14.2.21

Ganhei o dourado do trigo

 

 

O instante de onde vem o para sempre da esperança, o instante da visão da paz, da sua presença, esse instante aconteceu ontem em directo, tão desprevenidamente como desprevenida e directamente nos entraram as imagens da invasão do Capitólio.

Aquele instante súbito. Com a luminosidade única da côr mais maravilhosa, mais próxima do maravilhoso dourado dos campos de trigo do Princepezinho, apareceu como uma Garça dessa Graça que é estarmos vivos, com o mesmo olhar de pássaro, com a leveza da inocência que só de si é a mais bela das belezas.

E éramos um ali, o nosso melhor ali, a vir-nos buscar. Lembrei-me da personificação da esperança: as novas gerações, a renovação, o conforto da probabilidade de que essa beleza, enquanto existir, prevalecerá.

Essa beleza não é daquele pássaro cortante de intensidade majestática no olhar mais próximo dessa certeza que até hoje vi.
Essa beleza vem da nossa própria circunstância comum: de experimentarmos a verdadeira união, ou a força dela, ainda que saibamos que essa mesma vertigem (a do sentimento de união, de comunhão), possa gerar a perda da possibilidade da ilusão do eu, perante a força dos imensos outros de que no fundo são feitos todos os tempos em que essa multidão de imensos outros, toma conta de nós, transformando-nos involuntariamente em soldados de um exército sem vontades próprias. Enquanto pensava isto, entre estúpidas lágrimas que já desistira de procurar moderar, comecei a ouvir naquele olhar e naquelas mãos a frase do refrão da mais enigmática canção do Nobel Dylan: The answer is blowin' in the wind.

Seria essa a legenda daquela imagem que para sempre ficará gravada: Amanda Gorman, a quem o presidente eleito ouviu um dia ler um poema (no mês de Dezembro passado). Quis conhecê-la e pediu-lhe para escrever um poema para o dia da inauguração. Ela escreveu. Durante a sua preparação leu. Leu os discursos de todos os grandes da História do Capitólio. Depois aconteceu o que aconteceu no dia 6, naquele lugar. Ela viu, ouviu e escreveu aquilo que Disse, como ninguém o dirá assim (provavelmente nem ela própria), mais nenhuma vez.

Que momento! Entretanto o dia amanheceu e acordei no mesmo mundo que ontem, ainda que com essa certeza: a de que vale a pena e é disso que se alimenta o sempre da esperança. Desses vislumbres da beleza pura.

Quando a raposa pede ao Principezinho para a cativar, diz-lhe:

“se tu me cativas, a minha vida ficará cheia de sol. Reonhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos fazem-me fugir para debaixo da terra. Os teus chamar-me-ão para fora da toca, como se fossem uma música. E depois, olha! Vês lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa nenhuma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, far-me-à lembrar de ti. E eu passarei a amar o barulho do vento no trigo…”

O diálogo termina com a despedida:

“– Ai! – suspirou a raposa – Ai que me vou pôr a chorar…
– A culpa é tua – disse o principezinho. – Eu não te desejava mal nenhum, mas tu pediste para te cativar!
– Pois pedi – disse a raposa.
– Mas agora vais-te pôr a chorar! – disse o principezinho.
– Pois vou – disse a raposa.
– Então não ganhaste nada com isso!
– Ai ganhei, sim, senhor! – disse a raposa. – Ganhei a cor do trigo."


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