16.2.10

LOANDA (continuação Carnaval)




Avenida larga, deserta. Larga para um tempo que haverá de vir, estupidamente larga naquele então, ladeada de casas demasiado quietas, sempre assim, com as janelas sempre assim, sempre com as portas fechadas e os mesmos carros ali adormecidos. Do outro lado da avenida estão prédios, que olham as casas quietas com inveja e que têm muita gente dentro e as janelas irregulares em várias posições, esforçam-se também por participar no mesmo silêncio, mas têm carros que chegam e partem, de vez em quando, vagarosamente por causa desse respeito. Eu vesti-me de palhaço, umas calças às riscas de balão, as mesmas que no ano passado serviram para me mascarar de árabe. Tão largas são que consigo colocar junto a cada uma das coxas uma almofada, presas com atilhos. Um nariz vermelho que embacia com o bafo e me faz respirar pela boca para que não fique tão quente, duas bolas na cara com o rouge da mãe, pintadas quase com o mesmo excesso que eu acho que ela o usa. Na cabeça um chapéu de coco, era a única coisa falsa, era de cartão e tinha sobrado de um carnaval qualquer do Porto, talvez um dos poucos carnavais no Ateneu, onde havia um baile onde nunca haveria de participar, porque entretanto veio Lisboa e depois Cascais.


Estou pronto, pego na bicicleta que há uns meses consegui pintar toda de azul. Pego na bicicleta e faço a Avenida, que é a Avenida Infante D. Henrique em Cascais, vezes sem conta. Vou até à bomba da Toyota e volto até ao fim da Avenida. De vez em quando passa um carro e eu vejo o meu disfarce à sua passagem. O disfarce só existe quando é visto, à aproximação do carro vejo a silhueta do palhaço que agora sou, com um enorme rabo formado pelas almofadas e uma camisa que fica enfunada pelo vento. Tenho doze anos e este é o meu Carnaval de 1977.

4 comentários:

analima disse...

Que bela memória de um carnaval passado!

Tiago Taron disse...

a memória, por acaso, só é bela porque reconstroi com nitidez, mas o ser nítida quanto à solidão daqueles dias, não os torna melhores, nem belos, excepto pela auto-comiseração de que vivem algumas memórias (brrrrrr e a auto-comiseração é coisa feia), Obrigado Analima.

analima disse...

Eu acho que compreendi o tom da descrição. A beleza a que me referia era a da escrita. Tem razão em relação à autocomiseração mas todos nós, de vez em quando, caímos nela :)

Tiago Taron disse...

está a chegar aí a primavera, não tarda, e esta espécie de bulor que é o estado "auto-comiserativo", desparece por pudor ou medo daquela luz com cheiro.