22.4.09

DA FÉ




Leio este primeiro parágrafo de um dos últimos posts de Funes El Memorioso: "


"A fé, como a esperança, é uma fraqueza. É o desejo impotente. É o acreditar numa possibilidade qualquer que não se domina nem controla, apenas porque se anseia egoisticamente, para conforto e consoloção pessoal, que assim seja."


Muitas vezes senti o mesmo que no fim da leitura deste parágrafo voltei a sentir: um desconforto que antecede o impulso de começar a rebater sem saber sequer o que vou dizer, o impulso de repor o que não sei sequer onde está errado. Não é bem não concordar, é mais do que isso, é uma espécie de angústia semelhante àquela que vem da impotência de estar perante uma situação de injustiça que se vê em curso e que não conseguimos alterar, adivinhando-lhe o fim trágico.


É nestas alturas que sei que nunca serei um bom advogado, porque me precipito nas emoções da razão: os argumentos ficam presos, presos num misto de preguiça e tédio. Preguiça de procurar as palavras que possam corresponder ao que sinto, tédio de ver que mais uma vez o resultado dessa verbalização é sempre frustrante.


Como se gaguejasse e quisesse mesmo vencer a dificuldade das sílabas que se encavalitam e tropeçam na língua enrolada, obrigo-me a escrever isto que agora escrevo.


Lembro-me da fé de que tenho saudades de ter tido e que não consigo sequer reconstituir num sentimento minimamente aproximado do que era então. Em miúdo rezava sempre antes de dormir, se não o fazia por algum motivo, quando estava quase a adormecer, nos últimos instantes da consciência, voltava a acordar, como se me levantasse de um chão movediço, em que o meu peso aumentasse descomunalmente e transformasse o esforço de me erguer numa verdadeira violência. Levantava-me, rezava e voltava a adormecer duplamente reconfortado, pelo sono e porque tinha conseguido mesmo levantar-me, sair da cama e rezar de joelhos como sempre.


O desconforto de não ter ainda escrito nada sobre aquele parágrafo e o desconforto que sentia quando me roubava ao adormecer para me levantar e rezar, vêm do mesmo lugar. Como num dia em que estava sentado na Bénard com um Colega do escritório e apareceram uns tipos que começaram a bater no engraxador, ele estava no chão e um deles começou a pontapeá-lo, quando dei por mim tinha agarrado o que lhe dava pontapés e encostado a uma parede e dizia-lhe "não vais matar ninguém à minha frente.".


O meu amigo ficou na esplanada, sentado, como toda a esplanada continuou a assistir. Como eram vários fiquei à espera da reacção e preparei-me para o pior. O engraxador levantou-se e não sei se se foi embora, mas a situação desfez-se quando ele se levantou, o grupo de rapazes foi-se embora a praguejar, eu sentei-me na mesa e estava a tremer, agora apetecia-me gritar com o meu amigo, com os empregados da esplanada, com todos os filhos da mãe que se ficaram, mas já chegava. A fé e a esperança são uma fraqueza?


Leio aquele parágrafo e parece-me uma blasfémia. Nunca senti uma blasfémia, mas deve ser a isto que sabe. Só que não é em relação a Deus ou a qualquer código fundamentalista, é blasfémia em relação aos outros aos que têm fé, aos que têm esperança.


Infelizmente não tenho nem uma coisa nem outra. Mas lembro-me de ter tido e sei que fiquei com menos por as ter perdido. Em miúdo, quando fazia aquilo de me levantar por não ter rezado, acreditava furiosamente em Jesus Cristo. Não sei se poderia chamar fé à certeza que tinha da sua existência, nem estou preocupado se essa mesma certeza não compensava a descrença na realidade dos dias que vivia. Lembro-me que essa certeza não só fazia parte dos meus dias como nessa altura não conseguia imaginar que alguém pudesse viver os seus sem a ter.


Às vezes, à noite, acordava a pensar no porquê do pai de Jesus nos ter criado e deixado aqui a viver aqueles dias difíceis, da razão de ser, do para quê esperar até ir para junto Dele. Era uma crença perigosa, a que sobrevivi com a ajuda de quem me respondia sem me dar respostas, mas alimentando o nível de dificuldade, abstracção e espiritualidade de que com nove anos era capaz.


Lembro-me também da primeira comunhão e do terror da confissão e do terror de não ter pecados para confessar e de não poder ser normal se não tivesse pecados para confessar, mas tinha, o que não queria era admitir, então ainda era mais pecador que os outros. Uma vez jogara os brinquedos todos com o meu irmão (aos dados) e tinha ganho, ao mesmo irmão que quando eu perdia no Monopólio me dava dinheiro para continuar o jogo, um jogo que talvez depois eu ganhasse sem lhe retribuir o gesto anterior. Não tinha pecados, tinha imensos pecados, se começasse a pensar teria tantos.


Lembro-me também da comunhão na missa em Cascais, em que a parte boa, enormemente boa eram as raparigas lindas, mais lindas que nunca - e onde é que elas andam nos outros dias, porque é que não andam no meu liceu, ou porque é que no liceu não parecem tão bonitas e enigmáticas e com um olhar que depois desaparece. Durante a comunhão havia uns cânticos em que as vozes delas superavam os seus olhares, vozes perfeitas, meigas e tristes, com halo do mesmo perfume de primavera e luz que no final de tarde pelas frestas da porta, pelas interrupções dos vitrais.


Uma vez deixei cair a hóstia, quando a ia apanhar o padre impediu-me com um gesto magnânimo, palma da mão aberta à minha frente. Baixou-se ele, devagar, com mais vagar ainda ergueu a hóstia como se fosse aquela que à pouco tinha tomado (tomam-se, como os compridos, não se comem) e depois de ter falado com o seu Deus e com a hóstia e com todas as ligações, que deveriam ser muitas e que eu não merecia sequer supor. Depois de a tomar o padre deu-me outra hóstia e eu lá fui envergonhado, ajoelhar-me no meu lugar, excluído daquelas pessoas ainda mais do que estava quando aqui entrara a olhar para as filhas delas. Tenho quase a certeza de que foi a última vez que comunguei.


Depois lembro-me de Santiago de Compostela e do encanto de voltar lá para cumprir a promessa que o meu pai fez quando nasci (que todos os anos santos haveria de ir lá). Lembro-me de todos os rituais na catedral, do "bota fumeiro", e outra vez o cântico e desta vez as lágrimas, da pedra onde se bate com a cabeça e se pedem os desejos, desejos seleccionados com muito cuidado porque feitos ali, sob um portal onde estão os sete pecados capitais, desejos pelos outros que é o mesmo que por nós, só que um nós mais elaborado.


Depois veio a juventude inquieta e ilusão da existência total, do Eu que tudo pode, do Eu único. A fé no meu Jesus tinha desaparecido. Não por uma razão, mas por ter desaparecido a razão que a sustentou enquanto a tive. O que em miúdo eu não entendia que pudesse acontecer - alguém viver ser ter a certeza de Jesus na sua vida - acontecia-me agora a mim e no entanto "no pasa nada". Continuei vivo, continuei a pensar e até a sentir que pensava melhor, que era mais fácil seguir os meus princípios e desenvolver então a minha lógica. Lembro-me do livro de Direito Internacional Privado do Prof. Baptista Machado, como uma espécie de monumento de lógica jurídica, lembro-me do clímax de alguns raciocínios do Prof. Orlando Carvalho, num delírio da lógica jurídica, lembro-me do duche frio, que defendia como necessário para nos iniciarmos no lingarejar do jurídico que era a sebenta do Prof. Castanheira Neves. Eram os tempos do "o que é que se discute que eu estou contra", das conversas noite dentro na Clepsidra, no Tropical e nalgumas tardes na varanda do Justiça e Paz e de muitas madrugadas no sótão dos Urbanos. Depois vieram os filhos e com cada um deles regressei a Santiago, para apresentar cada um deles ao meu Santo e pedir para eles protecção.


Por mais que não conseguisse acreditar não conseguia não acreditar ao ponto de desacreditar. Pensava - e continuo a pensar - que a experiência de ter acreditado em Jesus mais do que me ter sido "útil" para suportar as provações de que todas as infâncias são feitas, foi-me útil para abrir caminho à capacidade de sonhar, de fazer entrar o fantástico na minha vida e, sobretudo, de me preparar para saber não responder às perguntas que fui fazendo nas noites em que acordava, sem deixar dar razão de ser das perguntas, só porque não lhes conseguia responder.


Hoje vejo a fé não como aquilo que começa quando a lógica acaba, mas como aquilo sem a qual a lógica se torna tão fundamentalista como os fundamentalismos de todas as fés. A fé, assim como a esperança, são para mim (ainda) a expressão de que a nossa ignorância é mais sábia do que o nosso conhecimento lógico das coisas.


3 comentários:

António Conceição disse...

Obrigado pelo texto. É belíssimo! E que tenho sido eu o seu pretexto justifica-me.
Quem me dera tê-lo compreendido!

Tiago Taron disse...

D. Funes, não vou cair na mentira vaidosa que diz: se é belíssimo não preicsa de ser compreendido. Por saber que não ia conseguir dizer é que me custa tanto, por antecipação, essa frustração de nunca conseguir dizer nada, julgo que o problema é anterior ao dizer, está no pensar. O mais próximo que consigo chegar ao que gostava de saber dizer é que vejo a fé como a parte nobre da dúvida, a demonstração de que já soubemos mais do que sabemos. Mas isso leva-nos aos gnomos verdes e aí perco-me e já não consigo dizer mais nada. Muito obrigado pelo meio cumprimento.

Marta disse...

Não tenho como não lhe dizer
que me comoveu. Muito.
E tenho fé.
Mais do que esperança.
Mas, às vezes, perco-me.
Em reflexões, como a sua, encontro-me. Mas há tantas coisas que não compreendo...

Gostei muito de o ler. Mesmo.
Obrigada.