4.12.08

Delirium


O melhor quando se tem gripe é aceitar a boleia do leve delirium que a febre dá e perceber que a realidade, as pessoas e as situações são as mesmas, só que meio de pernas para o ar, meio fora do baralho habitual. Percebido isso até começa a ter graça a nova realidade. Ontem, depois de um dia quase sempre passado à chuva (primeiro à espera de um reboque para o carro, depois à espera de sucessivos táxis e finalmente à espera do carro que me deram enquanto o meu fica na oficina), senti que a gripe que trazia por resolver de ante ontem se instalava com todo o à-vontade de quem foi não só incentivado a vir, mas entusiasticamente incentivado a entrar, com frases muito melhores e mais poderosas que o "sinta-se como se estivesse em sua casa". Não, durante o dia de ontem eu disse à minha gripe, oh pá bora lá passar um fim de semana comigo no Alentejo, podes fazer de mim o que quiseres, e ela veio, talvez pelo tédio do dia cinzento em Lisboa conjugado com a animação que desde logo lhe passou a dar a perspectiva das judiciarias que ia desfiando enquanto me atacava literalmente ao ponto de eu ter deixado de sentir o meu corpo para só sentir o corpo dela, como se a minha pele fosse apenas um fato de macaco que a cobria, a minha gripe. De tal forma se instalou que quando cheguei à Rent-a-Car de Prior Velho, obtive imediatamente um atendimento prioritário, que certamente não é dado nem à mais desovante das grávidas. "Sempre conseguiu chegar?"perguntou a senhora da recepção. Eu olhei para o lado e para trás para ter a certeza de que era comigo que ela falava. "Como é que sabia que era eu?". Com essa cara só podia ser a pessoa da voz que à pouco me falou a confirmar a reserva. Se os senhores não se importam eu atendo já este senhor. O ar de aprovação geral de todos os presentes, em simultâneo com um ligeiro movimento daquele tipo que cria uma clareira à nossa volta. Ainda senti mais frio, agradeci e a voz falhava como se estivesse a fazer o teatro da gripe, era ela a começar o seu programa de duende traquina e com idade suficiente para acrescentar à traquinice perversidade. Lá entrei no carro, tinha mudanças automáticas, percebi que aquilo já tinha a sua mão. Voltei a entrar na recepção e perguntei se não tinham nenhum carro com caixa convencional. Pois olhe que eu sou ao contrário só me ajeito com as automáticas, disse logo um gajo com aquelas camisolas de lã de estudante do técnico, meio cinzentas e com umas riscas que acentuavam o perímetro abdominal. O gajo deve viver com a mãe, agora está de partida para ir ver um pólo universitário qualquer e a empresa de informática alugou-lhe um carrito, e ele só quer automáticas. Eu só quero enfiar-me dentro de uma cápsula com ar condicionado a bufar como se fosse uma instalação em quadrifonia de secadores de cabelo com soround, num carro em que eu não trave a fundo quando quiser reduzir de mudança e sentir que estou a embraiar. Dou comigo a contar-lhes que o maior desastre que ia tendo estivera para acontecer por causa da caixa automática, em Porto Rico, numa auto-estrada. Estava um carro do meu lado direito e eu quis reduzir para quarta para ter mais velocidade e nisto, em vez de embraiar pumba, travão a fundo, o carro fez um pião e agora estou com esta gripe, que me altera os sentidos e não tem mesmo um carro com mudanças convencionais. Calei-me a tempo, no desconjuntado das frases tinha acrescentado à percepção deles que para além de estar doente, também não estava a jogar com o baralho todo. Na melhor das hipóteses sou um excêntrico, na pior um gajo com uma ganda moca ou simplesmente atrasado mental. Lá chega o segundo caro, tem um botão que parece um interruptor de parede das luzes de casas de banho Philipe Stark. Depois de muito procurar a pôrra do travão de mão lá vejo que aquele interruptor tem o símbolo do travão de mão, agora vou descobrir como é que se destrava, é com o pé no travão, claro. Obrigado senhor segurança, muito obrigado, já agora como é que depois se tira a chave e se volta a pôr. A Chave é uma espécie de ficha de pokémon que se introduz numa ranhura, tipo as moedas de plástico dos carrinhos de choque. Tem de colocar o pé na embraiagem e retirar suavemente a chave. O segurança já se preocupava com o carro e por isso o "suavemente". Lá fui, a ouvir a Antena 3 que consegui sintonizar, no mesmo botão em que sintonizava o secador de cabelo no máximo e que é ainda o botão de todas as outras fantásticas funções do novo carro. O conta Km vai até aos 300, eu ainda sou do tempo em que se olhava para dentro dos carros para ver até onde ia o conta kilómetros. Hoje se o meu filho o fizesse era porque estava a ver se havia alguma coisa rapinável no automóvel. É mais difícil ser miúdo agora. Esqueço por instantes a gripe, o gozo de guiar o carro sobrepõe-se e ela estará a preparar a sua - o que então desconheço - e vai adormecida por aquele calor que começa a fazer aquecer as orelhas que ficam mais vermelhas do que quando saem de um banho de imersão quente e aí começa de novo o desconforto. Na rádio passam o concerto do Rui Reininho no festival Super Rock em Stock. Não suporto aquilo em que o gajo se tornou, é um dos meus casos de amor / ódio. No início era o meu grupo de rock preferido, até aos "Homens Não se Querem Bonitos" ("as naves que eu construo, não são feitas para navegar, resistem à violência do beijo, naufragam nas ondas do mar", ou "leve, levemente como quem chama por mim, perdido na bruma, nevoeiro sem fim, ponho-me à escuta, com muita atenção (…)". Agora está a cantar o Bem Bom das Doce: "Uma da manhã, Bem Bom, Duas da manhã, Bem Bom, depois canta o Simpaty for the Devil - please to meet you, hope you guess my name (…)". Definitivamente não o suporto, qualquer dos covers do Cámané é melhor que esta treta. Quando chego à portagem e abro a janela, vêm todos os arrepios que tinham estado à espera de atacar, de uma vez só. Abanam-me, sacudo o que volto a ser - um fato de macaco com a gripe dentro - sem que o frio, nas palmas geladas dos pés e das mãos, desapareça. Estou na estrada do monte, está demasiado frio para os coelhos, não me cruzo com nenhum. Ultimamente só os vejo quando vêm os miúdos no carro, só então aparecem, eu não devo ter graça, abrando a velocidade para o caso de se cruzar algum não o atropelar. Não pode ser isso, até porque eles não conhecem o barulho deste carro.

Estaciono em frente à porta de casa, deixo os faróis ligados e o motor a trabalhar. Entro, estou a meio da casa, está um quase escuro que apenas permite ver só o vago das portas, deixei o blusão no carro, voltam os arrepios pela espinha de peixe cá dentro, gelada, branca e perfurante e começo a ouvir o que poderia ser um dragão, vindo do interior da cozinha, a bufar e a cuspir, sem cessar, a contorcer-se e a manter sempre a expiração, sem nunca inspirar. Entro na cozinha, o que deve ser a baba inodora do dragão chega-me praticamente aos tornozelos, os sapatos que engraxei ontem no Chiado, dizem, oh não, outra vez não. No escuro a coisa continua a contorcer-se, seja o que for assustou algumas outras coisas que se precipitaram para o chão e até a máquina de lavar roupa procurou fugir e está bem no meio da cozinha, só impedida de ir mais longe porque mantém a trela do cabo que a liga à corrente. Tem as luzes vermelhas todas acesas, está em pânico, percebo imediatamente. Avanço até ao lugar onde deveria estar a máquina, uma enorme serpente, passa-me pelo braço de raspão, quando se afasta enche-me de água o tronco e parte da cara, bufo também para tirar a água, estou de cócoras com os dois joelhos dentro de água, a serpente refugiou-se no pequeno cubículo onde estava a máquina. Assim não a consigo ver, preciso de luz para a apanhar, nisto o que faltava ser molhado em mim acaba ainda mais encharcado, directamente pela bica da serpente, indirectamente, pelo ricochete que o jacto de água faz nas paredes do cubículo. Não, o telefone não pode servir de lanterna numa situação destas, tenho de entrar ainda mais no cubículo e descobrir onde está o coração da serpente (ocorre-me que existirá uma torneira de segurança que liga os canos da máquina de lavar roupa, encontro-a e rodo e rezo profunda e devotadamente para que enquanto rodo a intensidade daquela cascata diminua, de raiva começo a cantar a música dos Pequenos Vagabundos, tarâ, tarâ, tarâ, tan tan tan, tan tan tan, tarâ, tarâ, tarâ, tan, tan, tan.

De repente tudo aquilo fica no maior silêncio, só os olhinhos vermelhos da máquina continuam com a mesma expressão, agora ouço os meus passos dentro de água, não são bem passos, porque dentro de água o movimento dos pés faz-se de outra maneira, arrastam-se, como se estivessem algemados, sou o Stalker do filme do Tarkowski, a gripe dentro de mim está em êxtase aquele cenário é uma espécie de ecosistema natural para ela (ver foto no topo). Quero fazer um chá, tenho a água pelos tornozelos, não dá para fazer um chá com a água gelada pelos tornozelos, é tão contraditório que receio qualquer cataclismo como consequência. Sou o Stalker, abro a porta da cozinha que dá para o terraço e munido de duas vassouras e uma esfregona, todas juntas para fazerem mais área em baixo, começo a provocar uma enorme agitação oceânica naquelas águas paradas, que começam a sair com estrondo para o pátio, primeiro, para o meu, depois para o dos vizinhos. Paro, tento avaliar a inclinação do terreno para perceber se a água pode entrar pela porta do vizinho da frente, vejo que não, entre as nossas casas a rua é mais baixa no meio, levo a coisa até ao fim, consigo tirar a água toda, agora vou fazer um chá, praticamente não consigo segurar na cafeteira de tanto tremer de frio, então agora vou mudar de roupa. A provação do frio sobe de intensidade, a casa está fechada há quinze dias e esteve nesta enxurrada durante horas. É melhor não ligar já nada de eléctrico, vamos esperar, tenho os pés sobre a pedra do quarto, mas o que está mesmo mais frio são as mãos, e o tronco quando tiro a camisa colada e que entretanto se rasgou a meio nas costas. Atiro os despojos para as namoradeiras de pedra que existem junto às janelas, corro para o guarda fatos, não encontro, sem luz, o que procuro, agora posso usar o telefone. Neste instante toca o telefone, tenho os pés no mesmo sítio, não consigo falar, não vejo nada, utilizo a chamada para tentar ver e lá me consigo vestir. Faço o chá, tento ligar uma luz, funciona, aquecedor, funciona. Cama. Três edredons e cinco mantas. Não chegam, a cama está húmida, não posso fazer mais nada, em breve chegarão, só tenho de estar muito quieto e esperar que o pouco que resta de calor na minha pele, "meu fato de macaco com gripe dentro", possa aquecer os lençóis e fazer desaparecer a sensação de que estão molhados. Doem-me partes do corpo que nunca tinha sentido, doem-me os cabelos, a parte dos dedos em que começam as unhas, a parte de trás do lóbulo da orelha esquerda, a que apanhou com um borrifo em cheio. Só tenho de conseguir adormecer, só tenho de conseguir adormecer. Construo um verdadeiro iglo com os três edredons e com as cinco mantas, primeiro sobreponho-os com ordem, depois entalo-os debaixo de mim, nas costas e nas pernas, finalmente encaracolo-me com o cuidado de me certificar que não há nem uma nesga em contacto com o ar, excepto a cabeça, para conseguir tossir sem sufocar.

Adormeço, tenho o pesadelo mais estranho que me lembro de ter tido na vida e que será matéria para outra posta. De manhã ouço passos, é a Helena Ilona que veio tirar a roupa da máquina que ontem deixou a fazer às três da tarde, quando cá veio limpar umas coisas. Explico-lhe que a máquina é muito sensível e que não gosta de trabalhar sem a sua companhia, tanto assim que ontem quis ir a atrás dela. A Ilona olha-me da mesma maneira que os outros da rent a car me olharam ontem. A gripe em mim controla a gargalhada, eu acabo por rir, para que a Ilona perceba que era para levar a sério o que lhe acabo de dizer.

9 comentários:

PA disse...

Tiago posso ensinar-lhe uma maneira de se aquecer rapidamente, mas mesmo muito rapidamente, dentro da cama, quando a companhia não abunda, e o frio é em excesso ?

Eu ensino ....

Também aprendi com alguém.
Com uma amiga polícia ...
Esta minha amiga sabia truques fantásticos de sobrevivência. Aprendi alguns com ela.

Passo a explicar (é muito simples):

Só precisa de ter uma tomada perto da cama ou longe (se tiver uma extensão).

E de ter um secador de mão. Daqueles que as senhoras usam para secar o cabelo em casa.

Mete-se na cama.
Liga o secador e aponta para dentro da cama.
Mas com cuidado.
Não tapa o secador com os edredons ou cobertores.
Sempre com secador, ou seja, com a traseira do secador, do lado de fora.

Vai ver que a cama e você aquecem num instante.
Depois de se sentir quentinho.
Pronto. Já não precisa do secador.

É só uma sugestão...se o desespero do frio for muito.
Que deve ter sido o seu caso, ontem.




Temos algumas coisas em comum.
Também estou com gripe.


:-)


fique bem.

Tiago Taron disse...

interessante, agora como sempre falta-me o kit, nem amiga polícia para a demonstração, nem secador de cabelo que está para as mulheres como o pincel da barba está para os homens, porque é dos objectos estrategica,emte esquecidps na casa de banho da casa do outro, enfim, marcação de território, o pior é o destino desses objectos quando a dona/dono não está lá para os proteger, os últimos secadores tiveram todos eles fins trágicos, às mãos da cruela seguinte.
Agora isso também há naqueles naqueles aspiradores complicadíssimos, que têm uma função para bufar quente, a menina que uma vez cá veio fazer a demonstração do aparelho, no final, também falou dessa última e desesperada razão para o comprar, infelizmente não comprei mas fiquei ali a admirar a técnica, interessante, sem dúvida.
E a propósito não há nada seu que eu possa ler?

PA disse...

tiago a gripe tomou conta de mim. Vou já para a cama. Amanhã respondo-lhe.





Fique bem.

Patti disse...

A gripe é a mais malvada das doenças corriqueiras. Tipo vizinha má-lígua.
É falsa, surge quando não esperamos e com dois ou três sintomas põe-nos de rastos.

Estive assim na semana passada e aos 37,5ºC de febre já deliro. sonhos então nem se fala, são verdadeiros filmes ao nível do Tim Burton.

As melhoras e como diz um amigo meu do Porto: avinhe-se, abife-se e abafe-se.

Eclectica B.d.A. disse...

Lo mejor de la Gripe..es que te hace escribir de forma directa, sin intermediarios, (salvo el lapiz o lapicera)al PAPEL....,tus pensamientos, ...tu mente, ahí mismo.y nos sentimos hasta un poco avergonzados con la intromisión..

Álvaro disse...

Eu cá se fosse a si Dr. Talon, o que ue fazia era umas perguntinhas aqui aos engripados, sobre o texto, para ver se eles tinham lida aquela coisa comprida como o ... faltam-me palavras para descrever o comprimento

pergunta tipo

Onde é que eu engraxei os sapatos ontem ?

Tiago Taron disse...

Eclectica B.d.A:
Vá lá, diga lá onde é que engraxei os sapatos ontem?

D. Álvaro
Já o Fiódor me tinha falado de si, olhe que a parte dos sapatos é mesmo lá no finzinho, quer ver que o amigo teve mesmo a pachorra de ler aquilo tudo? Faz-me lembrar a história dos judeus e das sardinhas. Sanuel vendeu um carregamento de sardinhas a Jacob, que por sua vez vendeu a Isac que vendeu a Ruah e por aí fora, até que toda a judiaria já tinha comprado e revendido o carregamento, Rábi, por não saber a quem revender, vendeu a Mustafá, vizinho da comunidade seguinte, que logo as colocou no mercado de Xing Xu, chinês proprietário de loja tlem tludo. Intoxicação alimentar em todo o bairro chinês. Xing Xu diz: expilica Mustafá, expilica, Mustafá pede a explicação a Rábi e este diz-lhe, mas Mustafá o Xing Xu não percebe nada disto, as sardinhas não eram para comer, eram só para ir revendendo, já me dizia o meu pai, não dá para fazer negócios com estranhos.
A do Talon não percebi, mas era certamente para ter graça e deve ter certamente. Volte sempre muito D. Álvaro

Patti disse...

Voltei aqui para ver se tinha feito outro post e ao ler o comentário do Álvaro, deixe-me dizer-lhe que li tudinho e com muita calma, desde a gripe, à pane, passando pelo seu ar infeliz no rent-a-car, até à 'serpente' da inundação e até contei as mantas e os edredons
A Helena confesso que não sei quem é, sempre embirrei com o Rui Reininho e o Philipe Stark tem peças de design brutais e hotéis também.

E quanto ao tamanho do texto, dizem os 'entendidos'(?) que não resulta em posts, que as visitas se dispersam e que estão mais numa onde de posts curtos, incisivos e directos.
Não é de todo o meu caso.
Pois, continue Tiago, se mais houvesse, mais eu lia.

Tiago Taron disse...

Patti, ontem estive em Lisboa, dedicado a este novo mundo dos Blogs. Fui à Fnac ao lançamento da Transa Atlântica, passei pelo Frágil onde havia uma Blog Party e tudo isto no dia em que o corta-fitas escolheu este blog como o blog da semana. Para já estou meio paralisado, quer por ter presentes destinatários com rosto, quer pelo insólito disto tudo (escrevo no meio de um monte, como tenho repetido, sem vivalma em dedor e neste momento tenho a ilusão de estar perto de muita gente). Muito obrigado pelo incentivo