28.12.08

Parte 2 da Variação da História do Príncipe com Orelhas de Burro




"Apesar de muito crente a mulher do jardineiro que parecia ainda mais bela que a mais bela das ciganas era por estas muito respeitada e tinha por elas uma enorme simpatia e curiosidade Juntava-se aos grupos nómadas que voltavam ao reino nas noites de Verão e chegava a ajudá-los na apanha dos espargos bravos, comendo com eles até os ouriços, que consideravam o melhor dos petiscos." (da anterior parte).


Numa das noites que por lá ficara - e havia muitas noites dessas quando eles fundavam o seu acampamento à entrada da vila - ela aconchegara-se no seu lugar na fogueira, entre os tapetes e o ombro de uma cigana avó. Falara-lhe do que lhe tinha acontecido. Isso de não poder ter filhos, isso de se achar o fim de uma linhagem e de não poder ter filhos, por isso.


A cigana ouviu-a e falou com os olhos fixos na fogueira, como ela os tinha e manteve: - Há muito tempo que sabemos como quebrar esse alhado. Estás a ver aquela burra? Perguntou a cigana apontando para o animal, sempre sem desviar os olhos do lume.


A mulher do jardineiro seguiu-lhe o gesto da mão estendida.


- Acabou de ter um pequeno jumento. O leite da burra é precioso e desde os tempos dos avós dos avós dos nossos avós que é usado para muitos efeitos, um deles, para que as mulheres que como tu pensam serem o fim de uma "linhagem", como dizes, tenham os filhos que dizem não poderem ter. Basta que tomem um banho na noite de lua cheia em leite de burra. Esse banho quebrará o feitiço e a mulher que o tomar durante aquela lua terá não um mas dois filhos. Gémeos.


A cigana calou-se, no silêncio de quem vai continuar e a mulher do jardineiro esperou.


Ali, naquele lugar, à volta da fogueira e com aquelas pessoas tudo fazia sentido, ouvia as histórias mais fantásticas e nunca as estranhara, tinha desde muito cedo a sensação de que poderia ter vivido muitas vidas diferentes da sua, mas que - como todos - só uma poderia viver. Era assim que vivia a sua vida, aceitando que mais do que "só se vive uma vez", só se vive uma vida. Isso dava-lhe uma espécie de encantamento cada vez que podia observar uma vida diferente da sua a ser vivida, como a vida da bela rainha, como a vida desta cigana que agora voltava a falar:


- Serão gémeos, porém, um nascerá jumento e outro humano. O jumento terá qualquer coisa de humano e o humano qualquer coisa de jumento.


Nessa parte ela olhou-a e a mulher do jardineiro encarou a cigana para lhe dizer que tinha percebido. Devem ser ambos criados juntos, para que juntos bebam a partir 33ª lua cheia, durante essa fase da lua, ao mesmo tempo e da mesma malga, de novo leite de burra, aí poderão separar-se, sendo que o jumento encontrará a sua natureza, perdendo o que de humano tenha, e o humano será então totalmente humano. (Continua)

1 comentário:

Patti disse...

"O jumento terá qualquer coisa de humano e o humano qualquer coisa de jumento" - Cada vez mais é assim, acho eu.