24.12.08

Parte 1 da Variação da história do Príncipe com Orelhas de Burro

Uma das casas de Luís Baragan




Havia um palácio que quase não se via da estrada. Chegava-se a ele fazendo um caminho no meio de uma planície que terminava num bosque que também lá havia.


Até ao bosque a única coisa que mostrava que ali havia um palácio - um palácio como nunca se imaginou - era uma cúpula prateada, em forma de pingo (ou daqueles chapéus estranhos que se viam nos cavaleiros mouros dos antigos livros da história de Portugal - na parte dos mouros, na parte do retrato do mouro). Para além dessa cúpula que parecia espreitar o resto do mondo desde um lugar secreto, como o parece fazer aquele tubo que se vê fora de água nos submarinos, ou como também parece pescoço e a cabeça de uma avestruz, quando olham para nós por detrás de um muro.


O Palácio tinha um nome igual a um outro lugar que faz vagamente lembrar aquele e que existe a caminho do Guincho, quando se vai pela estrada interior (a da Malveira). O Palácio chamava-se "Quinta da Felicidade".


A quinta fora construída pelo pai da Rainha. Gostava tanto da filha que mal ela nasceu, logo, logo, quando a viu pela primeira vez e jurou que ela o olhara e sorrira, que resolvera deitar abaixo o valho castelo de pedras escuras e pesadas madeiras, mandando construir em seu lugar uma casa luminosa, com muitas das divisões sem tecto ou com tecto de cristal, sem portas e cheio de paredes redondas em que se tinha de adivinhar a saída por conhecê-la, ou porque seguindo-as com a mão se descobria onde se interrompiam. Hoje, as casas mais parecidas com esse palácio foram feitas por um arquitecto que se chamava Luis Barragan.


Havia umas partes do palácio que entravam pelos jardins e tal como acontecia com o chão, também com as paredes não se percebia onde é que estas acabavam e começavam as roseiras, as trepadeiras de folha caduca, a relva francesa, o musgo.

A rainha era bela como aquele palácio que parecia dsenhado não à sua escala mas como uma réplica em casa do que ela era como mulher. Tinha a Rainha a mesma alegria que a parte mais iluminada das divisões que davam para o jardim, a mesma serenidade dos pátios interiores por onde corria a água através dos caminhos abertos no chão ora de pedra, ora de madeira, cheios de imagens e objectos ora brilhantes ora só enigmáticos, o mesmo mistério da torre do Palácio que se via da estrada e cuja porta de entrada não era conhecida senão pelo Rei e, depois da sua morte, pelo seu sucessor, o marido da Rainha.

Andava a Rainha com a mesma elegância e suavidade das paredes do Palácio que se confundiam naturalmente com a vegetação. Caminhava como se imaginaria que o fizessem aqueles capazes de caminhar sobre as águas, deslizando sobre o chão, como se os seus passos fossem dados sobre um tapete de ar.

Certo dia ouviu o velho jardineiro a Rainha dizer: "Linda roseira que sempre tens flores para dar, quem me dera ter a tua graça para um príncipe gerar.". A voz vinha detrás da roseira que o jardineiro podava sem que se tivesse apercebido da chegada da rainha, que por sua vez igualmente ignorava que por detrás do lugar onde falava com as rosas estava o velho jardineiro que sem querer ali a ouviu,

Embaraçado o jardineiro retirou-se daquele lugar, o que fez em silêncio, deixando a rainha entregue aos seus pensamentos e às confissões que deles fazia às rosas.

Incomodado com o que ouvira e incomodado por ter ouvido o que ouvira, o velho jardineiro - que como todos quantos viviam no Castelo queriam a sua rainha como os pobres da lenda do "São Rosas Senhor" deveriam crer na Rainha Santa Isabel -acabou por não conseguir ficar sozinho com essa angústia e acabou por contar à mulher.

Três dias e duas noites passadas do momento em que escutara aquela frase da Rainha, o Jardineiro, depois de se deitar ao lado da sua mulher e antes de soprar a vela que trazia numa palmatória, disse a esta: - Ouvi sem querer e agora não sei como proceder, nem como este enigma resolver: que quereria a nossa boa Rainha ao dizer: "Linda roseira que sempre tens flores para dar, quem me dera ter a tua graça para um príncipe gerar." ?

A mulher do jardineiro segurou-lhe na palmatória da vela, e colocou-a na mês ao seu lado, encostou-se nas almofadas de linho e olhando-o respondeu: - Não vez homem meu, que é claro o que à nossa boa Rainha aconteceu, calhou-lhe por ser tão bela aquele fado, que de ser o fim de uma estirpe como eu."

A mulher do jardineiro era uma variante em moreno e agreste, da bela Rainha. Tinha para ela como certo, desde que percebera o efeito que causava nos outros - não só nos rapazes, mas em especial na dificuldade que desde cedo sentiu com as outras mulheres - que não podia ter filhos porque era o fim de uma linhagem de mulheres bravas, estóicas e que desde a sua bisavó vinham sendo cada vez mais bonitas, mais bravas e mais estóicas. Sentia isso como uma fatalidade, daquelas fatalidades que compensam uma graça e acreditava piamente nisso. Entretanto existe uma variante moderna desta teoria, a qual só foi possível graças ao progresso da ciência que revelou que a maior parte dos casos de infertilidade não é feminina, mas masculina. A variante dessa teoria consiste no facto de que os homens de fim de linhagem, ou estirpe, geralmente os mais ricos e chatos, conquistam as mulheres mais interessantes, que por serem os melhores exemplares do seu tempo, permitiram esse erro de interpretação da mulher do jardineiro. De facto o jardineiro era o melhor jardineiro daquele reino – e por isso era o jardineiro real, como o príncipe do reino vizinho era o mais chato e rico dos príncipes dos reinos vizinhos e por isso o actual Rei, por ter sido escolhido para marido da rainha.

Para a mulher do jardineiro que era extremamente crente, aquela sua maneira de ver as coisas não era sequer incompatível com a sua fé. Para ela Deus-Nosso-Senhor tinha pensado em tudo, e desta maneira nunca homem atingisse uma perfeição que se lhe pudesse comparar.

Apesar de muito crente a mulher do jardineiro que parecia ainda mais bela que a mais bela das ciganas era por estas muito respeitada e tinha por elas uma enorme simpatia e curiosidade Juntava-se aos grupos nómadas que voltavam ao reino nas noites de Verão e chegava a ajudá-los na apanha dos espargos bravos, comendo com eles até os ouriços, que consideravam o melhor dos petiscos. (continua)

1 comentário:

Patti disse...

Só hoje chego vinda do Natal e já estou de saída para dar um passeio ao Porto até 2009, mas ainda tive tempo de dar um salto à sua história de príncipes.

Muito original, este casamento simbiótico à moda de Barragan, entre a serena Rainha e a natureza, com presença marcante na Quinta da Felicidade: "Tinha a Rainha a mesma alegria que a parte mais iluminada das divisões ... sobre um tapete de ar".

E agora vou ao post acima, saber o que se passa com essa teoria do fim da ascendência para alguns.