16.9.09

RUA DA ARRUADA




Arruada.


Ontem reparei pela primeira vez na palavra. A primeira vez que a li não foi certamente ontem. Também não sei quantas vezes a tive de ler antes de a ver.


Costumo reparar nas palavras que não conheço. Quando dou com uma paro a leitura e procuro adivinhar-lhe o sentido. O hábito remonta aos meus onze anos e ao desconforto que sentia quando se deu o vinte e cinco de Abril e ter começado a estar cercado por discursos e textos cheios de palavras que não percebia de todo, ditas por pessoas que todos ouviam e compreendiam menos eu. Era o tempo do heurístico da simbiose da osmose da escrita hermética de um jornal que apareceu pouco depois (o Jornal de Letras) de que eu coleccionei os primeiros cinquenta números, como quem compra livros numa língua que está a aprender a ler, para que um dia os possa entender. Anos mais tarde comecei a gostar mais de quem falava simples e aprendi que os melhores discursos sobre as coisas que me interessavam vinham geralmente de onde menos eu esperava, dos cientistas, dos físicos, dos astrofísicos, de pessoas para quem as palavras eram um meio e não a continuação do seu exibicionismo idiossincrático.


A notícia, julgo até que era o título dizia assim: "EMOÇÕES À FLOR DA PELE NA ARRUADA DO CDS NO PORTO". Parecia o título de um artigo do Camilo sobre uma bernarda nas ruas do Porto, com uma confusão antiga e insultos e uma ressonância semelhante aos que o deputado da Madeira uma vez usou - "mariola", "seu mariola", "biltre". Procurei no artigo ver em que consistia a "arruada", que interpretei como relacionada com alguma coisa feita na rua com as "emoções à flor da pele". Terminei a leitura do artigo e tive de voltar a ler o título, afinal "arruada" deveria querer significar a descida de uma rua em campanha eleitoral por um ou mais candidatos. Lá continuei a leitura do jornal, mas aquilo ficou-me.


Hoje, julgava eu já ter esquecido o incidente, leio o Público e encontro a palavra pelo menos em quatro artigos de jornalistas diferentes ("O dia em que a Rua Capelo e Ivens foi a "mãe" de todas as ruas nas muito diferentes campanhas do PS e PSD", jornalista: São José Almeida: "(…) a líder do PSD que irá percorrer a pé a Rua Capelo e a Rua Ivens, numa "arruada" que terminará (….)"; "Pacheco Pereira entrou na campanha com críticas a João Soares" jornalistas Filomens Fontes e Nuno Simas: "E falou à tarde numa arruada
pouco concorrida em Tomar" ; "Segurança foi o mote do dia de Portas", jornalista Sofia Rodrigues: "Foi uma das primeiras pessoas que o centrista encontrou na arruada de ontem no Porto (…)"Comunistas desvalorizam saída de Domingos Lopes", jornalista Maria Lopes: "O líder da CDU dizia, na arruada em Algés (…)".


A curiosidade de ontem transformou-se em enigma.


- Mas afinal esta palavra existe mesmo, é usada como se fosse um dado adquirido ser do conhecimento de todos, só eu não a conhecia?!! . De novo o Google, o tira-teimas instantâneo das dúvidas tipo charada ou "brancas de memória". Faço a pesquisa e fico mais sossegado. Parece que o uso da palavra "arruada" terá começado em 2006, na arte de tornar notícia o que não tem notícia nenhuma: a descrição dos "banhos de rua" dos candidatos em campanha.

A minha dúvida é mesmo recorrente em muitos blogs da época, é assim justificada (legitima) embora tardia. Na verdade já em 20 de Janeiro de 2006 no blog "Nova Confraria – ver aqui", perguntava Milo Manara: "Porque é que eu, que acompanho com atenção eleições desde 85, só agora me apercebi da palavra "arruada?" "É impressão minha ou os media inventaram esta este ano?". Uma das respostas faz todo o sentido, quase tanto como existir qualquer coisa de errado na própria palavra para significar o que hoje por quatro vezes quis significar. A resposta é a seguinte (de um tal Guerreiro): "Eu quanto a isso tenho uma regra de ouro. Se não está no meu dicionário pré-vinte-e-cinco-de-abril è palavra de comunas. O meu dicionário pré-vinte-e-cinco-de-abril diz: (pausa dramática) Arruadeira, f. Mulher que percorre muito as ruas; rameira.; Arruado, adj. Distribuído ou disposto em ruas; que tem ruas; designativo daquele a quem foi designada uma rua para viver ou comerciar.; Arruador, m. Arruaceiro; vadio; aquele que tem a seu cargo o alinhamento da construção nas ruas; o que distribuía por ruas, as indústrias, certos negócios ou profissões. Desta pequena leitura posso inferir duas coisas: "arruada" è uma palavra comuna e provavelmente tem a ver com putas e grémios corporativos.".


Mais à frente, ainda sobre a mesma dúvida, um outro comentador (Polittikus), informa que o termo terá sido usado nesse sentido pela primeira vez por Marcelo Rebelo de Sousa, num comentário sobre uma qualquer campanha. Também faz todo o sentido. A incontinência intelectual / verbal de MRS produz essas pérolas com o mesmo calibre da expressividade das suas interjeições, modulações de voz no final das frases, alegria contentinha com cada ideia revelada numa espécie de demonstração do que é o pensamento em directo, rápido, acutilante e em torrente. Ouço-o dizer "numa arruada" e fico a acreditar nessa origem do uso da palavra.


Continuo a procura e encontro mais quem tenha tido a mesma dúvida, experimentado o meu desconforto ante a palavra. A 14 de Janeiro de 2006 uma tal de Costureira (ver aqui), disse isto: "Sexta-feira, 20:30, dentro de um táxi em plena Avenida da Liberdade, quase a chegar ao Marquês, uma voz na rádio relata o dia de campanha das presidenciais.


… a tarde terminou com uma arruada pelas ruas Setúbal….


… Manuel Alegre fechou a tarde com uma arruada pela cidade…


Arruada…


Admito que o cansaço talvez me tivesse toldado o meu sentido auditivo, mas tenho a certeza que ouvi "arruada"… Fui ao dicionário e procurei por tal famigerado termo e eis as conclusões: Existe: Arruar – andar pelas ruas, vadiar, abrir ou dividir em ruas, soltar a voz (o javali), mugir (o touro); Arruado – disposto ou dividido em ruas. Como "No match was found" (este foi o meu momento à la CSI) fui até ao sítio onde poderia encontrar a prova do crime… o site da dita rádio. Procurei, mas não encontrei rasto do dito termo… às tantas foi mesmo cansaço e arruada é produto da minha imaginação."


Indo mais longe (8 de Outubro de 2005, ver aqui) a mesma dúvida deu origem a este excelente post de um tal Politikos em Pólis & Etc: "A campanha eleitoral autárquica afinal sempre nos trouxe uma boa novidade. Uma palavra nova que de um momento para o outro entrou no vocabulário da Pólis. Trata-se da palavra «arruada» que o Pólis&etc. não conhecia. De repente, a dita «arruada» aparece repetida até à exaustão em todas as televisões. Assim é o mimetismo dos meios de comunicação social dos dias de hoje. Um diz e os outros copiam. Mesmo que não saibam muito bem o que é. Adiante. Interessa é alinhar com a moda. E acharam graça à palavra. Lá vai o Pólis&etc. aos dicionários para ver o significado da «coisa». Após várias consultas – não vale a pena o Pólis&etc. alardear aqui a sua erudição; há dicionários com fartura cá em casa, caramba, sobretudo para compensar a falta dela – leva a palma, como sempre, pela quantidade de vocábulos, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado. «Arruada» existe, sim senhor, mas como substantivo masculino: «arruado». E lá temos uma «composição musical tocada por uma banda, enquanto percorre as ruas da cidade», talvez aquilo que é mais próximo do que se pretende. Claro que neste ponto, o Pólis&etc. descobre uma miríade de palavras com a mesma raiz que aliás assentam que nem uma luva a muito do que se passou hoje, último dia da campanha autárquica. Um «arruador» é assim um «picão, valentão, que passeia e corre as ruas fazendo mal; desordeiro, galanteador, atrevido». Claro que o que o «arruador» faz é «arruar». Verbo prenhe de significados: «passear frequentemente por, para requestar vadiamente»; «andar a passear pelas ruas com ostentação, a pé ou a cavalo» (admitimos aqui que JPMachado, que infelizmente já não está entre nós, precisasse de actualizar os meios de locomoção do «arruador»); vadiar (pois, eu hoje de facto estava a trabalhar enquanto decorriam as «arruadas»). Mas isto é o «arruador». E como a linguagem é eminentemente masculina. Eis senão quando descobrimos que uma «arruadeira» é uma «mulher que anda muito pelas ruas; mulher andeja; rameira, ambulatriz». Assim é a Língua Portuguesa, apesar de feminina, pouco feminista. O Pólis&etc. tira o chapéu com vénia longa a Jerónimo de Sousa que lançou esta palavra e a aplicou com propriedade e com vénia curta aos jornalistas que a repetiram acriticamente, como aliás acontece muitas vezes, já que em algumas «arruadas» de hoje não vimos nem sombra de banda ou de música, a menos que fosse a dos candidatos… E, já agora, lança também aqui o desafio a uma boa amiga, que por acaso até dá formação a alguns dos jornalistas da Pólis e até lê este blogue – ao menos às vezes e ao deitar: atenção que substitui com vantagem o Lorenin e não causa habituação – para deslindar melhor esta «coisa» da «arruada», com mais sapiência do que o Pólis&etc. que nestas coisas da Língua Portuguesa toca de ouvido… Ah, e já agora, mais um significado de «arruar»: «soltarem os animais desgarrados da manada (principalmente os touros) certos mugidos de insatisfação»… Este ficou para último mas só por esquecimento…"


Enfim, se a minha dúvida estava justificada, também passei a saber que só me tocou a mim, qual efeito da alea pandémica, quatro anos depois de ter tocado aos primeiros. Agora já está generalizada a palavra e numa mesma edição do jornal Público, aparece dita por quatro jornalistas diferentes, é a chamada consagração.


Continuo à procura da primeira utilização registada e chego a 2004, a um programa do Bloco de Esquerda em que se anuncia para 11 de Junho daquele ano uma Arruada com Francisco Louçã em Coimbra (ver aqui). Tratava-se de uma acção de rua eventualmente com a participação de alguns dos saudosos maoistas, uequistas, luaristas e outros dos tempos idos do prec e pós prec, que em Coimbra se reagruparam em pequenos núcleos da Associação Academia (chamados então "organismos autónomos") e que outrora tiveram uma espécie de Quartel-General de todas as arruadas das alvoradas dos amanhãs, a Clepsidra.

É isso. Arruada deveria ser o nome dado a uma dessas manifestações de folclore de intervenção, que em alguns casos constituíram também elas o início do terrorismo urbano, atrapalhando o tráfego, explorando os pobres dos homens dos bombos [assustando os pombos] e os mais pobres ainda que transportavam os Zé Pereiras, enquanto tocavam Chulas e Viras (às vezes havia uma insuportável gaita de foles e uns pífaros).


Inclino-me assim para essa origem do termo "arruada" quando aplicado à sempre surrealista descida de uma rua por um homem/mulher a fugir da populaça ou, quando já não o consegue, a pactuar com a população na simulação recíproco afecto, expresso por palavras e beijos em cuja sinceridade ninguém acredita, mas que se repetem como se fizessem parte de uma coreografia em que só restam os menos interessantes, porque os do bombo e os dos Zés Pereiras já não estão para isso.


Por último, estou a imaginar a palavra "arruada" a ser parte de um verso do Manuel Alegre, sobre uma mulher sem casa e só como rua, a quem a rua fizesse o que a outras faz a lua, as aluadas.


Estou a imaginar esse verso e talvez - de novo Coimbra - uma canção de Adriano Correia de Oliveira ou, mais tarde, do Ary dos Santos que a partir da "arruada" escreveria em quinze minutos mais uma cantiga para a posteridade sobre todas as arruadas da vida. Um hino.


E já estou a ver o título, "Rua da Arruada" e qualquer coisa parecida com aquela musiquinha "era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia…".

4 comentários:

Marta disse...

:) :) muito bem observado, Tiago.

eu, confesso, gosto mais da palavra arrozada de... tamboril, por exemplo ;)

bom fim semana

Tiago Taron disse...

das proóximas a que gosto mais acho que é "arruxada". O candidato "x" levou uma arruxada na arruada na Rua da Rosa.

Aurélio Malva disse...

Caro Tiago
Li com atenção, mas não integralmente, o seu extenso artigo e começo por felicitá-lo pela forma como escreve.
Em relação à sua investigação do termo "arruada", embora diversificada, está muito centrada na actualidade e na cultura urbana. Acontece que é uma palavra muito antiga e muito ligada à tradição rural, significando o "desfile do gaiteiro pelas ruas da aldeia nos dias de festa". Podemos também entendê-la no sentido de "passeio festivo pelas ruas" sem qualquer outro objectivo que não o da pura diversão (o que não me parece ser o caso das 'arruadas' partidárias ou das manifestações, que visam sempre transmitir uma mensagem ou fazer um protesto).
E, só para finalizar, a palavra 'arrochada' existe mesmo mas não com a grafia que utilizou. Significa, obviamente, 'pancada com arrocho', que é um 'pau curto e arqueado para apertar a carga da cavalgadura'.

Abraço.

Tiago Taron disse...

Caro Aurélio Marta, muito obrigado pelo comentário e, em especial pela explicação, impecável. Quanto ao cumprimento dada à "forma como escrevo", ainda que o agradeça, sei que o devo à simpatia e não à verdade já que - e como bem nota na correcção da palavra arrochada - a forma como escrevo é do piorzinho, talvez por isso pinte cada vez mais e escreva cada vez menos.