6.1.09

Parte 5 da Variação da História do Príncipe com Orelhas de Burro

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"Mostrou-lhe então a Rainha o ninho de que falara. Era muito raro a Rainha falar-lhe. Cumprimentava-o sim, e sempre até então depois dele a cumprimentar primeiro e parar enquanto ela passava sorrindo. Nunca lhe perguntara nada, passava a sorrir e pronto. Hoje, havia aquela história do ninho e antes disso, aquela história que ouvira ao acordar e que agora lhe parecia também desígnio, isso do ninho, isso da história, isso tudo que fosse lá o que fosse ou viesse de onde viesse e que o fez falar por tudo isso, com uma voz que sendo a sua não vinha de si, vinha através de si, uma voz que reunia as vozes da cigana, da sua mulher e sabe-se lá mais de quem. "Porquê ele?", voltou a pensar o jardineiro, depois de ter contado tudo quanto ouvira da sua mulher à sua Rainha." (da anterior parte 4).

Mal o jardineiro acabou de contar o que a sua mulher lhe dissera, a Rainha recomeçou a andar, sem sequer se despedir. Ele viu-a partir, vaga, encostando o ombro às folhas das roseiras, sem procurar afastar-se.

As palavras do Jardineiro estavam agora transformadas em angústia: Tinham descoberto o seu segredo. Mais do que o disparate da receita que acabara de ouvir, incomodava-a o saber que no reino já se sabia que dela não viria príncipe nenhum. O próprio Rei não o sabia e jamais se falara entre eles desse assunto. A sua mãe que vivia longe, desde que seu pai morrera, também não sabia, sendo que a sua mãe sabia tudo, mas não sabia daquele seu segredo.

A Rainha olhou para trás. O Jardineiro já tinha partido. Mal a viu caminhar daquela maneira o jardineiro arrependeu-se do impulso que o levara a fazer uma coisa que parecia completamente despropositada nele. A vergonha de não se ter contido, de ter falado aquilo tudo, empurrara-o dali para fora em direcção ao primeiro sítio coberto que encontrou, a estufa, onde ficou sentado, à espera de qualquer coisa, à espera que o tempo apagasse a sua temeridade, à espera de nada, sentado num dos cavaletes que se usavam para a vindima ou para chegar à fruta mais alta das árvores do pomar.

Tal como a Rainha não se lembrava dos seus monólogos no roseiral, começou a duvidar que a conversa do jardineiro tivesse existido. Lentamente começou a substitui-la na memória por uma lembrança vaga de um sonho, da parte de um sonho desconfortável a que não se gosta de voltar mesmo em vigília.

Regressou ao seu palácio e ninguém a viu entrar e subir para o seu quarto. O quarto da Rainha tinha naquela hora da manhã muita luz que se projectava em cintilações de pedaços de arco-íris, projectados nas paredes pelos cristais de um enorme lustre. Os reflexos coloridos sobrepunham-se aos tons pastéis dos frescos, como seu fossem fragmentos de outro desenho, com outra paleta de cores daquela que tinha sido usada para pintar os animais amigos e antigos (pássaros, pequenos roedores, borboletas, libelinhas, alguns gamos) que povoavam toda a parede redonda do quarto até às altas janelas brancas.

Da mesma maneira sonâmbula com que tinha entrado a Rainha fechou todas as portadas e no súbito escuro total daquela manhã radiosa, interrompeu o tempo que não queria estar a viver e dormiu, dormiu muito, dormiu até ser noite e depois de naquela noite se ter posto logo atrás das suas janelas fechadas uma enorme lua cheia. Uma lua que vista do jardim parecia estar ali para alimentar o que lá dentro daquele quarto estava a ser sonhado. (Continua)

1 comentário:

Patti disse...

Paredes que guardam segredos e luas que alimentam sonhos, nada mais verdadeiro.