14.2.21

ÍNSUA: A ESTRELA DO MAR ESQUECIDA

 



 

Uma nova interpretação da Via XX, ou Per Loca Marítima (via romana descrita no “Itinerário de Antonino”) vem colocar Caminha no mapa do Império Romano. Caminha e em particular a belíssima e perturbadora Ínsua.

 

Há cerca de dois mil anos, o Império Romano, criou a primeira rede intercontinental de vias (umas marítimas, outras terrestres). “Todos os caminhos vão dar a Roma”, traduz, enquanto expressão popular, essa mesma “novidade” na história da humanidade: Os Romanos criaram a primeira rede de caminhos com uma lógica não só militar (permitir a incursão dos seus exércitos, à medida que ia satisfazendo a sua fome de império), como comercial (permitir a ampliação do comércio de mercadorias e a circulação de pessoas entre os mais distantes pontos do mundo conhecido até então). Um mundo que acabaria no Cabo Finisterra (onde a terra acabava e começaria o mundo desconhecido).

 

Se os Actos de Paulo e Tecla (a que nos dedicámos nos três números anteriores do Caminhense) são para muitos o primeiro Romance, enquanto género literário, da história da humanidade, o “Itinerário de Antonino” que faz a relação das vias romanas existentes no Século III – data em que terá sido escrito ou compilado - será o primeiro guia de viagens da humanidade: enumerando localidades, indicando o tipo de estabelecimentos existentes em cada uma delas e as respectivas distâncias.

 

Entre as 372 vias descritas nesse itinerário 34 dizem respeito à então Hispânia (nome Romano para a Península Ibérica) e 11 a Portugal, sendo que 2 destas (as vias nº. 19 e 20) se localizavam todas nesta parte noroeste da Península Ibérica.

 

Um dos quebra-cabeças que a interpretação desse itinerário suscita há séculos, é o de determinar qual seria a exacta localização da via XX, conhecida também por “PER LOCA MARITIMA” e cujo nome significa “através de lugares marítimos. O itinerário dessa via tem sido objecto das mais diversas propostas de localização do seu traçado, não tendo ainda a ciência, os historiadores, navegadores, romanistas, chegado a consenso.

 

Procurar desvendar o enigma da “Per Loca Marítima” que ligaria Braga (Bracara Augusta) a Asturicam, obriga ao cruzamento de vários saberes e fontes, algumas das quais perdidas e de que só se tem conhecimento indirecto. Aos lugares foram sendo dados diferentes nomes, sendo difícil, relativamente a muitos deles, estabelecer correspondência, ao que acresce a alteração da configuração de várias lugares da costa noroeste peninsular.

 

Porém, com o avanço protagonizado pela segunda grande rede na história da humanidade, a internet [no que se incluem as bases de dado geradas e respectivos “motores de busca”, com a progressiva digitalização da que já foi escrito pela espécie humana numa nova Torre de Babel digital, e com as ferramentas que permitem navegar através de toda a terra, proceder a medições exactas e ver até a evolução dos locais na fita do seu tempo, é hoje possível, a qualquer um, procurar decifrar o quadro que tantas e tão estimulantes questões tem suscitado, incorporando-se assim numa discussão em aberto. O quadro do enigma é o seguinte:

 


 

(quadro retirado do artigo, de César M. González Crespán, Parte de la vía romana nº XX “per loca marítima” iba por el mar, publicado no Blog Astrovigo da Associação Astronómica de Vigo a 15/09/2015). [www.astrovigo.es]

 

Recentemente, um navegador/investigador Galego – César M. González Crespán, propôs “Uma Nova Interpretação da Via Romana nº. XX, “per loca marítima”, que aponta para a Ínsua como o termo do primeiro troço daquela mítica via. Estudo publicado na Revista Glaupis, Boletim do Instituto de Estudos Vigueses, Ano XXI – nº. 21 – 2016 e que gentilmente me foi enviado pelo seu autor, a quem agradeço o gesto em tempos de pandemia.

.

 

Defende Crespán  que as quatro secções da Per Loca via se faziam apenas por rio e por mar e não por terra. O Percurso da Per Loca iniciar-se-ia em Braga (Bracara), repartindo o caminho com a Via Romana nº. XIX até Tuy (Tude). A partir deste ponto a Per Loca seria uma variante a essa via até Astorga. A variante constituiria assim a continuação da Via XIX, pela Via XX, com início em Tuy, continuando pelo Rio Minho, águas abaixo, através do seu canal navegável, até à sua confluência com o mar, na Ínsua Nova (designada como Aquis Celenis no Itinerário). De Caminha/Insua seguiria, via marítima, até ao Cabo de Bicos (Vicos Caporum no Itinerário) na Ilha Sul das ilhas Cies. Depois continuaria essa mesma rota em direcção a norte até ao Castro da praia da Lanzada (município e província de O Grove, já na província de Pontevedra) e de aqui seguiria, até chegar à foz do Rio Ulla, na praia de Bamio (na Catoira), próximo das Torres do Oeste (lugar que corresponde no itinerário de Antonino a Glandimiro). A partir deste ponto a Per Loca Marítima, passa a fazer-se por terra, até Santiago de Compostela (Atricondo no Itinerário), passando por Bigantum, Caranico, Lugo (Luco Augusti), chegando então à capital conventual de Astorga.

 

Para chegar a esta proposta de percurso, Crespán enunciou as seguintes razões ou dados:

 

1.     O nome da via “per loca marítima”, significa “por lugares marítimos” indicando que uma parte dessa via decorria por mar;

2.     As unidades de medida utilizadas no itinerário para as quatro secções fluvial e marítimas consideradas, estão em stadia (estádios, correspondendo cada stadia aos 600 pés que media o estádio de Olympia, cerca de 185 metros), ao contrário do que acontece com as unidades de medida que no Itinerário se utilizam para todas as restantes secções millia passum (milha romana, que corresponde a mil passos duplos de um soldado médio em passo natural, não forçado, o que corresponde a cerca 1.478 metros. Ora a unidade de medida stadia era reservada pelos gregos (e romanos) para as medições de navegação ou de astronomia e estava claramente diferenciada dos valores indicados para as restantes secções, já que as quatro secções marítimas do itinerário têm todas magnitudes superiores a 100, começando por “C”, (100 romano) enquanto que nas restantes secções, em que a medida começa por “X” (dez romano);

3.     As distâncias de todas as secções estão equilibradas, sendo da mesma ordem de valores e correspondendo  a jornadas de navegação de ”um dia”.

4.     A existência do Cabo de Bicos na Ilha Sul das Ilhas Ciés (Cabo de Bicos que em latim corresponde ao nome da segunda “estação” marítima indicada no Itinerário: Vicos Caporum);

5.     Aquis Celenis corresponderá também a um lugar na foz do Rio Minho, Moledo, Caminha, ou a Ínsua, que nada tem a ver com localidade com o mesmo nome, em Caldas de Reis, Espanha, Galiza. Para além de ser comum a existência de localidades com o mesmo nome, existe sempre a possibilidade de ter havido erro na transcrição.

6.     O termo latino “item”, advérbio, significa “também” ou “da mesma maneira”.

7.     A terminação “am” em “Asturicam” é de um acusativo e significa “até” (neste caso “até Astorga”);

8.     O advérbio “usque” significa “continuamente”, “sem interrupção”, ou “em continuação”.

 

Esta nova interpretação da Per Loca Marítima vem colocar Caminha no mapa do Império Romano. Caminha e em particular a belíssima e perturbadora Ínsua (Nova, para a diferenciar da dita “Velha”, através da qual esteve em tempos ligada à margem de Camposancos no sopé do Monte Trega (Santa Tecla). Relativamente a esta ligação perdida, existe a referência de um dos primeiros Frades do Convento - Frade Póvoas - que habitou a ilha posteriormente à edificação do Convento Franciscano (1392) que aí existiu até à extinção das Ordens religiosas em 1832, e que deixou aos seus irmãos Franciscanos o aviso de se acautelarem com as cabras de Camposancos, porque estas por vezes vinham comer as heras e a horta!

 

 

 

Este estudo leva-nos à pergunta: Terá Caminha (ou a Ínsua) sido um porto Romano? Corresponderá Caminha à “Aquis Celenis” indicada como estação da Per Loca Marítima?

 

Se lermos as passagens da “Geografia” de Estrabão, (escrito e publicado por volta do ano 23) não podemos deixar de persentir que alguma importância Caminha deveria ter, para merecer do geógrafo greco-romano atenção que este lhe deu:

 

Depois deste, o Báinis  (outros, no entanto, dizem Minho), é de longe o maior dos rios na Lusitânia e igualmente navegável por oitocentos estádios (Posidónio afirma que este corre desde território dos Cântabros). Diante da sua embocadura situa-se uma ilha com dois quebra-mares e ancoradouros. (...) Foi precisamente este o limite da campanha de Bruto.”

 

Refere-se Estrabão a Décios Júnios Brutos, Procônsul da Galaecia e primeiro dos Romanos a chegar a este limite: a Caminha. Aqui terminando a sua incursão pela costa noroeste da Península, contra os Galaicos, procurando vingar o apoio destes a Viriato.

 

Na verdade, no ano 138 antes do nascimento de Cristo, Brutus terá chegado ao Rio Lima. Conta-se que a legião de soldados que o acompanhava, perante tanta beleza, entenderam estar perante o mitológico Rio Lethes, o Rio do Esquecimento, desde que Artabros e Turdulos aí se envolveram em batalha, após o que ambos  os contentores dispersaram, acabando por ficar e povoar as suas margens, tendo-se esquecido do caminho de regresso.

 

Perante aqueles campos, em que reconheceram os Campos Elísios que eram no mito a margem do Rio Lethes e perante aquele Rio, chamado “Esquecimento”, entenderam os Romanos estar perante a fronteira entre o “Mundo dos vivos” e o “Mundo dos mortos”. Estacaram e todos se recusaram a cruzá-lo, como lhes ordenara Décios Brutus.

 

Então no silêncio do temor de todos pelo lugar, Brutus dirigiu-se ao porta-estandarte, retirou-lhe o estandarte com a Águia imperial e empunhando-o ao alto atravessou o rio. Chegado à outra margem, Brutus ( “O Galaico”) ter-se-á voltado para os soldados que permaneciam na outra margem, começando a chamar, um por um, e pelo respectivo nome, os centuriões, os quais, com os seus soldados,  lhe obedeceram então.

 

É este o episódio que se encontra representado na tapeçaria de Portalegre da autoria de José de Almada Negreiros exposta no Hotel Santa Luzia (o mesmo Almada Negreiros que dedicou à Ínsua uma série de “desenhos em movimento” - para serem visualizados em sequência, à luz de uma lanterna - onde se narra outro episódio: o quase naufrágio que sofrera na Ínsua, quando a meio do pic-nic que na ilha decidiram fazer, se abateu uma súbita tempestade, tendo sido todos resgatados a salvo, mas com bastante risco e muitas preces, corria o ano de 1934).

 

Após atravessarem o Rio Lima dirigiram-se os Romanos então mais para norte, pela costa, tendo finalmente chegado ao Rio Minho, o qual terão atravessado, certamente com o mesmo ou maior receio ainda, tendo visto do cimo do promontório a que hoje chamamos Monte Tegra, o Sol a ser engolido pelo Oceano. Um sol de um tamanho como nunca tinham visto e um mar imenso a sorvê-lo para o mundo das trevas, em que subitamente tudo mergulhou. Apavorados os soldados debandaram para sul. As legiões romanas só regressariam ao noroeste peninsular 40 anos depois, com Públio Crasso, que nos anos 96 a.C. comandou nova campanha a noroeste, tendo então tido notícia da riqueza de minérios que esta zona possuía e, muito provavelmente, da navegabilidade final do então Rio Báenis, que latinizando-se passou a ser o Minius de onde vem o nosso Minho.

 

Poucos anos após esta segunda incursão e já após a paz de Augusto, o Geógrafo Estrabão, apoiando-se nos relatos de Posidónio e Plínio o Velho, descreve a foz do Minho da seguinte forma:

 

Em seguida outros rios, e após estes o Lethes, a que alguns chamam Lima e outros Belião; também este flui desde território dos Celtiberos e Vaceios. Depois deste, o Báinis (outros, no entanto, dizem Minius), de longe o maior dos rios na Lusitânia e igualmente navegável por oitocentos estádios (Posidónio afirma que este corre desde território dos Cântabros). Diante da sua embocadura situam-se uma ilha e dois quebra-mares com ancoradouros. É justo louvar a natureza, porque estes rios têm as margens altas e capazes de receber o mar nos seus canais quando a maré sobe, de modo que não transbordam nem inundam as planícies. Foi precisamente este o limite da campanha de Bruto; mas mais adiante existem muitos outros rios, paralelos aos mencionados.” (in Geografia, Estrabão, cerca de 20 d.c.. Ou seja: há dois mil anos, a Ínsua já era descrita e utilizada, como revela a existência de dois ancoradouros).

 

Ou seja: há dois mil anos, a Ínsua já era descrita e utilizada, como revela a referência à existência de dois ancoradouros.

 

Porém, a primeira referência escrita conhecida sobre a Ínsua, é atribuída por muitos à seguinte passagem do “poema geográfico” conhecido por “Ora Marítima” ou “Orla Marítima”, de Rufo Fiesto Avieno, e que seria uma compilação, tradução de escritos de viagens (périplos, como se chamavam), de navegadores do Século V a.C.: Diz-se nessa parte do poema:

 

“Existe depois (“depois” de “duas ilhas, despovoadas pela estreiteza das suas paragens“, que parecem corresponder às duas ilhas Cies) antes das Rias de Vigo. uma ilha, em alto mar, rica em plantas e consagrada a Saturno. Porém, a força da sua natureza é tão potente que se algum navegador se aproximar, imediatamente o mar em volta da ilha se revolta, e a própria ilha agita, estremecendo o seu chão desde as profundidades, enquanto que todo o restante mar circundante permanece silencioso como um lago.” (in Ora Marítima, Afieno, Séc. IV, baseando-se provavelmente no Périplo de Himilicão – que remonta ao Século V a.C.).

 

Ora, se a Ínsua era conhecida pelos Romanos desde a sua chegada ao noroeste peninsular, se o Rio Minho, que nela desagua era já então navegável, pelo menos até Monção e se tivermos presente quer a existência de salinas por toda esta região, com destaque para as que recentemente foram postas a descoberto no Seixal, parece fazer todo o sentido a proposta de Crespán.

 

Com esta nova interpretação da Per Loca Marítima, a Ínsua e o Rio Minho (até Tuy) entram no mapa do Império Romano, a que se somam as Ilhas Cies, a Praya da Lanzada e a Praia do Castro da Catoira. Trata-se de um percurso de “cortar a respiração” pela intensa beleza dos lugares que cruza (a meio deste percurso temos Cerveira, seguida pelas ilhas da Boega e dos Amores, depois aquela a que chamam “Bela Marinheira”, Caminha e logo: a Ínsua.

 

A Insua a quem o Prof. Hermano Saraiva dedicou ums dos seus últimos programas que termina com um grito de socorro por esta ilha, entretanto esquecida de um passado que agora ressurge na teoria de Crespán, confirmando as suspeitas de muitos: que a Per loca Marítima passaria necessariamente por Caminha, que a dada altura seria conhecida por Aquis Celenae, Silenae, ou Cilenis.

 

Ignoro em absoluto se até à data foi realizado qualquer levantamento arqueológico na Ínsua. A teoria de Crespán e as referências da antiguidade à existência de dois ancoradouros;  o facto da Ilha poder ter sido habitada, ou de alguma forma objecto de rituais de culto, ainda antes do início da construção do Convento (o que seria possível dada existir na ilha uma fonte de água doce;  a mesma fonte que permitiu que frades lá vivessem a partir de 1392, alguns deles por mais de duas décadas sem nunca irem a terra); as referências à existência de uma ermida de culto a Santa Maria da Ínsua, nomesmo lugar onde depois foi edificado o Convento; as referências à prática na ilha de um um culto pré-românico a Saturno (para outros, a Neptuno); a existência de inúmeras camboas (poças escavadas nas rochas que funcionavam como armadilhas para os peixes que ali ficavam retidas após a baixa da maré) e de dois cemitérios, ainda hoje referidos por quem por último viveu na Ilha: os faroleiros, constituem razões para ficar na expectativa do que possa mais vir a ser descoberto.

 

 

Sem comentários: