19.2.09

AINDA SOBRE A EXPOSIÇÃO E O NOME ALBATROZ

Delfim Guimarães



Há cerca de um ano comecei a pintar uma caravela, muito povoada com diferentes seres e uma quantidade enorme de objectos e casas que pareciam uma pequena cidade dentro dela. O desenho levou-me às caravelas de que ainda hoje não se sabe bem como realmente seriam, sabemos porém que foram e fizeram prodígios e um dos maiores seria o da sua própria imagem, quando vista por quem nunca as teria suposto possíveis.


Imagino os nativos de terras de Vera Cruz. Imagino-os olhando para o horizonte a ver aparecer primeiro um ponto branco no meio do mar e depois aquele vulto de madeiras escuras, velas brancas e uma cruz encarnada no meio de tudo aquilo.


Imagino a força dessa primeira imagem e compreendo que tenham tomado as caravelas por animais fabulosos, por pássaros enormes.


Imagino também que nos tenham tomado por seres igualmente enormes, aparentados com esses pássaros colossais que chagavam a flutuar vindos do infinito, vindos do meio do nada para os visitar.


Esta imagem imaginada - da primeira vez que um índio viu uma caravela chegar à costa - entretinha-me e ficava a pensar no espanto e na resposta que teria sido dada a esse espanto.


Dei então comigo a pensar que esse espanto teria sido muito maior então do que me causaria hoje a aterragem de um objecto voador não identificado ao monte onde pinto.


Tendo as caravelas sido tomadas por pássaros, começou a tomar forma nos meus desenhos delas a proa em forma de cabeça de albatroz, esse príncipe dos mares que plana mais de vinte e quatro horas sem um só movimento de asa.


A história das caravelas - e do albatroz e da alba e do atroz e das palavras e do destino e dessa confusão da primeira imagem - escrevi-a e desenhei-a então, numa espécie de precipitado confuso, num pequeno bloco que ofereci por causa de um aniversário que me apanhou quando o tinha acabado.


Por causa dessa oferta, quem recebeu o bloco, passados muitos dias, chamou-me a atenção para um poema que está inscrito numa lápide no mítico Cabo Hornos (Cape Horn) que ao ser passado dava direito ao marinheiro a furar uma orelha e colocar nela a argola que marcava esse feito. Dizia o poema o seguinte:


Sou o Albatroz que te espera

No fim do mundo


Sou a alma esquecida dos marinheiros mortos


Que passaram o Cabo de Hornos


Vindos de todos os mares da terra


Mas que não morreram


Nas furiosas ondas


E voam hoje nas minhas asas


Até à eternidade


Na última greta


Dos ventos antárcticos


Sara Vial Dezembro 1992


As incidências das caravelas e do albatroz continuaram. Um dia, quando almoçava com a minha filha Carolina ela explicou que tinham estado a ler na aula, em voz alta, um poema muito triste, que se chamava Albatroz e começou a recitar a parte que havia memorizado dele:


Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage

Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,

Qui suivent, indolents compagnons de voyage,

Le navire glissant sur les gouffres amers.



Le Poète est semblable au prince des nuées

Qui hante la tempête et se rit de l'archer ;

Exilé sur le sol au milieu des huées,

Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.

Eram o primeiro e último verso do Poema de Charles Baudelaire. Fui procurar a tradução para Português do livro em que está – as flores do mal, para lhe mostrar. Encontro o livro, reparo que é da Guimarães Editores e para surpresa minha vejo que a tradução ("interpretação em versos portugueses" como então se dizia e se fazia constar do livro) tinha sido feita pelo meu bisavó (seu trisavó) Delfim Guimarães. Guiado pela curiosidade destas incidências, procuro a data da edição da versão portuguesa das Flores do Mal. A primeira edição, que tenho na mão data de 1909. – Há cem anos Carolina o teu trisavó traduziu este poema! Sabias que a exposição que o pai vai fazer também se chama Albaatroz?


Entretanto o Albatroz é também o lugar onde aos Domingos ia com o meu avó para uma varanda aberta sobre o mar que hoje já não existe porque a fecharam e porque já não tem a simplicidade das cadeiras de verga e as cores marítimas das madeiras corroídas e a maresia que se sentia naquelas tardes de Domingo em Cascais.


Entretanto, as caravelas, as naves que desenho, trazem uma música dos GNR, uma das melhores e que era do álbum "Os Homens Não se Querem Bonitos" e que dizia:


"As naves que eu construo


Não são feitas para navegar


Aguentam a violência de um beijo


Mas nunca a do mar"


E foi assim, com estas com incidências que foi sendo feita a exposição que inaugura no próximo Sábado 21 de Fevereiro (das 17h00 às 22h00 – Galeria Bernardo Marques, nº. 81, Lisboa)

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