O NOSSO TEMPO
Advertência: Eu desconfio das palavras. Não é bem das
palavras enquanto a modalidade (verbal) em que mais nos exteriorizamos ao outro, mas das
minhas palavras.
Não gosto da distância a que ficam do que quero dizer,
sobretudo quando escrevo. Mas não tenho outra maneira de procurar dizer o que
sinto ser dever dizer. Assim e sem nunca deixar de procurar que as minhas palavras consigam trepar a outra zona
de inteligência que a reservada à lógica jurídica que as formatou nessa língua, dialecto mentale: o advogadêz[1].
Eu falo advogadêz e isso é tramado, porque é uma língua que sem aviso prévio se
sobrepõs à que falava antes de entrar para o curso, no tempo em que ainda escrevia. Como o corrector ortográfico do meu computador
se sobrepôs ao anterior sem que eu tivesse querido e sem que eu agora o consiga
tirar, para continuar a escrever como sempre escrevi.[a minha principal
objecção ao acordo ortográfico nem sequer é por razões de defesa da língua viva
(expressão deliciosa) que é o Porrtuguêis do Brasil (que é o Português mais
vivo). Eu nem sequer tenho objecções ao
acordo ortográfico, porque é assim que a coisa funciona, é inevitável. A minha
coisa com o novo dicionário que sub-repticiamente se instalou feito um posseiro
no coração do meu word é que fica feio o écran cheio de risquinhos vermelhos e
isto para não falar no incómodo do filho da mãe do coisó Plug in ou lá como
pulou para aqui, estar sempre a interromper o raciocínio, sugerindo a "nova redacção", obrigando-me a parar o raciocínio e a morumurar palavra como seria dita agora – ainda há pouco
isso me aconteceu quando escrevi peremptoriamente (que foi imediatamente
substituído por “perentoriamente”). Altera-me as palavras e quando releio as
coisas chego a duvidar, mas eu não escrevi isto, isto é um gajo desempenado e contemporaneíssimo.
(A sério, sem ironia nenhuma. Fico por instantes com a sensação de “não é meu”, eu não tenho esta
actualidade).
Escrever sem sentir o atrito das palavras, isso é que eu
gostava de saber como se faz para escrever o que não posso deixar de dizer com elas. Escrever
sem ficar a olhar de fora para o que se escreve, sem a chatice da forma. Escrever
a ideia sem ruído, escrever directo, sem precisar do assobio do mormúrio do som das palavras ou da
geometria dos pensamentos dentro das frases.
Feita a advertência, que deve ter sido lida como se dita no
mesmo tom que os conferencistas pedem desculpa por não dominar a língua em que
vão falar, com educação e sem – assim espero – nenhuma da arrogância do Senhor referido na nota de rodapé. Aqui vai:
Nós somos a nossa circunstância. Sim.A
diferença entre mim e o meu filho mais novo é sobretudo a diferença do ser do tempo dele e do
ser do meu tempo.
À lotaria do lugar onde se nasce
acrescenta-se a do tempo em que se nasce. Sentimos o efeito do tempo nas coisas, percebemos que ele é de facto o maior escultor. Anterior a essa primeira noção do tempo (que também se transforma em jaula, em fardo, com o tédio), existe um tempo anterior a nós, o tempo em que ainda não estávamos aqui. Conseguimos mesmo anular o mistério do antes do
nascimento (tão grande geometricamente como o do depois da morte) através da
presença que sentimos em nós dos antepassados. Esse tempo anterior vai-se afunilando
até ao fim dessas memória pressentidas dos antepassados. Se em vez de dizermos antepassados dissermos ancestrais então a dimensão do tempo "sentido" aumenta exponencialmente (provavelmente eco de "astral" que a palavra
tem.
Com a consciência da magnitude temporal do universo da comparativamente insignificância do tempo ancestral", com o conhecimento que tempos, desde que nos ensinaram a história da humanidade, da pequenez temporal dos últimos dois mil
anos da humanidade (um século não é uma eternidade, é o tempo que separa muitos
dos que estão vivos daqueles que são ou foram os seus avós), é a idade do
Senhor Manuel de Oliveira, são vinte vidas do Senhor Manuel de Oliveira. Se eu disser "há
vinte vidas do Manuel de Oliveira nasceu Jesus", há qualquer coisa que estremece
em mim. Uma sensação de conta errada, da intranquilidade do que não bate certo
com o nosso entendimento do tempo. Mas é verdade. Foi há dez Manuel de
Oliveiras que se deu a fundação de Portugal, como nos ensinaram que aconteceu.
Quando nos falaram disso éramos crianças, mil anos era uma espécie de
equivalente a infinitos (como diziamos então, repetindo a palavra no plural muitas vezes, quando queriamos explicar que o que gostávamos de alguém não tinha fim nem tamanho).
Se pensarmos no Holocausto então custa-nos a imaginar
que os nossos avós tivessem sido contemporâneos desse momento, que tivessem
vivido aquilo em directo. Parece ter sido noutra vida, quase com outra
humanidade. Percorremos dois mil anos num instante, se tentarmos colocar essa
porção de tempo na escala do tempo dos Deuses. Se tentarmos imaginar qual o
tempo – se é que ele existe – do projecto da criação cristã até ao “juízo final”. Temos de concordar que os dois mil anos já percorridos, são mesmo muito pouco, que estaremos muito longe, que estaremos ainda muito no
início.
Compreendemos que outros povos tenham pensado tantas vezes na
eventualidade do fim colectivo próximo e tenham afeiçoado às suas escalas de
tempo as profecias apocalípticas. No nosso tempo a profecia apocalitptica já
não vem da bruxaria e está ligada à Ciência e a apresentações em power point
feitas por AL GORE. É por essa via que experimentamos a ideia do fim que está
em todos os apocalipses. Sabemos que essa é uma das possibilidades,
experimentamo-la ainda que inconscientemente, imperfeitamente, nas suposições
vagas do que será um fim desses. Assim, a primeira coisa que me parece evidente
é que o Nosso Tempo é muito curto para perceber o tempo da “humanidade”. Até porque sabemos das enormes
diferenças que a “humanidade” assumiu
nestes afinal tão curtos dois mil anos (romanos, árabes, idade média,
renascimento, romantismo, belle-époque, revolução francesa (foi há menos de
três séculos: a avó da minha avô poderia ter estado lá (a minha avó nasceu a
3 de Outubro de 1895, logo separam-me do nascimento dela 118 anos, 1895-118
anos, logo a sua avó poderia bem ter nascido em 1777, a tempo de assistir à
guilhotinagem de Maria Antonieta).
O que é que destinguirá o “nosso tempo”, como é que ele será
visto de fora, de aqui a dois mil anos? Bom, esse exercício é vizinho ao do imaginar
um fim colectivo. Porém e se o que destingue o "nosso tempo", se aquilo pelo qual
se tornar conhecido nesse futuro em dobro ao que nós já vivemos desde o
nascimento de Jesus, for qualquer coisa do nosso carácter actual que se
equivalha ao buraco do ozono do “apocalipse”? Qual o traço do nosso tempo que
se poderia considerar replicado na humanidade daquilo que está a acontecer
na terra?
A minha primeira sensação é que esse traço é a ilusão do
homem/individuo (e não Homem/espécie) ser a medida de todas as coisas. O homem individuo, o eu e a sua
esperança de vida, como a matriz temporal que importa. Se tentar
percorrer essa mesma sensação sem a assustar, consigo imaginar um tempo em que
o mais importante não fosse – para quem nesse tempo viveu – o tempo que
pessoalmente iria viver mas a sua participação num tempo maior, no tempo da sua
espécie, no tempo maior dos Deuses. Chego aqui e paro, começa aqui a parte do
buraco negro mental, onde as ideias, mesmo as menos verbalizáveis, as que são só imagem,
deixam de existir de se poder formar.
Dita esta salganhada toda, o que me parece é que o nosso
tempo é o do princípio de um fim com estrondo de um individualismo que
provavelmente se exacerbou com a colocação do homem/individuo no centro de
todas as coisas, quando qualquer ser com um mínimo de pudor e – sobretudo –
instinto de sobrevivência, não se coloca no centro de todas as coisas. Sei
muito pouco de história, mas sei o que intuo do tempo que me foi contado.
O nosso tempo para mim é o do fim do “homem/individuo como
medida de todas as coisas”.
Visto o tempo assim, fico impressionado com a facilidade
como que nos excluímos do tempo em que estamos, e da nossa enorme cumplicidade
filial em relação a ele, apontando o dedo a Sócrates, a Cavaco, à Troika, à
Merkle, ao Senhor da Coreia. Somos nós., É o nosso tempo e parece-me mais ou
menos evidente que o que está a acontecer na Europa soa a princípio do fim de
um tempo muito mais longo do que nós possamos imaginar. Se tivermos de recuar
até que a primeira semente deste tempo em que o “homem/individuo” funcionou
como definidor danossa organização de vida e da nossa consciência de nós próprios e de nós na vida. Pensar num tempos em que não tenha sido assim, obriga-nos a recuar até outro buraco negro relativamente ao qual só
tenho uma muito vaga ideia: esse tempo deveria ser em muitos aspectos
semelhantes àquele que está para vir. Ao pensar isso penso que o caminho será agora a
marcha atrás do tempo, vamos ter de passar por uma nova idade média e temos mesmo é que nos preparar para os encantos dela. Porque sabemos que os tem,
ainda que esse tempo seja conhecido como o “das trevas”.
[1] A
primeira vez que ouvi esta expressão “advogadez”
foi num julgamento proferida por uma testemunha a quem o Colega do lado tinha
acabado de fazer a primeira pergunta. A testemunha era um daqueles
administradores das novas empresas público-privadas. Estilo: “sei que sou arrogante
mas estou-me a conter, por educação”; hábito de olhar
desnecessariamente atentissimamente para as irís do interlocutor. O meu Colega
tinha o mesmo primeiro nome que eu e era o advogado daquela contemporaneissima Companhia – como eles gostam de dizer “a companhia” (prazer do mesmo género dos que em Coimbra diziam "tsta casa", para se referirem à Universidade) – parte contrária do meu cliente, num diferendo bem
conhecido daquele administrador. Foi com ele que ouvi pela primeira vez a expressão "advogadês", quando em respota
à primeira pergunta que o advogado da Companhia, lhe atirou (estes tipos - quando se lembram
de uma em que se gostam especialmente de ouvir – atiram mesmo): “Oh Doutor,
importa-se de repetir a pergunta sem ser em advogadêz). Fantástico.
Fantástica a palavra e fantástica a confusão daquele tipo. Ele tomara o
Advogado da “companhia”, pelo advogado da parte contrária. Refugiei-me na leitura dos
apontamentos anteriores como se estivesse embaraçado que o Administador da Companhia estivesse a ser
incomodada pelo Colega, Quando chegou a minha vez de inquirir o Administrador senti que deveria esclarecê-lo que o Colega que o inquirira fora quem o indicara como testemunha e que da minha parte - considerando o teor e o tom das respostas, nada , nada mais tinha a esclarecer.
Sem comentários:
Enviar um comentário