20.4.09

Hugo Pratt e Lisboa




Há um bar na Rua da Rosa que tem uns grafitis à porta que continuam os desenhos que estão lá dentro. Desenhos do Corto Maltese a apanhar um eléctrico, provavelmente o 28, provavelmente em andamento, provavelmente de cigarro no canto da boca e uma aba do sobretudo a esvoaçar. O bar chama-se "O Lugar da Rosa" e o seu dono gosta como eu do Corto e especialmente de quem o criou, Hugo Pratt.


À entrada do bar está emoldurada uma notícia do público com uma entrevista que Hugo Pratt deu ao jornal, antes de 1995, que foi quando morreu. O recorte emoldurado não tem a data de publicação, imagino que seja difícil encontrar nos arquivos do jornal essa entrevista. Já a li várias vezes quando subo a rua da rosa para ir buscar o carro à garagem que fica ao lado do Pavilhão Chinês. Releio sobretudo a parte em que Hugo Pratt descreve a limpeza das ruas de Lisboa durante as horas da madrugada, antes do 25 de Abril. Sempre gostei desse momento da noite que aguardava em segredo no quarto da Rua de São Bento. Quando começava a ouvir o ruído das vozes, das mangueiras a arrastarem-se e, finalmente, os jactos de água contra os vértices dos passeios. Durante aqueles instantes a noite estava guardada e nada podia acontecer.


Há dois dias parei outra vez naquele bar e fiquei lá com um bloco a copiar todo o artigo, tudo aquilo que Hugo Pratt dizia sobre Lisboa. É esse texto que aqui deixo, depois de ter descoberto que ele afinal até está na net, era só ter procurado melhor. Pouco importa, foi uma maneira de melhor o ler.




Quando passei pela primeira vez por Lisboa, a caminho da Argentina, foi nos anos 50. Cheguei de barco, como era normal viajar naquele tempo. Uma cunhada minha, argentina, que tinha adquirido a nacionalidade portuguesa por ter casado com um português, vivia em Lisboa e tinha dois filhos. Era o tempo de Salazar, evidentemente. O meu cunhado disse-me para ter cuidado com o que dizia e fazia, sobretudo à noite, porque havia a polícia política. De facto, havia no ar uma sensação de opressão.


Recordo-me mesmo do perfume do azeite, com que se fritava em certas zonas da cidade e que pairava no ar. Era uma cidade de uma beleza muito particular, de que eu gostava muito. Era o tempo do fado popular, não o de Amália Rodrigues, mas de tipos novos, que queriam cantar um fado mais ritmado e mais juvenil. Eu adorava esses momentos de mudança, nos anos 50.


Lisboa era uma cidade muito bela... e muito limpa, porque os fascistas tinham o cuidado de pôr alguém a lavar as ruas às quatro ou cinco da manhã. Tal como em Córdova, no tempo de Franco. Eu acordava a meio da noite - "Mas o que é este barulho, será que está a chover?..." -, abria a janela e via uma data de gente com agulhetas, ocupada a limpar as ruas!


Logo a seguir à revolução [25 de Abril de 1974], estive na televisão, mas o que eu disse não altura não lhes agradou e convidaram-me a abandonar o país. Porquê? Oh, por uma razão muito simples. Afirmei que o que estava em curso era uma revolução militar." "Se não houver uma presença das milícias populares", acrescentei, "não há qualquer hipótese de êxito." Os militares obrigaram-me a partir imediatamente com toda a minha família.


Nessa altura Lisboa era uma cidade muito suja! Eu sei que era o tempo de todas as liberdades, mas a verdade é que se parecia mais com o metro nova yorquino. Todavia, sempre gostei de Lisboa. E quer saber porquê? Havia livrarias que me interessavam muito - e mais tarde o Centro Gulbenkian -, o ascensor em estilo "art déco" [Elevador de Santa Justa] e ao lado uma livraria de cujo nome já não me recordo [Livraria Portugal], onde passava dias e dias à procura de coisas que me interessavam.


Depois disso, de uma vez que passei férias em Portugal, fui para norte. Estive em Peniche - recordo- me de ir ao cinema que era frequentado pelos pescadores e havia raparigas que passeavam à noite com os namorados e isso era muito bom -, fui à Figueira da Foz, recordo-me de ver moinhos. E, depois, uma aldeia onde havia uma pequena capela muito bonita. Enfim, sentia-se um ambiente que era formidável, quando se descobria pela primeira vez.


Depois, tornou-se algo de muito provisório. O turismo mudou tudo. Antes, Lisboa era uma cidade cosmopolita, depois tornou-se uma cidade turística. Mudou muito. É claro que, durante a guerra, Lisboa era um centro de espionagem, mas não deixava de ser cosmopolita por isso. Agora vou a certos lugares - mesmo Peniche mudou - e isso perdeu-se tudo. Esse fenómeno não aconteceu apenas em Portugal, evidentemente.


Outra coisa de que me lembro: as árvores exalavam um perfume resinoso incrível, que, passados todos estes anos, ainda conservo na memória.


É um belo país de que continuo a gostar muito, onde conheci mulheres formidáveis e muito belas. Nota-se a influência africana, de Marrocos, dos mouros... Elas são muito bonitas, muito sentimentais. E depois há a música da viola, o fado. Mas Portugal tornou-se um produto de 'postcard', de folclore. Não vejo mal nenhum nisso, porque o folclore significa tradição e esta tem a ver com a busca das origens."




(in <http://static.publico.clix.pt/sites/cortomaltese/not_05ELisboa.html>)





5 comentários:

Marta disse...

Gostei tanto tudo de ler! Mesmo.

Gosto de certa banda desenhada e, Huho Pratt, está entre essa certa BD. Sou ainda, fã, de Corto Maltese. Se fosse um marinheiro, seria como ele :)

E gostei das memórias, desfiadas assim.

obrigada.

Tiago Taron disse...

Hugo Pratt é uma das minhas pessoas preferidas de sempre, não consegui continuar a gostar de BD como gostava (o tesouro que era ter a colecção completa do Tintim). Mas Hugo Pratt é um mundo à parte. A Balada do Mar Salgado é um dos meus livros recorrentes (que releio). Obrigado

Rosa disse...

Também gostei, vou roubar o bocadinho das resinosas. Posso?

E eu a pensar que as mulheres eram muito sentimentais em todos os lugares do mundo.

Tiago Taron disse...

Rosa,
O bocadinho das resinosas não é meu, mas parece ser seu e do seu "blog de cheiros". Quanto ao que diz Hugo Pratt das mulheres Portuguesas eu se fosse a si acreditava, não por ser eu quem o diz mas por ser dito por quem o disse e que em matéria de mulheres as desenhou tão bem como Michelangelo Antonioni as filmou.

Mocho Falante disse...

fantástico texto sim senhor, não conhecia esta entrevista cheia de memórias...obrigado pela partilha

um abraço