14.11.08

INÍCIO DE UM FOLHETIM



Ilha dos amores

Guarda Freiros

PARTE 1

Agora estava sentada junto à sua mãe. Descansava as pernas de ter andado nas últimas horas com o irmão mais novo ao colo. A mãe não falava há muito mais tempo. Desde que chegaram ao porto no princípio da manhã, terminando a viagem que começara ao entardecer do dia anterior, que ela se calara. Sabia que a mãe não tinha concordado com a ideia do pai, que estava a tratar das passagens, como o Tio Afonso lhe tinha dito para fazer. Ouvira falar daquela viagem e da decisão de partirem para África aos bocejos, de vez em quando percebia que estavam a falar daquele assunto, porque quando falavam daquele assunto o faziam de porta fechada, no princípio em voz baixa que rapidamente o papá quebrava, sobrepondo-se ao murmúrio que era a voz da mãe, até que ela, depois de ele falar muito, esperava que ficasse tudo quieto que ele não acrescentasse mais nada e dizia, agora sem qualquer murmúrio, o que pensava, encerrando a conversa.

Não ouvira o que ela dissera dessa vez. Aquele assunto fora mais bem guardado que outras questões tratadas dessa maneira, à porta fechada e sempre com a mesma evolução das vozes, murmúrio, voz do papá a crescer, silêncio, voz da mãe. A primeira dessas questões de que se lembra teve a ver com a venda de uma leira que a mãe tinha herdado. O pai teimava em vendê-la para poderem melhorar a casa, dizia. Ela opôs-se, disse-lhe o que pensava ser o dever de um homem. Conservar, cuidar e se possível acrescentar. Que era filha de um homem que sempre se portara como tal e que por isso lhe deixara a leira que comprara pouco depois de casar.

Ela sabe que a ideia que tem do pai vem muito destes momentos em que ouve a mãe falar-lhe como nunca o faz quando estão todos juntos, à mesa ou a caminho da missa ou nos dias de feira quando lá vão. Era nessas alturas o pai anunciava as decisões. Geralmente apanhava-a de surpresa, porque as decisões são o contrário daquilo que tinha ouvido como conclusão. Como aconteceu no caso da leira, em que um dia, no fim do leilão da missa ele lhes disse, pensando certamente no dinheiro que não tinham para comprar o que quer que fosse, que iriam mudar a sorte, iriam vender a leira do Avó João. Nessa altura ficou sem saber se o pai tinha tomado aquela decisão nesse momento, anunciando-a à mãe à frente de todos para que ela não a discutisse, ou se depois daquela conversa que ouvira no seu quarto contíguo ao deles, outra qualquer coisa se passara, nos sussurros com que às vezes acordara a meio da noite, que tenha feito a mãe concordar com o que antes se tinha oposto.

O mesmo silêncio da mãe revelava agora o que ela procurara saber sem o conseguir. Ela não concordara também com a partida para África. Olhou a mãe que se mantinha muito direita e arranjada, alisando as pregas da saia sobre os joelhos. Era tão bonita a sua mãe, pensara. Dizia-o não sabendo que o que para ela era bonito na mãe era que estava sempre tão bem arranjada, tão como devem as pessoas estar sempre, com um aspecto limpo, muito composto e sempre contentes por serem quem são. Sentiu pela primeira vez medo. Se a mãe não concordava, se o pai era o que ela sabia, o que poderia esperar daquela viagem para um sítio tão distante como Angola, Benguela. Será que nunca mais iriam voltar? Será que esta era a última vez que estavam relativamente perto (uma noite de viagem) da aldeia onde nascera e onde ficavam as únicas coisas e pessoas que até àquele momento conhecera? Deu consigo a repetir o mesmo gesto da sua mãe, a alisar também as pregas da sua saia. Percebeu que a mãe reparara no tique involuntário e que compreendera os seus pensamentos, como muitas vezes acontecia. Nessa altura a mãe levantou-se olhou para ela e perguntou-lhe se tinha fome? Ela disse que não, que estava só a descansar, que estava bem. A mãe abriu a cesta de vime que era usada nos Domingos em que faziam lanches nas matas do Avó João e tirou de lá uma carcaça com marmelada que lhe entregou com um guardanapo que ainda tinha bordado o seu nome "Maria".

Tinha catorze anos. Fora à escola da Mestra Berta até aos doze, idade em que fizera a profissão de fé e passara a ajudar a mãe na loja do Tio António. Cortando o pão, o paio e a marmelada para as merendas, lavando os copos, preparando os jarros de vinho, mas nunca, por estar expressamente proibida por sua mãe, nunca servindo nenhum homem.

Ouvia então as conversas deles e quando começavam a falar o que a sua mãe achava que não devia ouvir, ela pedia-lhe para se retirar.

Mais do que aprendera na escola o que sabia sobre África chegara-lhe das conversas na loja desde que anunciaram a decisão de aceitar o convite para um posto no caminho-de-ferro de lá. O pai trabalhava como guarda-freio nos caminhos-de-ferro de cá. Levantava-se muitas vezes à noite e ia de bicicleta com uma lanterna e uma mala, onde estava uma lanterna maior, para junto do caminho-de-ferro à espera do comboio a quem acenava a lanterna com o vidro verde sobre a lamparina, se tudo estava bem, com o vidro vermelho, se havia problema.

A vida do pai era diferente da dos outros homens da aldeia. De dia estava muito mais tempo que eles em casa, à noite saía também muito mais vezes que eles, sem que se soubesse quanto tempo demorava. Os comboios atrasavam-se muitas vezes e ele também, depois de ouvirem passar o comboio (porque o conseguiam ouvir apesar da casa ficar a cinco minutos a pé do ponto mais próximo da linha) chegava muitas vezes horas depois, quando não ficava para o próximo comboio, o que regressava de Espanha, pela mesma linha única.

Junto do seu posto o pai tinha um pequeno quarto, com uma cama e um candeeiro de azeite. A mãe mandava-a lá duas vezes por semana. "Abrir as janelas e deixar entrar o ar para que saísse daquele sítio a preguiça e a peçonha". Dizia-o assim muitas vezes, sem lhe dar explicações e era das poucas vezes em que dizia alguma coisa que pudesse ser entendida como uma critica ao pai.

Das primeiras vezes que fora àquele quarto junto da linha do comboio, encontrara-o triste, com uma manta remendada sobre a cama e uma mesa-de-cabeceira. Só tinha uma porta, que fazia de janela, porque se dividia a meio. A parte de baixo da porta tinha um arco recortado. Explicou-lhe o pai que o anterior guarda freios era um homem que vivia ali sozinho e que gostava muito de gatos. O cheiro vinha então dos gatos do anterior guarda-freios. Diz-se que foram eles quem de tanto miar, de fome ou da perda (nunca se soube ao certo em que dia o homem morreu) alertaram a aldeia, depois de vários comboios terem passado sem que qualquer lanterna lhes acenasse e sem que quem quer que seja da companhia de caminhos de ferro tivesse aparentemente dado pela sua falta. Por isso, dizia-lhe o pai, o seu trabalho era na verdade inútil. Se havia qualquer coisa para reparar na linha, que ele percorria para ver se estava tudo bem, não era ele que podia reparar, mostrando apenas a lanterna com o vidro vermelho antes do sítio da avaria (quando não havia tempo para que viessem os operários repará-la), ou telegrafando para o posto de Cerveira, que enviaria os operários da reparação. Sobrava-lhe assim tempo e, sobretudo vontade para fazer mais coisas, mais coisas que nunca fez, ou pelo menos que nunca explicou a Maria.

Enquanto o pai lhe falava assim ela sentia que era uma maneira de ele se desculpar pelo que ambos sabiam ser a ideia da mãe sobre ele. Um homem que não era quem o Avó João teria querido para marido de sua mãe e, pior, um homem que não conseguira até então convencer ninguém do contrário. Percebia-o, percebia a mãe e com o que ouvia na loja percebia que não devia falar à mãe das garrafas de vinho e bagaço que encontrava arrumadas cuidadosamente debaixo de uma caixa ao lado do casinhoto, garrafas sempre vazias e que de vez em quando desapareciam para ser substituídas por outras. Omitia também à mãe tudo o mais que encontrava naquele quarto, sem que também algum dia o tivessem comentado ela ou o pai. O quarto do posto do pai era assim um sítio onde a mãe não ia, onde ela só ia quando o pai não estava e onde todos fingiam que só ele lá entrava, mesmo que todos soubessem que Maria duas vezes por semana o arejava como mandava a mãe, sem nenhum outro efeito que o de prepará-lo para voltar a receber aquele homem afinal também solitário e que tinha os seus hábitos, como o outro guarda-freio os deve ter tido. Que ali tinha outras mulheres, que ali jogava, que ali passava as noites de luar, encostado à porta e tocando guitarra (só nessas vezes continuava a tocar o instrumento que tanta popularidade lhe dera nas festas da aldeia).

Tudo isso tinha acabado. Para aquele posto iria outro homem, que seria também estranho, geralmente de poucas palavras, como era o anterior guarda-freio.

Lembrava-se agora da última vez que fora ao casinhoto. Tinha sido no início da semana, já lá iam seis dias. O pai tinha-o deixado há três. Na azáfama da partida a ela não lhe ocorrera ir fazer a última limpeza, para preparar a casa para o próximo senhor estranho. Sentira um sobressalto, o pai não teria tido o cuidado de fazer desaparecer o que sempre desaparecia sem que ele se tivesse de preocupar (os rascunhos dos bilhetinhos de amor, as folhas onde apontava os jogos de cartas e as apostas de cada um dos jogadores que por lá passara, as garrafas). Iria ser descoberto. Estariam longe, já não lhes poderia fazer mal o que quer que dissessem.

Voltou a sentir o medo de há pouco e com receio de ser de novo percebida pela mãe, começou a comer o pão com marmelada, a seco, ainda mais a seco porque como dissera não tinha fome.

O pai regressou com vários papéis numa das mãos e o chapéu na outra. Estava com a mesma expressão com que ficava quando tinha de se explicar e parecia sempre que ou não sabia ou que não sabia como dizer. Cada vez que tinha de explicar o que quer que fosse a estranhos, ficava com esse ar de perdido, de dúvida, que desde muito pequena a afligia, dando-lhe vontade de substitui-lo nas palavras que não saíam e que às vezes ela sabia quais deviam ser. Agora não o podia ajudar, não percebia nada do que se estava a passar, ou seja, não sabia como é que de repente se sai de uma aldeia onde sempre viveram, se entra no comboio que sempre viu passar e se vai para uma terra onde está sempre calor, onda as pessoas são de outra cor e há não muito tempo – palavras da Mestra Berta - se comiam uns aos outros. Não percebe como é que se faz para chegar a um sítio tão distante e, desta vez, percebe a cara do pai.

- Estão compradas as passagens. Partimos amanhã de manhã. O barco vai sair à hora.
- Maria, ficas com o teu irmãozinho num pequeno camarote, eu e a tua mãe vamos numa camarata. Tratas dele à noite e se precisares de alguma coisa vais ter de nos mandar chamar.

Ela não sabia, mas a circunstância de estar quase a fazer quinze anos, o muito bonita que era e as formas que de repente a haviam tornado uma espécie de versão no feminino do moço bem parecido da aldeia que fora o seu pai, levaram-no a – e mais uma vez sem consultar a mãe – pagar bom dinheiro para não a expor à camarata da terceira classe do barco e a reservar para ela e para o irmão, um pequeno camarote em primeira classe, para que não sofresse tanto com a viagem.

Nessa noite dormiram todos no mesmo quarto de uma pensão junto ao porto, triste e mal iluminada, ouvindo as sirenes dos faróis junto à entrada da barra, a barra que passariam na manhã do dia seguinte e que os afastaria não se sabe por quanto tempo, nem se sabe bem para quê, do lugar onde crescera e que agora lhe parecia definitivamente perdido e onde estariam as coisas que se esquecera de arrumar no quartinho do pai.

Acordaram vestidos. As malas haviam ficado junto ao cais, para serem colocadas umas no porão e as mais pequenas uma na camarata e a outra no pequeno camarote que sempre tinha sido possível arranjar. Foi o Tio António quem aconselhara o pai a tentar arranjar para ela o camarote: - A viagem é longa e muito dura para as crianças. A rapariga já não está em idade para dormir entre homens e ainda não está casada para ser protegida. Poupa-te arrelias e vê se arranjas um pequeno camarote que esses barcos sempre têm à popa e que são usados para os serviçais dos que vão em primeira e não prescindem de os ter próximos. O António sempre soubera dar conselhos e o pai sempre os escutara. Por muito contrabandista que dissessem que fosse, ou tivesse sido, sempre soubera mais das coisas do mundo e da vida que todos os outros que o pai conhecera. E que mal teria ser contrabandista. Pensava nisso e lembrava-se de uma série de outras coisas que sempre lhe tinham dito eram más sem que nunca tivesse pensado sobre elas. O Tio António não saberia aquelas coisas se não fosse contrabandista, se não tivesse que ser mais vivo que os vivos, mais ligeiro dos ligeiros, no seu tempo assim deve ter sido. Soube fazer a sua vida, juntou o seu, fez a Loja e para onde quer um ir beber um copo? – Onde haja uma história para ouvir ou alguém a quem a contar. Essa pessoa era o Tio António. Por muito que dissessem mal do contrabando, para todos os da aldeia, os verdadeiros heróis eram esses mesmos de quem à surdina se dizia cruzarem o rio pela noitinha, regressando pelos montes semanas depois de manhãzinha.

Ouvir -->Gondarém/Amália: http://br.youtube.com/watch?v=r5MawDT9zRM






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