5.11.08

Papelarias vs. Bancos

Continuam a ser as minhas lojas preferidas. Ainda que agora o que antes encontrava numa só tenha de procurar em três lojas diferentes: na Corbel - no Camões, Chiado, numa loja pequena que fica na Calçada do Combro e que vende todos os blocos Moleskine e que fica na Calçada do Combro e que tem as fantásticas canetas Sakura Micron 0.05 e, finalmente, na FNAC, na secção dos gadgets mais ou menos informáticos.
Em miúdo mal recebia a semanada pegava na moeda (de vinte e cinco tostões) e ia à Papelaria que ficava ao lado de casa, na Rua de São Bento, perguntar à senhora "o que é que tem para vinte e cinco tostões". Este comportamento já continha todos os males que anunciava: O dinheiro foi sempre para mim moeda de troca, de trânsito mais ou menos urgente para qualquer coisa, uma espécie de coisa em potência e que por assim o ser só me deixava descansado quando cumpria o seu destino. Ora o melhor lugar para acabar com a angústia da incógnita que a moeda no bolso me causava, eram as papelarias.
O que mais gostava de encontrar era mesmo um papel bom, branco, limpo, imaculado, ou o azul às riscas do papel selado, ou quase artesanal e poroso como o dos livros de actas, que a certa altura começaram a aparecer em formato menos legal e mais portátil, existindo mesmo alguns deles não pautados. Em segundo lugar apareciam as canetas de tinta permanente e os tinteiros, em terceiro lugar os mata-borrões e as bases de secretária, daquelas que também eram do mesmo papel de mata borrão e que permitiam ir escrevinhando ou desenhando ao lado, ficando no final de uns tempos uma espécie de quadro caótico com números de telefone, caretas, pedaços de frases ditas durante uma conversa. Em quarto lugar os acessórios de secretária, corta cartas, uma espécie de agrafadores sem agrafes que uniam as folhas por pressão, deixando um relevo tão subtil quanto o efeito de unir as páginas sem as ferir, as tesouras de pontas esguias para o papel, os copos para as canetas e por aí fora.
A primeira recordação forte que tenho da cidade do Funchal (já tinha vinte e tal anos quando lá fui pela primeira vez) é a das tabacarias com coisas inglesas e antigas, que para ali estavam há muitos anos em stock. A primeira recordação que tenho de Londres, é também a das lojas que só vendiam papeis, isto há vinte anos. Papeis fantásticos, uns feitos à mão, com envelopes que davam vontade de ter muitos amigos para escrever cartas, de preferência lacradas e com uma escrita impecável, com ligeiros arabescos na caligrafia do endereço, com as maiúsculas ligeiramente rebuscadas e o traço firme e recto de todas as letras com cauda, ou com traço de aleluia para o céu.
Cedo aprendi que o vício das papelarias que por um lado escondia e por outro apenas intuía sem ter total consciência dele, era afinal comum a muitas outras pessoas e que, como acontecera com tantas outras coisas desde a puberdade, não estava sozinho com as minhas vergonhas. Existiriam no mundo imensas pessoas que cumpririam o destino do dinheiro que queima nas mãos trocando-o por materiais confortáveis de papelaria, trocando o gozo da pergunta, o que é que eu faço a este dinheiro, pelo gozo da interrogação, o que é que eu vou fazer com estes papeis, com estes blocos, com estas canetas. Ainda há pouco tempo, num livro do Paul Auster, o personagem principal encontra um caderno fantástico, que é o "caderno português" (ver: http://www.citador.pt/biblio.php?op=21&book_id=912).
Há pouco tempo percebi porque razão o dinheiro que me queimava acabava todo gasto nas papelarias. Elas já eram, sem o saber, o que eu hoje sei por evidência: o meu banco. Eu não gastava ali o dinheiro, eu depositava-o ali, para comprar as coisas que depois me devolveriam o dinheiro multiplicado com o qual iria comprar mais coisas e assim sucessivamente. Com um pouco de sorte sobrar-me-ia para as outras coisas que o dinheiro serve. Entretanto deixei por uns tempos de ir às papelarias, tornei-me por obrigação profissional mais frequentador de outroas lojas cheias de papeis que são as livrarias.Por cada três livros de direito obrigava-me a comprar um que não fosse de direito. Na minha estante do escritório obrigava-me a não ter apenas os livros de direito mas também os outros que por cada três daqueles tínha comprado. Sempre que podia deixava-me entreter com a parte de papelaria do escritório, que ia desde a maneira de fazer bons templates para os diversos tipos de documentos que se produzem num escritório de advogados, até ao conceber em ACCESS um programa de gestão do escritório que fosse simultaneamente um programa de facturação, de registo diário de débitos, base de dados de contactos e informações de processos em Tribunal e, finalmente, uma espécie de temporizador automático dos tempos que me consumia cada documento (chamei-lhe "Sozinho no escritório"). Também aí, no imenso tempo que perdia com essas actividades marginais à essencial, estava já inscrito o destino. A papelaria, o meu banco, acabaria por vencer e reclamar de mim o que se anunciara nas primeiras idas àquelas lojas com a moeda de vinte e cinco tostões. Vai lá recuperar o teu dinheiro.Produz. É a partir de então - e isso aconteceu há cerca de quatro anos, que passei a trocar o meu dinheiro por papeis Arches de 800 gramas, pinceis de aguarela com a ponta como a cauda do esquilo, aguarelas Scminke que infelizmente só há no Corte Inglês (onde de bom para além dessas aguarelas só o inesperado excelente restaurante no último piso) e, sobretudo, muitos blocos Moleskins, dos que têm a cinta rosa, que quer dizer que são de papel de aguarela. Nesses blocos comecei a desenhar histórias (como aquela que publicarei no blog http://www.albaatroz.wordpress.com/). Com esses blocos e com os restantes materiais irei fazer em Fevereiro uma exposição e procurar cumprir aquilo para que parecia estar destinado quando perguntava "o que é que tem aí para vinte e cinco tostões"?).

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