19.3.10

PAI


Quando fiz dezoito anos li em segredo o livro mais clandestino de sempre, porque era um livro indecente, que dizia as coisas que eu sentia e nunca teria tido a coragem de te escrever. Ainda hoje recordo a capa da "Carta ao Pai" de Franz Kafka e de ti a chegares ao Restaurante em Coimbra, numa das tuas visitas nos primeiros anos em que lá estudei. Era um restaurante Italiano e tinha uns bifinhos com bacon por cima e um arroz selvagem ao lado. Guardava esse lugar para ti, como um luxo, como o luxo do tempo que era estar contigo, como o luxo que era actualizar a memória da última vez que te tinha visto, ter uma recordação mais próxima do presente em que estiveste sempre ausente. Entraste no restaurante e eu virei o livro ao contrário, a capa para baixo. Hoje é o teu dia e olho para a tua fotografia e volto a sentir o orgulho de ser teu filho, como eu gostaria que cada um dos meus tivesse de mim.


"Atrevo-me a afirmar que em toda a tua vida nunca te aconteceu nada de importância comparável à que para mim tiveram essas tentativas de me casar. Não quero com isto dizer que não te tenham acontecido coisas importantes em si, antes pelo contrário, a tua vida foi muito mais rica em acontecimentos e em preocupações, muito mais tumultuosa do que a minha, mas foi exactamente por isso que nunca te aconteceu nada do que me aconteceu a mim. É como quando uma pessoa tem de subir cinco degraus baixos, havendo outra pessoa que tem de subir um só, mas um que, pelo menos para ela, é tão alto como os outros cinco reunidos; a primeira não se contentará com os cinco degraus, subirá centenas deles, milhares até, terá uma vida cheia e extenuante, mas nenhum dos degraus subidos terá para ela tanta importância como teve para a outra o seu único degrau, o mais alto, que ela é incapaz de subir, mesmo apelando para todas as suas forças, que é para ela inatingível e, por maioria de razão, inultrapassável. Franz Kafka, in Carta ao Pai



4 comentários:

lua vagabunda disse...

FABULOSO!
Obrigada por nos recordares esse espantoso livro de Kafka.
BEM AJAS!

Patti disse...

Eu não o li aos dezoito, Tiago. Estou a lê-lo agora, com a necessidade de duras pausas.
Um pequenino livro sufocante.
Revelador da vulnerabilidade do homem.

E parabéns a si, Pai.

Margarida Azevedo disse...

Bem hajas, versão antiga.

Helena Paulino disse...

Eu li Carta ao Pai de Kafka, no primeiro ano da Falculdade. Mas ainda se encontra aqui, não sei bem onde, misturado com outros livros de outros autores. Mas tb. na minha mente, nunca esqueci. Mas o que tu escreveste hoje acerca do encontro com o teu pai, e à uns dias um texto sobre a tua bicicleta, sabes, fiquei fascinada,como há muito não ficava, como quando era adolescnte e entrava na livraria Portugal,e via muitos livros... ainda hoje sinto o cheiro... que não sei se existia.Tiago, obrigada.