30.12.08

Parte 3 da Variação da História do Príncipe com Orelhas de Burro

tt/2008





"Nessa parte ela olhou-a e a mulher do jardineiro encarou a cigana para lhe dizer que tinha percebido. Devem ser ambos criados juntos, para que juntos bebam a partir 33ª lua cheia, durante essa fase da lua, ao mesmo tempo e da mesma malga, de novo leite de burra, aí poderão separar-se, sendo que o jumento encontrará a sua natureza, perdendo o que de humano tenha, e o humano será então totalmente humano." (da anterior parte)

Era tarde quando a mulher do jardineiro conseguiu impor-se ao torpor da fogueira e daquelas histórias. Levantou-se e acenou. Partia muitas vezes assim, sem palavras, para que não se escapasse o efeito das que acabara de ouvir e nas quais ficara a flutuar, consentindo a carícia do sono e controlando-a, para que não adormecesse mesmo, procurando o equilíbrio que aprendemos a dominar entre o estar desperto e o estar quase a adormecer e a estranha confusão desse momento.

Foi para casa empurrada por aquela sonolência a que deliberadamente não se quis impor. Abriu a porta com o vagar desse torpor, que produz por si só o silêncio das coisas que dormem e por isso não acordou o jardineiro que dormia no seu lugar, arrumado na parte esquerda da cama, o lado que fica mais perto da porta, deixando intacto o lado e a almofada da mulher que agora, com o mesmo sonambulismo com que entrou no quarto, se deita sem produzir qualquer sobressalto de que pudesse acordar aquele homem.

Fez-se dia por entre as frestas das portadas. Amanhecia muito cedo aquele lugar. Amanhecia com uma luz que imediatamente após os instantes da alvorada (e dessa suavidade rara que ilumina as formas ainda semi-obscurecidas pela noite) era intensa e implacável à preguiça que nos cola à cama e nos faz sucessivamente adiar o momento de decidir acordar.

Ao mesmo tempo que a luz formava lâminas vindas das frestas, iniciava-se o despertar das madeiras que começavam a estalar primeiro de forma quase imperceptível e dispersa, depois de uma forma claramente audível e frequente, quase como o crepitar da lenha no lume, de tão abundante, quanto sensível ao calor da luz, ser a madeira daquele quarto.

- Sabes, marido, ontem a cigana - uma das mais velhas daquele grupo que costuma chegar m Agosto e que este ano até veio mais cedo - disse-me que há uma espécie de feitiço que permite ter filhos a quem até aí não pode. E lá contou tudo ao marido, o bom do jardineiro que a ouviu ainda com umas farripas do cabelo coladas à testa e a boca disforme contra a almofada.

O jardineiro não tinha ainda a mesma capacidade de controlar esse limbo entre a vigília e o sono que a sua mulher há anos aprendera e voltou a adormecer imediatamente antes da parte do copo de leite. Quando acabou de lhe contar o que tinha ouvido a mulher mudou o timbre da voz e perguntou-lhe, estás a ouvir? - Ele respondeu que sim e como sabia que tinha adormecido, para que não voltasse a cair no sono, virou-se para cima e ficou a olhar para o tecto, com os olhos semicerrados porque uma das lâminas de luz que vinha das portadas atravessava-lhe o nariz e encadeava-o, sem que estivesse ainda consciente do que aquilo era, tanto assim que pegou na almofada e a colocou sobre a cara.

1 comentário:

Patti disse...

Quase que se podia chamar "Despertares" a esta parte.