14.2.21

O HOMO STUPIDUS E NÓS, OS SAPIENS





Nos últimos vinte anos têm-se acumulado notícias de descobertas surpreendentes sobre o Homem de Neanderthal a quem nós (Homo Sapiens Sapiens) – há cerca de trinta mil anos teríamos sucedido no território Europeu - que fora a sua casa durante trezentos mil anos - e a quem chamámos estúpido.

1.    O MENINO DE LAPEDO

A primeira notícia foi a da descoberta de um fóssil de esqueleto de um menino (que ficou conhecido como o “menino de Lapedo”) e que projectou o lugar do “Vale de Lapedo” para o mundo da Arqueologia e da História da humanidade.

No Abrigo designado por “Lagar o Velho”, nesse vale em Leiria, foi encontrada a sepultura de uma criança de cinco anos que se revelou o mais perfeito exemplo de híbrido Neanderthal e Sapiens. A criança apresentava-se como um mosaico misto de Neadenthal e Sapiens. Efectuados os testes de datação, as ossadas foram situadas cerca de 22.500 a.c.. (ou seja, supostamente milhares de anos depois da suposta desaparição do Homem de neanderthal da Peníncula Ibérica).

 Ter-se-à encontrado nas suas características mistas de ora Neaderthal, ora Sapiens, evidência do que muitos já suspeitavam: a existência de cruzamentos, bem sucedidos, entre duas “populações”, supostamente pertencentes a duas espécies distintas do mesmo género (hominídeos) que a dada altura – e ainda que por pouco tempo no caso da Europa - coincidiram no mesmo espaço, no final da era do gelo (cerca de 30.000 a.c. ou 32.000 BF (before present), acasalando e gerando o que se poderiam chamar de quimeras (caso se aceite estarmos perante espécies diferentes).

De imediato choveram críticas ao que parecia o regresso da heresia à palentologia. O Homem Moderno, descendente directo do Sapiens, supostamente superior ao Homem de Neanderthal e cuja chegada à Europa teria determinado a extinção deste, tinha afinal não só convivido com o seu antecessor Neanderthal, como chegara mesmo a gerar o que seria uma quimera (cruzamento entre duas espécies diferentes). Ora, essa foi uma das primeiras e mais fortes críticas à interpretação da ossada do menino de Lapedo como constituindo o primeiro hominídeo  híbrido de Sapiens e Neanderthal, que sendo duas espécies distintas não poderiam (ou não deveriam poder) gerar entre si.

De facto a possibilidade de procriação entre Neandertais e Sapiens apenas se demonstrou ter ocorrido (e após a análise de vários genomas sequenciados) no acasalamento entre homem Sapiens e mulher Neanderthal, já que o cromossoma “Y”, responsável pela determinação do sexo masculino, não tem no Homem Moderno quaisquer vestígios de Neandarthalidade, do que se concluíu que só os Homens Sapiens e as mulheres Neanderthais (e não as mulheres Sapiens e os Homens Neanderthais) contribuíram para a miscigenação  entre as duas espécies ou raças (conforme a opção que seja tomada sobre a questão). Esta “assimetria” na possibilidade de gestação (apenas possível nos cruzamentos Homem Sapiens/Mulher Neanderthal), terá certamente contribuído para e progressivo desaparecimento da população Neanderthal, que sendo já então pouco numerosa e geneticamente enfraquecida por longos períodos de enorme consanguinidade, poderá ter diminuído drasticamente a sua capacidade reprodutiva, o que não acontecia com a população mais numerosa dos Sapiens, em crescimento demográfico contínuo e com muito maior diversidade genética.

Um outro aspecto que poderá ter colaborado quer nos cruzamentos mistos com geração, quer na extinção do Homem de Neanderthal, terá sido a possibilidade (real) dos Sapiens só terem adquirido imunidade aos vírus que encontraram no seu novo território (Europa) por via dessa miscenização, transmitindo para os seus filhos a imunidade genética que possuíam os seus avôs maternos Neanderthais, podendo também ter acontecido que os Neanderthais, por sua vez, não tivessem adquirido essa mesma imunidade, relativamente aos novos vírus de que os Sapiens pudessem ser portadores.

2.    A REVELAÇÃO DO ADN NEANDERTHAL

A segunda notícia foi a sequenciação de 60% do ADN nuclear de uma mulher Neanderthal - uma mulher que viveu na Sibéria (nos Montes Altai, Rússia) há 122 mil anos.

Seis anos após ter sido sequenciado pela primeira vez o genoma humano, o que ocorreu em 2004, conseguimos, em 2010, chegar pela via genética a dados absolutamente surpreendentes sobre um dos grupos de hominídeos mais próximos de nós.

Com graus de variação relevantes (entre uma média inferior a 1% nos africanos e de 4%, nos Europeus, assim como nas populações da Ásia), a sequenciação do genoma do Neanderthal e a sua comparação com o do Homem Moderno demonstrou que não só tinham existido casamentos mistos bem sucedidos na descendência, como as consequências desse (as)salto genético permanecem “vivas” no nosso fundo genético.

Poderá assim a Península Ibérica (e para algins Paleontólogos: Portugal) ter sido um dos últimos redutos do Homem de Neanderthal. É este o entendimento de João Zilhão, Investigador e Professor da Universidade de Barcelona.  Como se a história se repetisse e a Península Ibérica (e nesta provavelmente a sua parte Noroeste), tivesse sido para os Neanderthais ante os Sapiens o que foi para Galaicos e Lusitanos e outros povos que habitaram o noroeste peninsular, face aos Romanos: O último lugar de refúgio perante o “invasor”.

Por outro lado a baixa densidade populacional dos Neanderthais - que distribuídos pelo continente, nos últimos cem mil anos, não seriam mais do que 70.000 (J.P. Bocquet Appel & A. Degioanni Neanderthal Demographie estimates” Current Anthropology, citado por Silvana Condemi e François Savatier; Néanderthal, mon frére, Champ Sciences – 2019 , pp. 124
), o que considerando a totalidade do território ocupado e o número médio de cada clã (cerca de 35 individuos), daria a cada clã uma área de cerca de 5.000 Km2, correspondendo a um quadrado de 70 km por 70 Km - explicaria uma diminuição dos contactos entre clãs diferentes, o que poderá ter estado na origem no enfraquecimento genético e na progressiva diminuição dessa população.

As instáveis condições climatéricas, do último período inter-glaciar (57-000 a 29.000 a.c.) poderão ter contribuído para o efectivo isolamento dos diversos clãs de Neanderthais o que determinou o progressivo empobrecimento genético decorrente de uma inevitável consanguinidade extrema, que poderá também explicar o que muitos apontam como um outro facto concorrente da sua extinção: a diminuição da feritildade Neanderthal versus a superioridade demográfica e maior robustez genética dos Sapiens..

Finalmente - e a título de mera curiosidade - uma das razões adiantadas por alguns paleontólogos para a “derrota” do Neanderthal pelos Sapiens, terá sido a aliança destes com os lobos.

 Enquanto o Neanderthal caçava em grupo, procurando sobretudo grandes presas que permitissem a constituição de reservas para futuro, os Sapiens passaram caçar com cão, triplicando, segundo foi estudado, a sua produtividade venatória, o que permitia aquela acumulação, necessária à travessia dos períodos de carência de alimentos.

3.    CAPACIDADE DE EXPRESSÃO SIMBÓLICA DO NEANDERTHAL

A terceira das notícias surpreendentes resultou da atribuição aos Neanderthais da autoria de uma das mais notáveis colecções de Arte Rupestre no mundo (notável no sentido da qualidade da própria expressão dos motivos desenhados, em que sobressaem a capacidade figurativa e expressiva de animais como o leão ou o cavalo).

Depois de em 1994 três arqueólogos franceses terem descoberto em Valon Pont-Arc, uma gruta contendo diversos desenhos e pinturas do paleolítico, diversos testes de datação foram sendo efectuados ao longo dos tempos, tendo os mais recentes concluído que as primeiras pinturas rupestres datariam do paleolítico superior, cerca de 37.000 a 33.500 anos. A datação obtida coincide com um período em que o Homo Sapiens ainda não tinha chegado à Europa, razão pela qual se atribuiu a autoria daquele impressionante conjunto pictórico aos Neanderthais.

Já em 2010, perto de Múrcia, na localidade conhecida por “Cueva de los Aviones”, encontraram-se diversas conchas perfuradas e que haviam sido pintadas com  pigmentos minerais complexos (laranja, encarnado e preto), cuja datação remonta a 115.000 a.c., altura em que também os únicos hominídeos que aqui viviam (Europa, Península Ibérica) eram também os Neanderthais.

Curiosamente, junto ao pescoço do Menino de Lapedo foi encontrada uma concha tingida de ocre, que se supõe ter feito parte de um colar. A concha pintada do menino de Lapedo e as conchas perfuradas e pintadas na Cueva dos Aviones (Múrcia, Espanha), bem que se poderia ter transformado no símbolo da perturbante descoberta: O Neanderthal, muito antes do próprio Sapiens - cerca de pelo menos 40.000 anos, considerando a datação dos pigmentos das conchas da Cueva de los Aviones – 115.000  anos e os primeiros artefactos equivalentes do Sapiens em África - já  oproduzia graficamente o que consideramos como privativo e distintivo do humano: o símbolo.

Afinal, Neanderthal e Sapiens foram não só contemporâneos, como ambos detinham  as mesmas capacidades cognitivas e de expressão. Aliás a existir uma ordenação de mais para menos, provavelmente seríamos levados a colocar as capacidades intelectuais do Homem Stupidus - como então foi baptizado pelo zoólogo Ernst Haecke o hominídeo encontrado em Neanderthal.


4.    O GENE NEANDERTHAL E A ACTUAL PANDEMIA

A quarta notícia - e esta não poderia ser mais contemporânea deste tempo que vivemos -  foi a constatação cientifica da existência de uma relação entre os quadros mais severos de COVID e a presença de um gene Neanderthal nesses pacientes (o último destes estudos foi publicado na Revista Nature em 30 de Setembro de 2020 e elenca os estudos anteriores que concluem no mesmo sentido: o risco genético para a existência de quadros severos dos infetados pelo SARS-CoV2 “Corona Vírus Disease 2019” – Covid19 –  como risco a acrescer aos factor de risco dois principais: idade e estado geral de saúde - está associado à presença de gene “Neaderthal”, no ADN de algumas populações que o herdaram do cruzamento destes com os Sapiens ocorrido há cerca de 50.000 anos (segundo a data apontada no estudo referido), quanto aos Europeus.

Estas quatro noticias, todas elas dos últimos dez anos, iluminaram com foco de estrela principal um antepassado que vínhamos desvalorizando. Se não chegámos ao ponto de o baptizar como Homo Stupidus, como pretendia o Zoólogo, não deixámos, de reservar para nós a designação de Homo Sapiens, às vezes “sapiens, sapiens” (inteligente) para o primeiro Homo Sapiens encontrado em África há cerca de 315.000.

5.    E CAMINHA COM ISSO?

A concentração na Península Ibérica de grande parte das manifestações de Arte Rupestre, durante a parte final da idade do gelo, conjugada com a circunstância de ter sido a Peninsula Ibérica e nesta Portugal,  para muitos paleontólogos, um dos últimos redutos do Homem de Neanderthal; com a evidência de ter existido cruzamento de espécies na Europa, entre Sapiens e Neanderthal algures nos últimos 50.000 a.c., assim como o sucessivo “abaixamento” temporal do momento “crepuscular” do Homem de Neanderthal, tornam os vestígios arqueológicos do Paleolítico, ou pré-históricos, existentes no concelho de Caminha, uma certeza de um promissor futuro arqueológico para o concelho.

Referimo-nos não só as jazidas da chamada industrial lítica na foz do Minho, que foram objecto de atenção especial de vários arqueólogos (M. Sarmento; E. Jalhay; Serpa Pinto; A. Viana; Baptista Lopes; J. Meireles) e que desde o final do Século XIX vêm alertando para a importância dos vestígios de utensílios de corte ou perfuração, característicos da idade da pedra e utilizados pelas populações de Neanderthais, como às gravuras de arte rupestre que foram sendo encontradas no Monte de Góios, as chamadas Lage das Fogaças e Lage das Carvalheiras e as restantes gravuras que foram sendo descobertas recentemente, por ocasião da construção do troço Caminha/Gondarém, em cujos trabalhos preparatórios foi efectuado uma prospecção e levantamento que pode ser consultado on line aqui:

https://www.museuarqueologicodocarmo.pt/publicacoes/outras_publicacoes/III_congresso_actas/artigos/Art4.6_IIICAAP.pdf (Publicação em pdf da Associação dos Arqueólogos Portugueses; Arqueologia em Portugal – Estado da Questão; pp. 571 a 598), estudo onde se enumeram os anteriores trabalhos sobre aquele santuário rupestre, inventariando-se com imagens e descrições técnicas, cada uma das gravuras actualmente existentes e que aguardam a classificação como monumento nacional (anúncio 12/2019, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 10, de 15 de janeiro de 2019, rectificada Declaração de Rectificação 744/2019 de 8 de Outubro).

Para quem estiver interessado, a relação da arte rupestre no noroeste português pode ser encontrada e percorrida (na maior parte com imagens associadas à ficha de cada elemento) em http://cvarn.org/.

 










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