13.10.09

Ao Senhor do Circo:

Hoje de manhã acabei de acordar para a realidade enquanto ouvia o Fórum da TSF. Às vezes acordo assim, primeiro acordo um quarto de mim com o despertador, depois outro quarto com o cigarro + duche e finalmente com a trepidação dos jingles dos noticiários da TSF. Ouvi então a notícia sobre a Portaria que proibia aos Circos a aquisição de novos animais (à excepção dos que podemos ter em casa), assim como a reprodução dos existentes. O trânsito começou-me a incomodar ainda mais, estar forçado a estar parado somava-se à impossibilidade de gritar contra a hipocrisia dessa medida. Para complicar a situação a TSF começou a transmitir o seu habitual FORUM dedicado ao esse mesmo assunto. Continuava parado e ouvia agora as intervenções dos ouvintes. O desconforto crescia, anotei o número da TSF para ligar mal chegasse ao escritório, a certa altura ouvi um Senhor a falar, chama-se Vitor Hugo Cardinali e apeteceu-me deixar o carro mesmo ali, na fila da Escola Politécnica que não avançava e correr para o escritório. "desculpe mas tenho de fazer mesmo isto, não está a ouvir a rádio". Lembro-me nestas alturas do que e minha mulher diz sobre as personalidades que são mais atreitas ao enfarte, estou a fazer tudo ao contrário, mas quando se faz já tanto ao contrário mudar uma só coisa não adianta nada e acendo mais um cigarro.

É muito fácil dizer mal do Circo, é tão fácil que qualquer pessoa medianamente honesta deveria deter-se ante essa facilidade. Adjectivos como "grotesco", "dantesco", miserável", "violento", "feio", "buçal", fluem em torrente ante a última lembrança de nós sentados no circo, já depois da idade em que era – e creio que não foi só para mim – não só o maior espectáculo do mundo, como o maior catalisador de sonhos do mundo (as fugas que eu imaginei, as paixões que tive e fantasiei, quase sempre com as meninas do trapézio).

É fácil achar tudo aquilo grotesco e até será esse o sentimento natural do pai que distraidamente acede aos pedidos dos filhos que querem ir ao circo, depois de ouvirem pela enésima vez o discurso estridente de um homem que trata todos com uma deferência que é para desconfiar "estimável público", "cavalheiros", "damas", "honra da vossa visita", reservando uma ainda maior cerimónia aos intervenientes do anunciado espectáculo "a belíssima e rebelde domadora de serpentes", o "príncipe dos magos", a "odalisca dos céus". Naqueles dias de chegada do circo esses anúncios conjugavam-se com o aparecimento dos cartazes com cores dos anos cinquenta e um estilo de desenho semelhante ao dos enormes panos que em cada cinema eram pintados à mão por alguém que trabalhava ainda mais no escuro que o homem da máquina de projectar (assim eu pensava) quando via os cartazes do cinema Rivoli (os que gostava mais eram os do Trinitá). Depois havia o local onde o circo se começava a montar e a admiração de todos que não resistiam a ir ver o que é que aquele circo trazia, em especial os bichos.

Nos últimos anos fui muitas vezes ao circo com os meus filhos e dei comigo a pensar isso mesmo. Isto não é para os miúdos, eu devia protegê-los disto, dos estrondos, das piadolas de mau gosto, da parte em que alguém da assistência é convidado para sair muitas vezes humilhado e com umas palmadinhas nas costas, da parte do número sem graça em que todos ficamos a olhar para o chão.

Porém, depois de passar o umbral do circo, o umbral dos primeiros minutos, quando o ambiente se reorganizava para reconstituir o ambiente do meu circo de infância (a banda, o cicerone apessoado e pedante, as luzes, a expectativa a ansiedade de todos perante o primeiro número de perigo), a minha primeira aversão cedia vencida pela força do regresso ao imaginário de miúdo e pelo regresso do ambiente de fantasia de que é feita uma pista de circo.

Das últimas vezes que fui ao circo tive consciência destes sentimentos contraditórios e acabei mesmo por desenhar todo um espectáculo, num dos blocos moleskine que no final da sessão ofereci ao meu filho mais velho e que ainda hoje diz que é dos meus desenhos o que gosta mais, como também diz, que foi dos dias que passámos juntos um dos que se lembra com mais saudade.

Comecei então a estar atento aos circos que apareciam nos locais onde estava e acabei por perceber que estava a viver os últimos momentos se uma realidade que já não pertencia a este real. As pessoas que fui conhecendo nos circos mais pobres e pequenos já não tinham lugar nesta época de escolaridade obrigatória até ao 12º Ano e de Cirque du Soleil com lotações sucessivamente esgotadas, baterias de luzes, som e bela juventude em doses completamente desproporcionadas com aquelas que eram para nós a nossa noção de circo. Philip Glass, em vez do Duo Ouro Negro, efeitos especiais de laser em vez do apagão motivado pelo desligar do quadro ligado ao gerador.

Há cerca de cinco anos almoçava num restaurante em Vilar de Mouros, na mesa do lado almoçava um homem só, muito só. Eu estava a desenhar por acaso uma imagem de um circo (o circo pelo qual tinha acabado de passar) e entretinha-me a colorir o desenho com as aguarelas que trazia no bolso. Como muitas vezes acontece acabámos por falar sobre o desenho que pediu para ver. Ofereci-lhe o desenho porque percebi que gostou sinceramente dele. Quando lhe disse que era para ele deu-se uma daquelas situações para as quais não há fórmulas de reacção e que me deixam muito aflito, paralisado. O homem a quem dei o desenho chorava. Olhava para o desenho e sem proferir um som, um lamento, um gemido, caíam-lhe as lágrimas pela face. Contou-me depois de pousar o desenho que era o dono do circo, que naquele dia se tinha desentendido com a mulher que lhe cobrava a circunstância de ter envolvido toda a família naquela aventura do circo em sempre tinha estado, primeiro ao serviço de outros circos, depois, quando conseguiu juntar dinheiro suficiente, há uns largos anos, adquirindo o seu. Tinha uma das tendas mais bonitas de circo que havia em Portugal, era pequena, mas era das antigas, com as franjas à antiga e a estrutura geométrica da nossa ideia de circo, a mesma que estava no desenho que lhe oferecera.

Dos vários filhos que tinha só um o acompanhava no gosto do circo, os outros sentiam-se obrigados e pretendiam, tal como a mulher, acabar com o sofrimento de percorrerem tantos Quilómetros para não terem dinheiro para o gasóleo de mais uma deslocação, para não terem que comer, tendo de dar prioridade à alimentação dos animais. Lembrei-me do funâmbulo Valenda, que acabou por morrer numa travessia do arame, açoitado por uma rabanada de vento mais forte, na cidade de San Juan de Porto Rico. O mesmo Valenda que também acabou sozinho, depois de todos os filhos o terem sucessivamente abandonado, tal o risco a que estavam constantemente expostos por um pai que ia aumentado de número para número o grau de dificuldade.

Aquele homem contou-me muitas histórias do Circo, muitas e eu fiquei uma tarde inteira a ouvi-lo e só lhe deixei, como expressão da minha admiração, um pequeno desenho. Não fui capaz de lhe dizer mais do que: "se um dia precisar de alguma coisa, se eu poder ajudar em alguma coisa, sabe eu sou advogado, o que não quer dizer nada, mas teria todo o gosto em auxiliá-lo se um dia vier a precisar". Quando disse isto não sabia ainda o progressivo desencantamento que iria sentir com a minha profissão e que lhe estava a oferecer o que talvez hoje não lhe pudesse proporcionar. O Senhor do circo, saiu, foi buscar a carrinha do anúncio estridente, foi acabar de colocar uns cartazes nas redondezas e à noite vestiu mais de cinco fatos diferentes, repartindo-se entre a apresentação dos números e a execução de quatro números diferentes, número comum a cada um dos membros da sua família.

Hoje, ao ouvir aquela notícia e ao ouvir o Senhor Victor Hugo Cardinali, senti o que acabei de descrever, uma enorme impotência perante uma injustiça, aquele sentimento que não se explica mas que transforma a cor da atmosfera e o sabor que temos na boca como nenhum outro.

Mal cheguei ao escritório tentei ligar para a TSF, atenderam-me. Passados 15 minutos telefonaram-me de volta, ia já falar. Voltaram ao telefone, afinal era melhor desligar para não estar à espera, que voltariam a ligar em breve. Fiquei à espera, enquanto esperava perguntava-me o que iria responder que era, advogado ou pintor, sou mais pintor hoje do que era advogado no dia daquele almoço, e sou, sobretudo, muito menos advogado.

Passados dez minutos ligaram outra vez, pedindo desculpa, afinal já não havia tempo para falar, ficava para a próxima, muito obrigado, agradeceu impecável quem me ligou. Mas eu tinha de falar, nem que fosse só para aquela senhora tão educada e que conseguia falar devagar quando tinha certamente trinta chamadas em linha, ou trinta outras pessoas para lhes dizer o que acabara de me dizer. E falei:

"Não sabe a Senhora o que me custa não poder participar no programa. Era para mandar um abraço muito grande a um senhor de que não me lembro do nome e para lhe dizer que não desista. Era para dizer que nada disto faz sentido. Que neste país não existe uma lei que proteja os animais dos maus tratos. Atirar um cão de um décimo andar, como aconteceu há tempos em Coimbra, só foi crime porque o cão aterrou em cima de um carro, logo foi crime de dano sobre o carro (o cão não tinha dono). Quando há dois anos me pediram para apresentar uma queixa crime porque alguém com um tractor passou por cima de um rebanho de ovelhas, com o único intuito de fazer mal ao proprietário do mesmo, falei com os senhores que agora celebram a publicação desta Portaria e perguntei-lhes: O que eu estou a constatar é verdade? É mesmo verdade que se eu matar um cão a pontapé na via pública não cometo crime nenhum? É mesmo verdade que se eu atirar um cão pela janela do carro junto a uma ponte, para que ele desapareça, nada me pode ser feito em termos penais? É mesmo verdade que neste caso das ovelhas eu apenas possa apresentar uma queixa por crime de dano? Relacionado com o valor das ovelhas? Responderam-me que sim, que era mesmo verdade. Fui então à procura da história deste vazio, deste indecente vazio e encontrei uma referência a um projecto lei que há anos havia sido preparado pelo saudoso Dr. António Maria Pereira", projecto esse que consagraria a ser aprovado uma primeira lei de protecção genérica aos animais. Minha Senhora, desculpe o tempo que lhe estou a tomar, mas sabe como é que foi recebido o Dr. António Maria Pereira quando entrou no Parlamento para apresentar o seu projecto, com alguns deputados a zurrarem. A lei não foi aprovada. Falei então com algumas Associação de Protecção dos Animais e procurei saber qual o empenho destas na aprovação de uma lei desse tipo. Percebi que não tinha interlocutores, que as Associações com quem falara estavam interessadas em "começar por algum lado" como pela abolição das touradas, o fim dos animais que não os domésticos nos circos, o fim dos gansos alimentados até sufocarem em si próprios para fazer fois gras. Desliguei e senti uma enorme tristeza porque estava, mais uma vez, tudo ao contrário.

Sabe, minha Senhora, era isto que eu queria dizer e que se existisse uma lei destas, que na maior parte dos países da Europa que imitamos existe, nada disto podia estar a acontecer. O Governo, as autarquias teriam de zelar pelo cumprimento da lei, se fosse de concluir que os animais não eram bem tratados então que se actuasse. Provavelmente as touradas teriam de acabar, por força dessa lei (o que se pessoalmente lamento tenho de aceitar que, em coerência, aconteça), agora o que não pode acontecer é o que acaba de acontecer hoje, esta tremenda injustiça. Mas era só mesmo para mandar um abraço às pessoas do Circo. Obrigado pela sua paciência."

Desliguei o telefone e lembrei-me de uma frase que li no outro dia, no blog de D. Funes: "As leis inúteis enfraquecem as leis necessárias". Pois é e o que é que fazem às necessárias as leis perversas? Matam-nas, adiam-nas e fazem pagar o justo pelo pecador.

2 comentários:

Patti disse...

Este seu post Tiago, é um tratado de humanidade.
Havia tanto para comentar neste seu texto, mas seria inútil; o Tiago disse tudo.

Ainda ontem desliguei este computador horrorizada, pois o último post da noite que eu li, era sobre uma gata branca, linda que adorava estar à janela de casa a ver a rua, aliás como todos os gatos.
Saiu para dar a sua volta do costume, quando voltou vinha sem um olho.
Acção humana, desconfia-se.

E a foto está lá no blog, chocante. É ver para crer. Não coloco aqui o link, pois pode não querer, mas se ao contrário quiser ver, diga-me.

Quem é que paga por um acto destes? O que é que isto revela dos homens?

Com tantos animais na terra, porquê só um ser escolhido para racional?

Tiago Taron disse...

Obrigado Patti, muito obrigado.