26.4.09

Conclusão da Variação da História do Príncipe com Orelhas de Burro

Nas sucessivas partes anteriores da história, com excesso de descrição e a correspondente falha de acção, contava-se o caso da Rainha que não podendo ter filhos vê o seu lamento escutado furtivamente pelo jardineiro, por trás do roseiral. O mesmo jardineiro que casado com mulher sábia e vivida logo lhe diz, ante a confidência do segredo que ouvira, que não há mal sem remédio e que para esse mal o remédio é um banho em leite de burra em noite de luz cheia. No meio do seu despertar o jardineiro ouve a fórmula mas esquece de registar os efeitos secundários. Disse-lhe a mulher e ele não registou no seu afã de ter a solução. Que depois de nascerem os prováveis gémeos, cada um deles teria de voltar a beber, ao mesmo tempo leite de burra, para que o que de jumento existisse em cada um deles se esvanecesse. Na última parte da história a Rainha tinha tomado o seu banho. A descrição está muito lá atrás, no tempo do Alentejo em que sobrava tempo para tudo, para descrever os azulejos da casa de banho e sei eu lá mais o quê.

Entretanto este blog despediu-se do monte e rendeu-se aos quadrados da cidade, transformando-se em "Amor ao Quadrado". Ficou porém a história por acabar. Recordo que a história tem a sua origem no tempo em que os meus filhos me pediam para que lhes contasse uma história de adormecer. Porque não gosto dessa ponta solta aqui neste sítio, aqui vai o resto da história, de uma vez só, "de uma assentada", como se escrevia antes ("de uma assentada, que eu pago já".

 
 

Resto da História.

 
 

Banho tomado, a Rainha regressa aos seus dias, mas não às suas noites, porque essas sob o efeito do perfume que o leite de burra deixa na pele, alteram radicalmente o comportamento nocturno do Rei. Inebriado pelo odor eis senão quando a sua mulher passa a ser a mulher por si mais visitada nas horas tardias do reino. Por isso nasce o príncipe. Mas a mulher do jardineiro tinha razão. Ele não vem sozinho e não vem completamente príncipe. Com ele nasce um burro com orelhas de gente e ele, príncipe, nasce com orelhas de burro. Feliz primeiro, furioso depois (mal acabou por saber da história) o Rei expulsa o Burro e o jardineiro do Palácio, do jardim do palácio e das mais próximas redondezas.

Entra na história então o mestre chapeleiro, que como em todas as histórias destes reinos, era o melhor chapeleiro do reino. Cabe-lhe a ele a tarefa de fazer os chapéus com que o Príncipe passa a andar todos os dias. Faz também, a partir de certa idade, todos os chapéus que o Príncipe usa à noite. Os chapéus que o Príncipe usava faziam parte das ordens do Rei que da mesma forma que expulsara o jardineiro e o irmão gémeo burro do Príncipe (de cuja existência o Príncipe nunca suspeitara), ordenara também que se destruíssem todos os espelhos do palácio, para que o Príncipe tardasse a reconhecer a sua diferença. Foi o chapeleiro quem um dia lhe mostrou um espelho e lhe contou que a razão de ser para ele estar ali era essa mesma diferença. Explicou-lhe então também que o dizia, que lhe contava isso, porque a lealdade que sentia era para com ele e não para com o Rei. Ele era a razão porque estava ali e por isso devia-lhe essa verdade.

Tornaram-se amigos o Príncipe e o Chapeleiro. Quando o Príncipe cresceu e se fartou de estar fechado no Palácio encontrou no Mestre Chapeleiro o seu cúmplice para poder sair à noite e regressar sem que mais ninguém se apercebesse disso.

Numa dessas saídas - nas quais os Príncipe levada sempre os fantásticos chapéus de noite que o Mestre Chapeleiro lhe fazia. Quando regressavam na carruagem que o Mestre Chapeleiro usava para ir - supostamente - ver a sua família distante, o príncipe pediu para pararem junto a um riacho. Ainda era noite e a condição que ambos tinham é que em caso algum chegariam depois do nascer do sol. Pararam. O Príncipe sentou-se junto ao riacho, tirou os sapatos, pousou o chapéu alto de veludo azul sobre os sapatos para que não se sujasse e ouviu uma melodia que poderia ser cantada por si. Era como estar a ouvir-se. Era o burro com orelhas de gente, que estava sentado a cantarolar - porque o burro cantava e falava em segredo à noite, quando ninguém o poderia ouvir. Intrigado pela semelhança da voz o príncipe seguiu-a e encontrou o burro. Estava sem chapéu, porque o tinha deixado na margem do riacho sobre os sapatos. Por isso quando se encontraram, o príncipe com orelhas de burro e o burro com orelhas de gente, ambos estremeceram e ambos perceberam imediatamente que alguma coisa de absolutamente extraordinário os unia. Sentaram-se ambos a tentar cantar em uníssono as mesmas cantigas.

Apareceu então o Mestre Chapeleiro, praticamente ao mesmo tempo que apareceu o velho jardineiro, que cuidara desde a sua expulsão, ele e a sua mulher, do burrico que sabiam príncipe, que sabiam gente, mas que escondiam como o Mestre Chapeleiro escondia sob os complicados e perfeitos chapéus, as orelhas do Príncipe.

É neste encontro entre os quatro que o jardineiro acaba por contar aos irmãos a sua história. Que era irmãos, que tinham nascido assim mas que tudo se alteraria no dia em que ambos, ao mesmo tempo, bebessem uma malga de leite de burra. Para desgraça dele esquecera-se de contar esse detalhe à rainha e quando dera por isso já era tarde, já todos (ele a mulher e o burrico) haviam sido banidos das terras mais próximas do reino, sob a ameaça de se desgraçarem se ousassem voltar a aproximar-se.

O burrico e o príncipe beberam então da malga que a mulher do jardineiro entretanto lhes servira, na casa para onde todos foram depois do jardineiro terminar a sua história. Imediatamente as orelhas do príncipe transformaram-se em orelhas de gente e o corpo do burro com orelhas de gente, transformou-se também em corpo de gente. O príncipe que era até então burrico era tal e qual o Rei (enquanto p Príncipe que já não tinha orelhas de burro sempre fora a cara exacta de sua mãe).

Depois desse sucesso, exigiu o Príncipe que todos tomassem lugar na sua carruagem e partissem imediatamente para o Palácio, o que fizeram, tendo chegado já ao amanhecer.

O príncipe contou então toda a história ao seu pai que incrédulo olhava o outro príncipe não conseguindo explicar como era possível estar a rever-se daquela maneira naquele rapaz. A Rainha finalmente abraçou o seu filho perdido, o Rei pediu desculpas ao jardineiro e para compensá-lo tornou-o Cavaleiro e deu-lhe um Castelo. Ao mestre Chapeleiro, outro Castelo, e a cada um dos filhos, um reino para governar.

Vitória Vitória, acabou-se a história.

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