1. (Agora - 11/09/2009)
2. (Agora 11-09-2009)
3. (Agora 11-09-2009)
Há um ano reparei que existia um Museu com o nome de "Museu do Efémero". Procurei o site e encontrei uma espécie de Mapa do Bairro Alto onde estavam catalogados os principais graffiti espalhados pelas paredes. Percorri o itinerário e fiquei surpreendido com a quantidade de graffiti escondidos e absolutamente geniais. No meio do lixo escrito nas paredes, escondidos no emaranhado de assinaturas, bocas, reescritas e redesenhos, estavam vários exemplos que justificavam o insólito da ideia. O efémero não pode ter Museu, porque é da sua natureza perecer. O Graffiti é efémero e pretender catalogá-lo e imobilizá-lo num Museu, ainda que virtual, parecia-me de algum modo contra a natureza do que se queria valorizar.
Entretanto, passados uns meses, na sequência da política da Câmara para "recuperar" o Bairro Alto, foi anunciada a intenção de apagar todo esse lixo gráfico que se acumulava naquelas paredes - entre sanduíches de fósseis de cartazes, azulejos partidos e buracos do tempo – paredes entretanto convertidas em Meca dos artistas de rua, tendo aquele Museu do Efémero o mérito de deixar registo de alguns dos melhores (ver aqui uma listagem de 28 desses graffiti).
Um dos melhores graffiti era para mim aquele que está reproduzido em último lugar nas fotografias do início, corresponde ao stencil de um artista chamado DOLK.
Na Rua da Rosa as patrulhas da Câmara tinham instalado uma linha de montagem para devolver às paredes uma igualmente efémera condição imaculada. Vendo-os espalhar os jactos de água, com um cheiro fétido, misto de lixívia e soda cáustica, imaginei o sorriso dos autores catalogados. Se bem imagino a mentalidade desses autores (Blansky, Donk, etc.), devem estar a agradecer voltar a ter a tela em branco para as próximas intervenções. Quando pintam ou colocam os seus stencils, sabem da precariedade do que lá deixam. Imagino assim que o seu sorriso, ao saberem que uma das maiores telas de graffiti da Europa está a ser "limpa" (preparada para os vindouros), seja o mesmo que dispensaram à notícia da sua inclusão no Museu do Efémero.
O graffiti em questão estava na parede de um bar que por acaso tem uma série de desenhos nas paredes do seu interior, desenhos do Corto Maltese que se prolongavam de alguma forma naquele desenho da Rua (há uns tempos escrevi sobre esse mesmo bar a propósito de um artigo que lá está emoldurado, escrito por Hugo Pratt, sobre as duas Lisboas que conheceu, antes e depois do 25 de Abril – curiosamente nesse artigo também se fala de mangueiras e asseio urbano, ver aqui). Como a limpeza dos graffiti estava adiantada e aquele parecia resistir, perguntei-lhe se sabia da intenção da Câmara em poupar da limpeza aquele graffiti, assim como eventualmente de outros que estivessem catalogados no tal Museu do Efémero. O dono do Bar não tinha ainda conhecimento da existência do tal Museu, nem sabia nada sobre a retirada ou não daquele graffiti. Perguntei-lhe se o facto dele permanecer não seria consequência da vontade dos donos do prédio ou coisa assim. Respondeu que não tinha conhecimento de nenhuma intenção nesse sentido. Continuei o meu caminho, mas a partir desse dia fiquei atento ao destino do miúdo com os três piu-piús sobre a cabeça, numa espécie de auréola de "espírito santo".
Ontem, quando descia a rua voltei a vê-lo. O stencil continuava parcialmente lá, apesar de tapado com uma camada de cimento, na cara, tapando a cara. Na cara não! Terão ressoado aquelas ruas, frases de antigas rixas. Na cara sim. O graffiti tinha evoluído. Lembrava-me perfeitamente do que tinha sido tapado e a moldura de gatafunhos inexpressivos com que alguém o parasitara, permanecia, como permanece a etiqueta do tal museu do efémero, mais pertinente que nunca, prova da efemeridade (apetece dizer enfermidade do efémero). Não gosto de metáforas, acho que são batota do cérebro, preguiça sob a forma de argúcia, ainda assim, a etiqueta, a permanência do lixo gráfico que aquele stencil havia chamado (vejam-se as pernas que a verde alguém fez sob o retrato apagado), a mancha de cimento cru, sem qualquer cor, o aspecto geral daquilo tudo, era um bom exemplo da razão de ser dos graffitis, uma espécie de jogo de gato e rato entre a rebeldia urbana e os poderes, neste caso camarários, da cidade. Recordei-me então da minha dúvida pueril. Como seria possível a Câmara de Lisboa poupar os graffitis porque estavam catalogados. A ter algum efeito esse catálogo seria o de dar às equipas limpadoras o itinerário dos graffiti a apagar, começando por estes e não o contrário, apagando cada um deles, mesmo que à sua volta permanecesse o que há de verdadeiramente sujo e inqualificável como degeneração desse tipo de expressão. Digo isto e sinto que os "graffiteiros" não concordariam com esta divisão entre uns e outros, tudo é expressão da arte de rua e pretender classificar uns rabiscos como arte e outros como lixo gráfico é também contra o que será a sua "onda". Pouco me importa, de uns gosto, de outros não é uma questão de não gostar, mas representam o parasitismo dos pequeninos ameaçados pelos grandes (as pernas verdes, debaixo do retrato, as assinaturas sem qualquer valor apostas nas paredes com a mesma lógica com que dantes se inscreviam os nomes nas árvores ou nos parapeitos das varandas do Palace do Buçaco "estive aqui, data e nome do cretino").
Bom, o resultado da intervenção da Câmara, no caso concreto deste graffiti foi o que se pode ver nas primeiras fotografias que se publicam sobre o que vai escrito.
Se tivesse querido pensar realisticamente no que iria acontecer com o stencil do menino com os piú-piús a voar sobre a cabeça, teria certamente previsto o que agora estava a acontecer. Pensar que uma Câmara que acha que por fechar o Bairro Alto às duas da manhã ele fica mais seguro seria a mesma que ordenaria a conservação dos graffitis que tivesses no critério subjectivo de quem quer que seja, valor (histórico / gráfico, ou por qualquer outra razão), ou – pelo menos – que promoveria o contacto com os proprietários dos prédios grafitados perguntando-lhes se queriam ou não conservar o que estava na parede, pensar assim – dizia – era continuar a pecar por ingenuidade, base de todo o verdadeiro tolo.
O Bairro Alto não fica mais seguro porque os bares fechem às duas da manhã (pelo contrário), o Bairro Alto não vai ficar mais limpo porque se façam desaparecer provisoriamente os graffitis que lá estavam, pelo contrário. Ante a degradação das casas, a insalubridade da maior parte delas, a feliz resistência dos moradores de sempre do bairro e os seus hábitos em matéria de lixo, dejectos e circulação de animais, os graffitis, alguns deles, davam carácter a essa decrepitude, sem eles ela perde o carácter, ficando mais exposta ao que é e sem metade do encanto que tinha.
Enquanto tiro as fotografias recordo-me da primeira vez que pensei na questão dos graffitis. Estava no final de uma reunião num escritório de advogados e o último ponto a discutir era a aprovação de eventuais acções pró bonno a desenvolver pela sociedade. Um dos Colegas propôs que a sociedade auxiliasse as autoridades e os proprietários a combater a praga dos graffitis, iniciando aí um discurso tão fácil quanto inflamado sobre o carácter absolutamente associal e criminoso dessa prática.
Antes das ideias me incomodarem, tenho a sorte de detectar o tom que as precede, o que me permite na maior parte dos casos desligar-me e seguir o caminho que o meu pensamento em livre associação de ideias queira tomar. Enquanto o meu Colega falava, ao fundo, cada vez mais ao fundo, pensei que seria interessante estudar as hipóteses de defesa dos autores dos graffiti. Imaginei um processo crime contra um inepto que se tivesse deixado apanhar (não sei porquê mas imagino que os grandes, os que estão catalogados, nunca seriam apanhados e, por essa mesma razão, ocorreu-me que faltaria desde logo a legitimidade para punir, quando se estava perante um mero aprendiz de graffiteiro, não perante um verdadeiro grafiteiro). Sendo incontroverso oque a base da acusação seria sempre a imputação do crime de dano, previsto no artigo 212º do Código penal ("quem destruir no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa."). Ora, a primeira ideia de linha de defesa que então me ocorreu, seria a de questionar se no caso do graffiti existe uma intenção de "destruir, danificar, desfigurar.". Imaginei-me a defender o contrário, começando pela advertência do aparente absurdo dessa linha de defesa mas pedindo alguma abertura para as conclusões a que poderíamos chegar se pensássemos no assunto da forma o mais aberta possível. Diria então: em primeiro lugar o graffiteiro não só não tem intenção de desfigurar ou danificar, como a afirmação do valor artístico da sua intervenção demonstra o contrário, o graffiteiro pretende valorizar a "coisa alheia", acrescentar-lhe valor e não retirar-lhe valor. É certo que os falsos graffiteiros, os que não pretendem ter qualquer arte com o graffiti, os que se limitam a poluir ou a sujar as paredes com jactos de tinta, não aproveitariam dessa linha de argumentação, tant pis, quem tenha por passatempo partir os vidros das janelas dos outros à pedrada também não pode invocar uma suposta intenção artística para com isso excluir um dos pressuposto da imputação do crime de Dano. Por outro lado, é também certo que deixar ao critério do tribunal o que seria de considerar com o arte ou não era confiar ao Senhor Juiz a difícil tarefa de perceber de arte e, particularmente, desta forma de expressão artística (facto inquestionado em todas as histórias da Arte) pode parecer excessivo ou desadequado. Não o é porém, acrescentaria. O Código dos Direitos de Autor define como obra as "as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas, que, como tais, são protegidas nos termos deste Código, incluindo-se nessa protecção os direitos dos respectivos autores." Ora, perante a dúvida sobre o carácter artístico de determinada expressão, ou seja, perante a dúvida sobre a existência ou não de uma obra protegida pelos direitos de autos, é sempre ao juiz que cabe essa decisão, pelo que nada de novo existiria se confiássemos ao Meritíssimo Juiz da causa a tarefa de julgar se o graffiti em questão poderia ou não ser considerado uma obra protegida em termos de direitos de autor.
O meu Colega continuava a falar e por instantes percebi que a conversa tinha seguido para as questões da segurança e dos emigrantes, do Portugal perdido, etc. Mergulhei então mais fundo na minha hipótese de defesa do graffiteiro acusado de crime de Dano. O próximo contra-argumento – no pressuposto de que os anteriores argumentos tivessem sido aceites – seria o de que não era possível criar uma obra de arte sobre aquilo que não é nosso. Esse seria um contra-argumento pelo qual esperaria como a raposa espera pelo queijo do senhor corvo na fábula de Jean de La Fontaine. Responderia citando directamente o artigo 10º do Código dos Direitos de Autor: "O direito de autor sobre a obra como coisa incorpórea é independente do direito de propriedade sobre as coisas materiais que sirvam de suporte à sua fixação ou comunicação.". Ora, se este Tribunal aceitar que a intenção do graffiteiro não era a de desfigurar mas a de acrescentar valor à parede, se este Tribunal aceitar que estamos perante uma expressão artística daquela que é hoje aceite como arte, arte de rua, então, concluída a obra, nascerá um direito de propriedade intelectual sobre a mesma.
Esperaria então pelo contra-argumento previsível: "Mas se teoricamente é possível conceber que o direito de propriedade intelectual sobre obra protegida pelos direitos de autor é independente do direito que recaia sobre o seu corpus mechanicum (por contraposição ao corpus mysticum), já na prática essa coexistência não é possível, já que o direito de um (do autor), colide com o direito do outro (do proprietário da parece, muro ou superfície).
A esta objecção responderia seguindo dois caminhos. O primeiro teria a ver com a configuração do direito de propriedade no que diz respeito aos muros ou paredes exteriores das casas e outras superfícies situadas em zonas públicas. Se é verdade que não obstante eu ser proprietário de uma casa não me permite afixar nela cartazes, publicidade ou outro tipo de reclames sem a necessária autorização camarária. Se a razão de ser dessa limitação terá de ser encontrada no carácter público do que se vê na Rua (a casa pode ser minha, mas as mensagens que se dirigirem para a rua, visíveis a partir desta, são já a utilização do que é público, carecendo nessa medida de autorização da entidade a quem caiba a gestão desse espaço). Aceitando-se a existência desta limitação, então não repugnaria afirmar, que tendo nós já aceite a existência de uma obra de arte. O direito de propriedade sobre a mesma pode coexistir com o direito de propriedade sobre a superfície em questão, onerando-o como deveria onerar essa mesma propriedade a existência de um painel de azulejos de Almada Negreiros (por recordar um recente caso em que se falou da destruição dos mesmos) ou de Maria Keil (painéis do Metro entretanto removidos). O segundo caminho a explorar teria a ver com o tratamento dado no Código Civil às situações de incorporação de uma coisa noutra coisa. O tratamento dessas questões em termos de direito de propriedade, faz-se através de um instituto chamado "Acessão". Ora, admitindo que terminada a obra, esta se incorporou por força da acção do homem (e não por efeito da natureza) em "coisa alheia" (e teríamos aqui que voltar a discutir em que medida essa coisa é alheia ou pública – ainda que parcialmente), então teríamos que aplicar o regime de acessão industrial imobiliária ou mobiliária (conforme se considerar mais pertinente ao caso a previsão bucólico / rural da primeira – artigo 1339º do Código Civil: "Se alguém (…), construir obra em terreno alheio ou nele fizer sementeira ou plantação (…)", ou a previsão que refere expressamente a incorporação da pintura e desenho em coisa móvel – especificação).
Ora, se aceitarmos estarmos perante um caso de acessão, então poderíamos chegar ao extremo de ter de avaliar qual a valorização dada à propriedade onde se integra a superfície pintada, de forma a decidir se a coisa pintada (por exemplo uma superfície de madeira utilizada coo cartaz) tem ou não mais valor do que a obra criada. Caso a obra criada tivesse um valor manifestamente superior, poderíamos discutir se assistiria ao artista o direito ou não de a adquirir pelo valor que tinha antes da sua intervenção, ou de ser indemnizado pela valorização da coisa. Terminaria com um exemplo de um mural pintado por Diego Rivera ou de um desenho feito numa parede contígua a uma casa de fados no Bairro Alto, por Picasso, celebrando a boa disposição de uma noite de fado vadio. Poderia a Câmara, sem ouvir os proprietários do prédio proceder ipso facto à sua remoção? Poderiam os proprietários, sem necessidade de autorização da Câmara ou da entidade que tenha a gestão do espaço público, proceder sem mais à sua remoção?
Nisto o meu Colega acabou de falar. Fez-se silêncio, o que me interrompeu a simulação mental da defesa do graffiteiro.
Perguntaram-nos se tínhamos algum comentário a fazer. Como ninguém disse-se nada lá disse o que pensava e que na altura (há cerca de quinze anos) era mais ou menos isto: "Mas – nome do Colega – não vês que os graffitis têm uma função a que tu e os teus filhos deveriam estar agradecidos? Eles assinalam os territórios a que não devem ir. Se o herói da Fogueira das Vaidades tivesse prestado atenção aos graffitis que começaram a aparecer mal ele se perdeu, nada do que depois sucedeu lhe teria acontecido.
E assim ficou a proposta em águas de bacalhau. Agora a Câmara executou-a como se acabou de descrever e como era previsível que o fizesse do modo como o está a fazer.
4 comentários:
Gostei muito do texto. Muito. Identifiquei-me com as suas excelentes divagações de há 15 anos. Ando a fazer o meu particular museu do efémero na minha cidade...
Muito obrigado Xantipa. O seu comentário fez-me pensar que seria bom existir um Museu do Efémero em cada cidade / Vila / Aldeia / Vida. O do Efémero e o do Inútil, das coisas absolutamente inúteis sem as quais não passamos em cada Cidade / Vila / Aldeia / Vida.
Também já fotografei muitos desses graffitis de que fala e há de tudo na verdade: do melhor ao pior.
Gosto de admirá-los, chamam-me sempre a a tenção e agora em Barcelona, não foram excepção. O Bairro Gótico e o Born, são o paraíso dos graffitis: alguns são telas para o museu de arte contemporânea.
As lojas quando fecham à noite, correm uma porta-lagarto que está totalmente decorada com graffitis espectaculares; não sei se é obra espontânea de artistas de rua, ou se são mesmo encomendas dos lojistas, só sei que andar por aquelas ruas sombrias logo de manhã cedo, antes das lojas abrirem e admirar as pinceladas, é um passeio a não perder.
Barcelona está só aqui ao lado, mas continuamos a anos luz de tanta coisa...
Um dia destes, vou colocar os graffitis que fotografei no meu blog de fotos.
Patti. Qual seria a reacção dos logistas de Barcelona se o alcalde lhes repintasse as portas? De quem são os graffitis colocados sobre essas portas? Imaginemos que o comerciante vende a porta com um graffiti do Bansky por EUR 500.000,00? É claro que há mau, bom e também há puro vandalismo, no caso do Bairro Alto existia um inventário do que para alguns era manifestamente bom. Se eu tivesse uma dessas paredes, teria procurado sensibilizar a Câmara para a necessidade de preservação desses graffiti em particular, continuando esse Museu do Efémero. By the way, hoje passei pela parece fotografada e está a ser totalmente pintada, ao menos isso!
Enviar um comentário