30.12.22

O tempo é redondo e no entretanto move-se

[Postal da 1ª Alminha / Cerveira, 2014] O tempo é redondo e no entretanto move-se É este o latejar tic-tac, a cada constatação da repetição travestida em novidade, banda sonora deste deja vu/já estive aqui. Sabemos que podem vir outros cometas, sabemos que virão certamente outros glaciares e outros Hitler's ou Stalines e sabemos também que tendo a terra 4.500.000.000 de anos e tendo a espécie humana, Homo sapiens, aparecido há cerca de 300.000, sendo que há cerca de 100.000 anos começamos a enterrar os nossos mortos e a escrever primeiras, tendo as primeiras civilizações humanas de que há notícia surgido há não mais de 10.000 anos. Nesta espécie de milésimo de segundo a que sabe a desproporção entre a nossa idade, enquanto espécie e a idade da terra, aprendemos pelo menos que existe o tempo e que o mesmo é ritmado por ciclos Neste final de ano, saímos dele com a sensação de “já vivi isto tudo”, “já estivemos aqui”. Nesse mesmo momento percebemos que sendo o tempo circular, conseguimos antecipar o que é que se segue a cada repetição constatada, o que é que ela anuncia. Temos a história a dizer-nos isso nos jornais de há cem anos, hoje digitalizados e acessíveis desde qualquer parte do mundo . Se folhearmos os jornais da década de trinta, percebemos que só o decor temporal, a arquitectura dos prédios, das ideias e das palavras, é que mudou. A paisagem de fundo é a mesma, o ruído de fundo é o mesmo. Se continuarmos a folhear qualquer um desses jornais e percorrermos as páginas das décadas seguintes [o que no caso da imprensa francesa se consegue com enorme facilidade, já que há jornais regionais que duraram desde o início do século XX até ao início da II Grande Guerra (altura em que a maior parte deles viu a sua publicação interrompida] estremecemos com o cenário que os eventos agora repetidos antecipam. Medo! A palavra que reprimimos ao antecipar o que os ventos repetidos trazem, começa a estar presente no olhar sobre as coisas. Começamos a ver com o medo a fazer parte do olhar. Procuramos os sinais da confirmação da repetição que encontrámos, como se uma parte de nós quisesse ainda (e muito) negar a realidade intuída. Talvez por isso nos seja tão difícil ver as notícias de hoje e o súbito consenso generalizado, também na gritaria com que nos exprimimos, aquela que julgávamos privativa dos idos tempos dos linchamentos públicos, das denúncias por inimizades antigas, dos excessos das massas bestiais, anónimas e, logo, inimputáveis, imperseguiveis. A força das massas, a força da turba, o motor de História, o degelo da humanidade, cada revolução seria o clímax da luta de classes, transformada em guerra civil. A sucessivos clímaxes estaríamos assim tão condenados como está a humanidade condenada aos ciclos dos glaciares. Estaríamos assim condenados pela natureza das coisas ao inevitável conflito e precariedade. Qualquer paz seria ilusória, não só porque provisória, mas também porque impura, já que nos dias dela cresciam também as sementes daquela luta e dos seus ciclos: Primeiro a conquista, depois o domínio, a que se segue a servidão até ao detonador da revolução: o momento em que se ultrapassado o limite do sacrifício. Aquele momento em que a existência do populus, da população como esse todo colectivo a que chamamos espécie humana deixasse de acreditar na sua viabilidade (incluindo, ou a começar, pela individual). A luta pela sobrevivência, a nossa matriz/bússola animal a revelar-se como magneto no movimento da história da própria terra. Toda ela estaria unida na observância da mesma lei fundamental, lei observada pelo mais elementar neutrino, e pelo mais complexo ser humano, como o foi o recentemente falecido Papa emérito Bento XVI: Permanecer vivo o maior lapso de tempo, dispensando o mínimo de energia. Quando a vida é ameaçada, a espécie humana como que tomaria para si as rédeas do corcel da história, apagando o que tinha falhado e reconstruindo uma nova realidade em que fosse possível experimentar de novo a viabilidade. Tudo isto se passaria ao nível de um inconsciente colectivo, que seria uma nuvem a que estaríamos todos ligados, seja através do ADN seja através de outros aglutinadores colectivos, como a religião, o desporto, as nações, a mesa……… O tsunami histórico a que chamamos populismo é isso mesmo. A força do populus ameaçado está antes daqueles que entre si encontre como os melhores catalisadores para a destruição de mais uma hipótese de sobrevivência que fracassou. A força do populus de cada tempo de revolução. Esse seria o grande turbopropulsor da história, que acelera a entropia, como a onda do tsunami suga a água da beira mar. Seria essa a força que está antes de todos os líderes no seu seio encontrados. Inevitável? Sim, mas do mesmo modo que essa força destrói, também contém já em si as sementes do que há de prevalecer, quando no entretanto o tempo mover-se para uma nova ilusão de viabilidade. Do mesmo modo que toda a paz é precária, também toda a entropia, toda a destruição também o é. Nunca choveu que non escampara”, diz-se na Galiza da frente. À tempestade segue-se a bonança. É curioso como replicamos relativamente à nossa própria história as metáforas do clima, das manifestações do tempo natural. Ora se o que destrói é a descrença colectiva, então o que reconstrói é a crença colectiva, tendo ambas como limite, como fonteira entre a terra da utopia e a terra do realizável, ou do legitimamente sonhável, o slogan americano: “The economy, stupid”. , Ora tanto a descrença, como a crença, implicam uma zona de dúvida. Eu deixei de acreditar, porque já acreditei. Ainda que haja quem possa dizer “eu nunca acreditei”, quem critica, quem destrói, fá-lo (inicialmente) porque acredita na vantagem de o fazer, no sentido que faz esse gesto de dispendio de energia e recursos, ao serviço de um fim maior: o prolongamento da vida. Nessa máxima dos tempos de guerra em que os fins justificam os meios, em última análise prevaleceria a vida, na intencionalidade destrutiva. Ela estaria ao serviço de uma futura paz, que a guerra faz desejar cada vez mais, até que nos encontrássemos dispostos a procurar superar a anterior fasquia do “limite do sacrifício”. O Humano, o espírito humano que sonha e que por isso comandou a vida até aqui. Regressará o tempo da paz, ainda que breve, mas sonhada como a regra e não como a excepção que já não somos. No entanto, o tempo move-se. Tem de se mover para lá da aparente repetição em aparente eterno retorno. Que o diga a nossa mão, que o diga a o aumento paulatino do tempo de esperança de vida, que o diga a ampliação do pensável, do imaginável, como último limiar da realidade que a imaginação antecipa, nos confins da lógica e do indizivel invisivel. Acreditar na humanidade é tarefa cada vez mais difícil nos tempos que correm. Entre o meu tempo de escola e o de agora, a noção que a humanidade tem de si própria alterou-se de um extremo para o seu oposto. Há cinquenta anos apreendiamos que o Homem, através da ciência chegaria a quase-Deus [o “quase” vem da noção de que a própria ideia de Deus exclui a possibilidade de ser igualado], que o mundo seria um lugar cada vez mais agradável para se viver e que estaríamos a caminho da realização dos grandes ideais (também os da Revolução Francesa), através de um continuum de progresso civilizacional em que o centro do mundo era o lugar onde havíamos nascido: a velha Europa. O Estado Social queria-se universal e aí estavam as constinuições Europeias a abrir o caminha para a realização bem-intencionada desse ideal das sociais-democracias europeias, sínteses dos compromissos gerados por um sistema que sempre teve na sua capacidade de se reeinventar, a sua notável capacidede de sobrevivência. Ora, esse movimento para lá da repetição, esse mover-se nos entretantos, é o que nos convence da inevitável esperança como parte da alegria de estar vivo. Vamos melhorando, só posso acreditar nisso, ainda que para lá chegarmos seja necessário passar por estes tempos feios e dos medos que parecem de sempre e para sempre, mas que já não o foram e voltarão a não o ser. Um muito feliz ano novo para todos.

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