6.1.09

Parte 6 da Variação da História do Príncipe com Orelhas de Burro

tt/09


"Da mesma maneira sonâmbula com que tinha entrado a Rainha fechou todas as portadas e no súbito escuro total daquela manhã radiosa, interrompeu o tempo que não queria estar a viver e dormiu, dormiu muito, dormiu até ser noite e depois de naquela noite se ter posto logo atrás das suas janelas fechadas uma enorme lua cheia. Uma lua que vista do jardim parecia estar ali para alimentar o que lá dentro daquele quarto estava a ser sonhado." (da anterior parte 5)

O Rei ficou preocupado quando regressou dos seus afazeres de Rei e viu as janelas do quarto na Torre da Rainha todas fechadas.

Entrou no quarto e abriu ligeiramente uma das portadas. Apareceu uma dessas tiras de luz que ao contrário das lâminas que escapavam entre as portadas do quarto do jardineiro, era uma espécie de véu de luz, em tudo parecido com aqueles que se vêm nos frescos das igrejas à volta das figuras suspensas nas nuvens. Um facho de luz ligeiramente oblíquo, com partículas do cheiro a flor de laranjeira a que cheirava sempre aquele lugar - à excepção das almofadas e lençóis que cheiravam a lavanda, porque eram humedecidos com água de cheiro antes de serem engomados.

A Rainha não acordou e o Rei olhou o seu perfil na almofada e voltou a reparar no que sempre notava quando a olhava assim a dormir. Havia um ligeiro movimento do nariz fino, um movimento em que parecia que aquele pequeno nariz estava suavemente a abrir passagem entre as nuvens do sono. Percebeu que ela estava bem e deixo-a.

O quarto do Rei era contíguo ao da Rainha, separado por uma antecâmara, praticamente um jardim, povoado de flores silvestres e três enormes vasos com umas tangerineiras que conservavam sempre a sua copa perfeitamente redonda. Não havia ali paredes, mas apenas vidros encaixilhados por madeiras de cor natural, claras como as madeiras do chão que de vez em quando crepitava. Num dos cantos existia uma enorme concha, escavada no chão, rodeada de grossas madeiras que num quarto de círculo acompanhavam a sua forma, apenas se interrompendo por uma abertura no meio, por onde se entrava para o banho.

O banho era preparado todas as manhãs por Julieta naquela concha gigante. Julieta era a melhor amiga e confidente da Rainha, vivia fora do Palácio mas conhecia tão bem a sua amiga de infância que estava sempre presente cada vez que a Rainha pensava que podia precisar dela.

A Rainha acordou do seu longo sono e abriu as janelas, deparando-se com aquela enorme Lua que ficara suspensa mesmo em frente à varanda. Julieta ficara a bordar depois do jantar, no enfiamento da janela por onde via a varanda e as janelas fechadas do quarto fechado da Rainha. O aparecimento da Rainha na varanda, com a sua figura esguia, envolvida na túnica de dormir, produziu um clarão que a fez interromper o bordado e encarar a imagem iluminada por aquela enorme lua.

Pôs de lado o bordado e saiu até às escadas que davam para a torre do Quarto da rainha. Eram umas escadas que praticamente não se distinguiam entre as trepadeiras e os troncos irregulares que faziam de parapeito na varanda do quarto. Umas escadas compridas que contornavam a torre e iam dando suaves voltas sob a vegetação produzida pelas trepadeiras que formavam um túnel por onde só cabia uma pessoa. Eram as escadas da Julieta e talvez só ela e a Rainha as conhecessem.

- Rainha, precisa de alguma coisa? Está tudo bem consigo? Perguntou Julieta que nunca aceitara - ao contrário das outras amigas da Rainha que passaram a fazer parte da sua corte - o tratamento por tu que a todas fora pedido quando a amiga se tornara Rainha.

- Na verdade preciso e só tu, minha boa amiga, me podes valer. Tive um sonho muito estranho em que aparecia o nosso jardineiro. Havia uma história no meio desse sonho, uma profecia que para se realizar dependia de que eu tomasse um banho de leite de burra. Acordei assustada e intrigada com esta história e, acharás tu muito estranho e por isso te peço que não faças mais perguntas, mas o que te queria pedir é que passasses pelo acampamento dos ciganos, que têm tantos burros e lhes perguntasses se nos podem ceder um pouco desse leite.

Julieta não perguntou nada e foi. (Continua)

1 comentário:

Patti disse...

Chegou na altura certa o Rei, em Dia de Reis e todo a descrição do texto onde ele está presente, parece uma pintura.