16.4.09

Patrióticos








Estou em Carnide. Carrnide é um mistério, ou aquela parte de Carnide onde se perfilam os sucessivos restaurante que fazem do naco da pedra uma razão para vir cá, continua a ser um mistério para mim. Subitamente, depois de se fazer uma das mais feias avenidas de Lisboa, que tem um nome à altura da sua fealdade, Estrada da Luz (nome que não é nem de rua, nem de avenida, mas de um daqueles caminhos pseudo espirituais de qualquer uma das igrejas das dizimas) aparece a aldeia, um lugar de aldeia, um cheiro de rua de aldeia, uma presença das hortas que já não existem mas ainda estão na atmosfera, nos desenhos das janelas, na forma como as casas se encostam, quase agachadas, umas às outras. O mistério de Carnide é para mim a sua atmosfera, uma atmosfera que tem o seu momento de síntese na montra da alfaiataria. Como só venho aqui jantar nunca vi a alfaiataria com vivalma, mas trata-se de um dos lugares mais carismáticos que conheço em Lisboa. Toda a alfaiataria é uma instalação de obsessivo amor às coisas desse ofício. Fazendas, enormes tesouras de ferro, fotografias de modelos dos anos cinquenta, máquinas de costura, madeiras por toda a parte, cabides dignos com os fatos em construção cheios de pespontos brancos e a luz - a luz que esses lugares sempre têm e que os melhores filmes apanham - uma luz entre o sépia e o quente das janelas das casas felizes, vistas de fora, quando chove e se vê que está quente lá dentro. Vale a pena ir a Carnide, numa noite qualquer só para ver aquele quadro vivo de um outro tempo mais vivo, ou com um halo de mais verdade, que o verde das luzes que vem do interior dos restaurantes.



Mas ontem estava então em Carnide para ver a bola, jogava o Porto, no Dragão contra o Manchester. O Porto do Porto e o Manchester do Ronaldo e do Ferguson. Como todos os que acompanharam as declarações do treinador Inglês antes do jogo sobre o Ronaldo, estava curioso para ver a reacção em campo de um tipo que gosto de ver jogar desde o Marítimo. Ferguson dera a evidente chicotada. O rapaz não era o dono da equipa, o rapaz tinha de jogar com a equipa e o rapaz que tivesse juízo. Se o rapaz depois disso jogasse bem o Mister tinha feito bem, tinha sido mais uma demonstração da sua capacidade paternal de"gerir o balneário" (palavra do carago esta de gerir o balneário), se jogasse mal, é porque Mr. Ferguson sabe mesmo disto, sabe mesmo que o reino do Ronaldo estava ameaçado, não só pelo miúdo de 17 anos para quem parecem ter sido transferidos todos os afectos do pai, mas pelo estigma "sucesso, dinheiro, gajas e carros" (não seria difícil imaginar as comparações ao Dani, que foi, enquanto foi, um enorme jogador).



Mas estava eu em Carnide com esta motivação extra para ver o jogo, ia ver o jogo e ainda ia ver qual o espectáculo que Ronaldo daria - ou não - depois do fogo cerrado que lhe moveu o seu treinador. Começo a ver que está só, que está só num lugar que não é o seu e que é o dos grandes príncipes solitários de todas as equipas, o de ponta de lança. Ali ele não constrói jogadas, nem recebe a conclusão das jogadas que construiu, ali recebe o que os outros lhe quiserem e souberem dar. O que passa desde os primeiros minutos é que aquele tipo está isolado. Primeira consequência do que se disse antes do jogo. Fico também na expectativa de ver qual a reacção dos adeptos do Porto às intervenções de Ronaldo. Indiferença, talvez um fugaz silêncio a cada vez que toca na bola. De repente o gajo faz aquilo, está sozinho, recebe a bola do não Português mais aplaudido pelos Portistas, Andersen, arma um pontapé que é uma resposta, da única maneira que ele sabe dar (porque o seu forte não são as palavras) a todas as interrogações de todos quantos acompanhavam os dois jogos, o dele e o do Porto Manchester. Truchen, zás, trás, e mai nada, tá feito. Aos seis minutos, como também se diz lá nessa língua do futebol, Cristiano Ronaldo abriu o livro e fechou o livro, depois disso eles ficaram para ali a jogar o que sabiam, desinspirados uns e outros, como se a inspiração disponível na noite tivesse sido roubada toda ela para aquele instante. É então que acontece uma daquelas coisas que sendo previsíveis não deixam ainda assim de ser insuportáveis. Quem até ali se calava a cada vez que o rapaz tocava na bola, quem emudeceu durante meio minuto com aquela "carta aberta a todos os detractores", passou a vaiar. O Porto assobiava Ronaldo de cada vez que ele tocava na bola. Sem saber bem porquê lembro-me da justificação de Sócrates para o apoio a Durão Barroso, "apoio patriótico". Sem saber porquê aqueles assobios parecem-me vir do mesmo tipo de patriotismo. É o assobio patriótico de Sócrates, o mesmo que aplaude patrioticamente Barroso, assobia Ronaldo porque marcou um super golo ao Porto.

2 comentários:

Eugénio Fidalgo disse...

De facto muito bom mais um grande momento de inspiração, parabéns Mestre Tiago

Tiago Taron disse...

D. Eugénio, muito obrigado, a inspração vem aí das suas bandas. Às vezes sobra qualquer coisa para o dia seguinte.