimento: “D. Alam foi clérigo e filho-dalgo (fidalgo) , e filhou a filha d’El Rey da Arménia, quando ia em oração a Santiago e foi sa hospedada em São Salvador de Castro de Avelãs.” Já no Nobiliário do Conde de D. Pedro de Barcelos (Século XIV), a parte dedicada à linhagem dos Braganções (Título 38) começa justamente com o referido Mendo Alão, que dá como casado com Dona Francisca (sem mais), ambos pais de Fernão Mendes de Bragança, o Velho e de Ourana Mendes de Bragança. De referir - a talhe de foice - que neste mesmo Título 38 do Nobiliário do Conde de Barcelos surge a referência a Álvaro Pires de Castro, filho de Aldonça Lourenço (Valadares) e de Pedro de Castro (o da Guerra), ou seja: Álvaro Pires de Castro, o único irmão inteiro de Inês de Castro - e 1º Conde de Caminha - é referido naquele nobiliário, como sendo descendente directo daquele mesmo Mendo Alão e de sua mulher, o que faz de Inês de Castro, provável descendente directa da princesa Arménia, a ser verdade a história/lenda do “rapto da princesa da Arménia”.

Diversos estudos ou comentários foram-se sucedendo quanto à probabilidade de ser verdadeiro esse episódio “fundador” de uma linhagem que o tempo acabaria por revelar impar na nossa História (se percorrermos os vários descendentes desse episódio encontramos: Santo António de Lisboa, Inês de Castro, D. Lara de Castro - que casou com o Infante D. Duarte, irmão de D. João IV e que faleceu encarcerado na Torre de Milão - Duque de Caminha (1º e 2º Duques de Caminha), Fernando Pessoa…

Um desses estudos foi feito na Argentina por um genealogista e jornalista do jornal “La Nacion” de Buenos Aires, Narciso Binayan Carmona. O estudo, publicado em 1978, intitula-se “Uma princesa Arménia en Compostela en el siglo XI. Su Genealogia”.

A partir desse e de outros estudos anteriores, é proposta a identificação da princesa Arménia como sendo a Princesa Joana Ardruzni, que seria filha do Rei Senekerin do Reino de Vaspurakan , neta de Gagik I (também nomeado por Cacício I) e que terá sido um dos primeiros reinos cristãos. Aquele reino tinha a sua sede e paláciona ilha do Lago Van chamada Aghtamar. Aí mandou Cagik I edificar uma das mais notáveis igrejas da história do cristianismo: a igreja de Aghtamar, na ilha com o mesmo nome. A essa mesma família real Ardruzni (ou Ardzuni, ou Arzerúni, como também é designada), pertence um dos primeiros historiadores Arménios, Tomás Ardzuni e que no Século X deixou escrita a “História da Casa Arzerúnio”, traduzida para Francês no Século XIX por Marie-Félicité Brosset.

Ora, o curioso é que o próprio mosteiro de Castro de Avelãs acaba por ser mais semelhante (na parte que resta da sua construção primitiva) com a igreja de Aghtamar (cuja data de construção se situa entre 915 a 921) do que com qualquer outra igreja em Portugal, sendo aliás um dos únicos exemplares em Portugal da chamada arquitectura Romano-Mudejar. Ao contrário do que acontece com a Igreja de Aghtamar ainda hoje ignoramos a data em que terá sido edificado a Igreja de Castro de Avelãs, pese embora serem conhecidas referências à sua existência enquanto lugar de acolhimento de peregrinos, pelo menos desde o Século XII.

A ter ocorrido o episódio narrado no Livro Velho, no Fragmento e nas Romanças de tradição oral, o mesmo terá acontecido imediatamente após o fim do reino da Vaspurância, o que ocorreu a 1021, com a sua passagem para o Império Bizantino, na sequência de acordo de paz feito pelo seu último Rei, Serekin, pai da Princesa Arménia.

Considerando a devoção patente na Igreja de Aghtamar, a circunstância daquela dinastia ser a única cristã das várias casas reais arménias, faz sentido não só a ideia da peregrinação a Santiago de Compostela, como não deixa aliás de ser intrigante que o arquitecto da Igreja de Aghtamar surja identificado (no excelente site dedicado
àquela igreja – e vale mesmo a pena ver as imagens do seu interior) como sendo o “Monge, Bispo Manuel” (sem, porém, se esclarecer qual a sua origem, bem como a de um nome próprio como “Manuel” no reino de Vaspurakan).

A ter ocorrido essa peregrinação faz também sentido a hospedagem no Convento de Castro de Avelãs, assim como a sua ligação ao referido Conde Francês, que como outros cavaleiros integravam a Ordem Beneditina, vocacionada desde a sua fundação a servir os pobres, os peregrinos
O lugar de Castro de Avelãs estava no mapa dos principais itinerários romanos que ligavam Roma, França, Portugal e Espanha, constituindo paragem obrigatória da via XVII do Itinerário de Antonino nas peregrinações a Santiago de Compostela.

Mil anos depois a dúvida sobre este episódio subsiste. Entretanto, nos principais sites de genealogia, a princesa Ardzuni é confirmada como mulher de Mendo Alão e mãe de Fernão Mendes de Bragança, o Velho, e Ourana Mendes de Bragança. Se foi “filhada à força”, como diz o Livro Velho, poderá ser a outra parte do mistério que jamais se poderá desvendar, quanto à origem arménia, em breve o ADN o poderá demonstrar, já que é hoje possível saber onde estão os supostos descendentes desse mesmo episódio.

Uma coisa é certa: gravita em torno das mulheres que antecederam e sucederam àquela princesa, uma aura de mistério, beleza e fado que não deixa de surpreender.

Desde logo a própria origem do nome da Ilha Aghtamar. Segundo a lenda, o lago deveria o seu nome uma história de amor entre um Nobre Arménio e uma princesa, de nome Tâmara, que vivia na Ilha do Lago de Van (então Arménia, hoje Turquia). Todas as noites, em segredo, a princesa acendia uma fogueira numa das escarpas da ilha. O seu amado mergulhava então no lago e guiado por aquela luz, nadava o nobre Arménio ao encontro da Princesa Tâmara, que o aguardava, junto ao fogo. Numa noite, o Rei terá sido informado do segredo. Aguardou que a princesa fosse ao local onde acendia a sua fogueira, esperou que ela repetisse o fogo, aguardou que o mesmo pudesse ser visto do outro lado da margem da ilha, aguardou um pouco mais e dirigiu-se então à fogueira, apagando-a. Segundo a lenda uma tempestade abateu-se então sobre o lago negro de Van. Segundo a mesma lenda, desde então que nesse lago se ouve o grito do amante da princesa arménia Tâmara: “Ak Tâmar!”, “Ak Tâmar!” (aqui Tâmara, aqui Tâmara!), perdido no meio da tempestade, sem a luz da fogueira que lhe servia de orientação (em homenagem a esta história os Arménios fizeram uma estátua de uma mulher que acena com um braço erguido para o lago, estátua que se encontra no Lago de Sevan).

Seria a Princesa Tâmara do lago a que deu nome (Aktamar ou, actualmente, Aghtamar) avó da Princesa Joana Ardzuni?

Seria a Princesa Joana Ardzuni: 4ª avó de Santo António de Pádua (nascido em Lisboa em 1190, falecido em Pádua em 1231); 7ª avó da Castelhana Maria de Molina, rainha consorte, mulher de Sancho IV de Leão e Castela e Rainha Regente nos reinados de Fernando IV e do seu neto Afonso XI, ambos de Leão e Castela?; 8ª avó da Portuguesa Aldonça Lourenço Valadares por quem se enamorou, o Galego (de Monforte de Lemos) D. Pedro Fernandes de Castro, o da Guerra, bisneto de Sancho IV de Castela e com quem teve pelo menos dois filhos: Álvaro Pires de Castro (1º Conde de Arraiolos e de Viana da Foz do Lima, onde D. Fernando fez incluir o Condado de Caminha e 1º Condestável de Portugal)?; 9ª avó dos irmãos Inês de Castro e Álvaro Pires de Castro?; 10ª Avó de Beatriz Infanta de Portugal, filha de D. Pedro I e D. Inês de Castro?; 11ª Avó de Isabel de Portugal, dada como filha de Beatriz Infanta de Portugal - e de seu meio irmão, o futuro Rei D. Fernando - que casou com Afonso, Duque de Noroña e Gijon, avós do primeiro Marquês de Vila Real (casa do futuro Ducado de Caminha)?;  16ª Avó de Beatriz de Meneses, que casou com Pedro de Médicis   17ª Avó de Maria de Lara e Meneses, curiosamente denominada por “A Peregrina”, irmã do 1º Duque de Caminha e que em segredo casou com o Infante D. Duarte, irmão de D. João IV, o mesmo que mandou executar o seu sobrinho D. Miguel Luís de Noronha,e que viu o seu irmão partir de Vila Viçosa, por não se entender com a sua mulher, D. Luíza de Guzman, que lhe censurava o indiscreto interesse por uma das suas aias, provavelmente aquela com quem o mesmo Infante D. Duarte viria a casar em Vienna, no ano de 1635, antes de ser preso, tendo falecido em Milão, no ano de 1649?; Toda esta descendência consta hoje acessível e comprovável nos sítios de genealogia. Outras certamente poderão estabelecer-se ou revelar-se. Não deixa, porém, de ser notável como a partir de um episódio novelesco encontramos na vida dos seus descendentes, uma espécie de marca de tragédia amorosa que parece fazer parte do ADN dos Braganções e seus sucessores.
Como diz um amigo alentejano (numa variante do dito Italiano com o mesmo sentido): se não é verdade é bem caçado (si non e vero e ben trovato).

Gondarém, 16 de Março de 2021

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