4.10.23

O JOALHEIRO (The Jewller – Tom Rapp / Pearls Before Pigs – by This Mortal Coil)

Conheci um joalheiro a quem esta canção poderia ter sido dedicada. O seu nome é Frederic Zaavy (9-10-1964 – 15-09-2011) e conheci-o durante a Exposição “Alba Atroz, no Príncipe Real. Jantámos depois, em Agosto de 2010 na Comporta, num jantar inesquecível, como o são todas as despedidas conscientes. O próximo painel que vou pintar ser- lhe-à dedicado, como teria sido certamente a canção “The Jeweller, caso esse outro génio (Tom Rapp dos Pearls Before Pigs) o tivesse conhecido: A Frederic Zaavy - joalheiro a quem a casa Fabergé encomendou a mais fantástica colecção de jóias produzida pelo milagre que somos e a que agora, depreciativamente, nos referimos como “humanidade”
THE JEWELLER A canção acompanha-me desde meados dos anos 80 e fez parte do som da brisa que subindo desde o Mondego, entrava pela janela do quarto da Dias da Silva (um quarto que foi o meu melhor lugar de sempre. Tinha um guarda fatos, uma cama, uma mesa de cabeceira uma mesa e uma estante para livros e uma pequena televisão, outrora de um carro, a preto e branco. Acrescentei à janela um pano cor de laranja, duplo lençol de lona envelhecida. Com ele o interior do quarto ficava com a melhor luz em que vivi. Comprei também um púcaro para aquecer o leite e uma enorme chávena de porcelana. Foi numas das ruas da Baixa de Coimbra, uma daquelas de estreiteza medieval que vão dar à igreja de Santiago. É uma das minhas canções do fundo do pensamento, quase desde que a ouvi pela primeira vez (1986). (Depois de comprar a chávena, juntei dinheiro para comprar um “tijolo” da Sony com dois leitores de cassetes. Comprei-o na loja da Singer que existia na Rua da Sofia. Gravava as cassetes com método e disciplina. A cassete pirata dos This Mortal Coil creio que me foi emprestada pelo Américo da Rádio Livre. Era um dos maiores rebeldes de Coimbra, com nariz entre o de um boxeur e o do Depardieu, um olhar sempre divertido e um sobretudo como o meu, amarrotado, diário, cinzento de flanela espessa e toque de Cachemira - tinha também uma namorada linda, saída do filme da “Diva e os Gangsters” ou do “La Lune dans Le Caniveau” que então passou no Teatro Académico Gil Vicente, num dos ciclos que mensalmente dedicava a um realizador, escolhido pelo Manuel Guerra, nesse mês e ano - 1986 - Jean-Jacques Beineix - creio que se chamava Laura e enchia o Tropical do perfume negro/fatal da Nouvelle Vague dos futuristas que sempre de negro encenavam e coreografavam os lugares das mesmas atmosferas do Joy Division; Cocteu Twins / This Mortal Coil; Smiths; algumas músicas dos Sétima (Legião); duas dos Heróis do Mar e várias dos GNR]). Comprei a edição em CD na loja dos “discos/tesouro” que existia na Travessa que havia na Travessa da Queimada, que fazia esquina com as águas furtadas da Rua Diário de Notícias, a rua da minha primeira casa depois daquele quarto de Coimbra. Também aí a luz era especialmente luminosa, filtrada pelo espelho do Tejo e ligeiramente colorida de uma réstia do outro laranja, vinda dos reflexos das telhas, sobretudo nos dias de calor, quando o sol estava obliquo a elas. A canção, por sua vez era sombria, mas aconchegava como o meu sobretudo de Coimbra, especialmente nas manhãs em que ia para a faculdade pelo Jardim Botânico e levava os “head-phones”, da Toshiba que o meu pai trouxera um dia do Japão (1979!) e que tinham umas esponjas também cor de laranja para não magoarem ou ouvidos (música que se cruzava com os Joy Division e com o Wim Mertens e com Mahler - o Schubert veio muito mais tarde). A canção foi escrita por Tom Rapp fundador de uma banda chamada “Pearls Before Pigs”, numa óbvia referência à passagem de onde vem a expressão “dar pérolas a porcos” [Sermão da Montanha no Novo Testamento da Bíblia / Mateus 7:6 : Não dês aos cães o que é sagrado, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas; para que não as espezinhem e, voltando-se, vos despedacem.] Interrompo-me várias vezes e ainda não escrevi o que me fez começar a escrever. Vim aqui para agradecer. Agradecer o momento que vivi no passado Domingo dia 1 de Outubro, por ocasião da colocação dos painéis no tapume a meio da Rua Direita. Agradecer a todos os que vieram: Ao Jaime Couto, afilhado da minha Avó Olga, que veio com o seu neto Raúl; ao Manuel Lobo (Garcia da Selva) e à sua pincepezinha Ema, ao Sr. Jorge (Duque de Caminha) e Diva do Olimpo Culinário que foi durante anos o Restaurante Duque de Caminha; ao Chico do After Eight, guardião e testemunha viva do melhor deste quarteirão e da sua possibilidade; à Nettie Burnete, inspirada e inspiradora presença, igualmente joalheira deste quarteirão, à Minda, Daniel, Vanessa e Núria, vizinhos e amigos da Alminha de Gondarém, que continuam o luxo da boa vizinhança há mais de cinco gerações, à Filipa e ao Sebastião, Arquitectos que têm Caminha no coração e na mão que risca, ao gentil Galego anónimo que vindo de Orense aqui passou, ao Amândio que fez o favor de me aturar mais uma vez, alimentando-me o ego e o estômago, ao Prof. Paulo Bento a aos seus doze alunos / discípulos que fizeram também o favor de me ouvir, assim como o Prof. Miguel Gonçalves, Presidente da Junta de Freguesia de Matriz e Vilarelho, que coincidiu com essa visita e pacientemente deixou que eu falasse, demais, como é timbre; à D. Fernanda (“Fifi”) nos tempos do João Ratão, por se ter deixado fotografar a cada vez (e foram três) as vezes que coloquei os painéis na rua. Devo porém um agradecimento muito especial a duas pessoas: Ao Sr. Manuel Ferreira que desde as primeiras “instalações” que fui fazendo ao longo destes anos, sempre me acompanhou, fazendo que o milagre que foi cada um desses momentos, acontecesse. Nada teria feito sem a sua força e empenho. Desde o dia 10 de Junho de 2017 (“Mil Anos de Solidão”), passando pela exposição na Ilha dos Amores (“a nous amours” – Agosto de 2021) até à viagem e colocação dos painéis no Mercado do Bolhão, 2022, o Sr. Manuel tem sido a Alminha física da Alminha e sem ele nada disto tinha sido possível. A última “instalação”, aquela que fiz no passado dia 1 de Outubro é também obra sua. Para além do Sr. Manuel tenho de agradecer ao Paulo Tude autor da fotografia que desencadeou este arrazoado. Olho para a fotografia que o Paulo Tude tirou e fez.me o favor de enviar e revejo-me totalmente, é o melhor retrato que me fizeram e vejo-a logo com aquela canção de fundo. Curiosamente o Paulo fotografou-me em 2013, quando a ideia da Alminha começou a ganhar “corpo” e posteriormente, já na Alminha em Caminha, a fotografia que se encontra a seis publicações desta – e que se vê logo que é dele. O Paulo Tude publica as suas fotografias no Instagram. Eu sempre gostei das imagens que os fotógrafos nos dão. Sempre gostei de olhar pelo olhar dos outros e o Paulo tem um olhar igual ao da canção de Tom Rudd, do genial Tom Rudd, como genial foi Frederic Zaavy e o Paulo Tude! Finalmente devo o maior obrigado de todos a quem verdadeiramente me desculpa o indesculpável - o capricho de continuar a pintar: a minha querida mulher, que se assina “Mar”! Interrompo novamente a revisão do que escrevi. A grua que se vê na fotografia do Paulo, vai embora. Vejo que o chefe da obra já está no fim da rua. Recolho os postais e os três painéis em choupo 30/30 (“uma para o Sr. dono da obra, outra para o Sr. empreiteiro e outra para o Sr. encarregado geral da obra”). Já vai no fundo da rua. Tenho de correr para o apanhar. Está a trabalhar, ajuda o camion a fazer a manobra. Diz que depois passará lá. E continua o que está a fazer. Compreendo-o perfeitamente. Pergunto ainda se não posso deixar dentro da carrinha que faz a manobra e insiste que depois passará por lá. Ainda lhe procuro dizer que não saberei se estarei quando passar, mas compreendo perfeitamente, sinceramente. Regresso a casa. Tenho de parar duas vezes porque só de correr aqueles poucos metros me doem as pernas – hesito em culpar a vacina, prefiro continuar a acreditar que me pode ter salvo, ainda que marcado. Vejo o encarregado da Obra. Despede-se dos homens depois de indicar as medidas da próxima cobertura (que isolará apenas a entrada do prédio “até à lage”. Compreendo que será mais uma oportunidade. A de pintar o próximo painel com as medidas que esse novo tapume venha a ter. Comprimento-o da varanda, diz que já aqui passa. Vem ao postigo e passo-lhe as três placas de choupo, os três postais e a “folha de rua” que fiz e entreguei a cada um a quem antes agradeci. A que agora acrescento – e mais vale tarde que nunca – ao dono da obra e responsáveis pela mesma, que desde o primeiro momento acolheram e incentivaram o que acabou por se realizar no passado dia 1 Obrigado! Regresso à revisão do texto e falha-me o tempo e a paciência para a continuar. Alea Jacta Est. Digo nestas alturas, em processo de auto-convencimento face ao complexo da desistência precoce, provavelmente na base de todo o comportamento obsessivo compulsivo que procuro não ter ou, pelo menos, não transparecer. Regresso à varanda e vejo o Sr. Encarregado da obra partir (é de Vila Praia de Âncora e diz-me que a filha veio ver os painéis. Obrigado também, conhecendo os pais de aqui, sei que lhe será entregue o quadrado de choupo o postal e a folha de rua. Quando vou para fechar a janela, sinto um olhar que me faz olhar para trás. É uma pomba, a mesma que ontem entrou e saiu. Olha-me tranquila. Recuo até meio da sala, para lhe desimpedir a saída pela janela. Procuro não assustá-la, mas lembro-me que o voar das pombas é muito mais preciso do que o dospardais e outros pássaris pequeninos. Não tem a precisão do das gaivotas, mas não estando assustadas têm um controlo que lhes permite alcançar a saída, que também identificam melhor que os piscos. Lembro-me da rola que tive encarcerada numa gaiola sobre o guarda-fatos do quarto de há pouco. Salvei-a dos gatos, quando percebi que estando prestes a ser alcançada, no ramo da laranjeira onde pousara, não voara quando atingi com um sapato a copa da árvore, ao contrário dos gatos, que fugiram imediatamente, dando-me tempo para o “resgate” [e desencadeando tudo o que a partir de então se passou: a ida a uma loja de rua paralela à rua da Sofia, onde se vendiam aquelas gaiolas grandes, de madeira e arame, para os pássaros de maior porte. O regresso a pé com a gaiola na mão, porque não queria ocupar o Trólei com um volume tão grande e intrigante nas mãos de um manifesto caloiro. O suplício do acordar ao nascer do sol com o irritantemente trinuante e insinuante arrullhar da rola. Disso tudo me lembro agora que olho a pomba e me recordo dos dias em que experimentei se ela já estava boa da asa. Calaftando os vidros das janelas, com pano preto de feltro que tomara de empréstimo do Círculo de Artes Plásticas, onde então pintava, mesmo em frente ao lugar de onde regressava (Clepsidra). Quanto chegava tarde aprendi a colocar um pano de feltro preto sobre a gaiola. Ao acordar retirava-o. Sincronizava assim os despertares. Confesso que passei a tirar o pano só quando já estava mesmo pronto para sair, abria a janela e virava-a para ela, para que não se desabituasse do céu a que haveria de voltar. Especialmente quando fazia aquele céu que só em Coimbra, de um azul/Portugal dos Pequeninos, azul Raul Lino em aguarela de Roque Gameiro. Fotografo a pomba no seu percurso até à saída e filmo a sua despedida. Regresso à revisão. Os barulhos da obra. Levantam o novo tapume. Volto a ouvir a canção para terminar a revisão. Está longo isto. Vai ultrapassar o limite do texto possível no Instagram (intrigante limitação quando o peso principal é o das imagens. Talvez se fizer um directo e ler o texto possa conseguir depois editar um vídeo publicável, mas não pode ter mais de 60 minutos. Não sei qual o tempo de leitura de uma página. Mas deve ser superior a 1 minuto. Quando estudava sabia que conseguia ler e estudar um máximo de 10 páginas por hora. Dividia assim os dias de estudo pelo número de páginas de cada sebenta (variando a verdadeira média em função do grau de clareza / objectividade e loucura do autor, sendo que as duas primeiras qualidades eram as mais raras, salva excepção total à regra: Prof. Baptista Machado in Direito Internacional). Tradução (traição) da letra: O Joalheiro tem uma oficina na esquina da rua. à noite, com óculos pequenos, ele procura polir velhas moedas. Usa saliva, panos e cinzas. Fá-las brilhar com as cinzas. Ele conhece o poder das cinzas. Ele louva a Deus com cinzas. As moedas frequentemente são antigas quando chegam ao joalheiro. Com sua mão e cinzas, ele tenta o seu melhor. Sabe que apenas pode polir, não reparar os riscos. Sabe que até moedas novas trazem cicatrizes, então simplesmente sorri. Ele conhece o poder das cinzas. Ele louva a Deus com cinzas. Na mais profunda das noites, Ambas as mãos lhe ardem. Frequentemente abrem-se dolorosamente e o sangue escorre por elas. Trabalha para tirar das caras de moedas escuras, as marcas de tantas eras. Desejaria poder curar as cicatrizes. Quando se esquece, por vezes chora. Conhece o poder das cinzas. Ele louva a Deus com cinzas. Ele sabe, Ele sabe. Ele louva a Deus com cinzas.

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