2.6.09

LUANDA (1)

Cidade Alta / Luanda


(Ano de 1895)
Só pode ter sido numa manhã. Numa manhã tão clara que pelas janelas da igreja de Nossa Senhora da Conceição a luz formava feixes e feixes, cruzando-se e ganhando corpo na poeira suspensa vinda dos passos de há pouco dos que agora estão à volta da pia baptismal. Vejo a scena de fora, como se um feixe de luz a tivesse registado e chego a pensar que agora percebo o efeito que têm em mim os feixes de luz que trespassam o ar beato das igrejas, agora entendo a alegria com que interrompem o tédio pesaroso de todas as naves, de todos os claustros.


Um homem, que é o pai, segurará uma criança que é robusta e que tem escrita a condição de sobrevivente num rosto cheio, de olhos ainda fechados, perfeitos no olhar que já lá está, ainda por revelar. Chorará como todos os bebés na parte da água, e ouço o seu choro como um eco, como se fosse parecido com o choro que não consigo imaginar à nascença porque pode ter sido em simultâneo com o suspiro da morte de sua mãe.


Aquele homem que segura a criança deve ter estado há uns dias no cemitério do Alto das Cruzes, a sepultar a sua jovem mulher. A criança está de branco e irradia essa alvura que se mistura com os feixes de luz e com a limpidez do seu choro ecoando pela igreja vazia e sem mãe.


“Nossa Senhora da Conceição, padroeira do meu país, protegei por favor este meu filho”, diz o homem para si, um homem fechado que se comove por instantes com o choro do filho e o afasta da água que cai num rosto de bebé que se crispa, primeira expressão do carácter que se revelará, depois do olhar que já lá está, no franzir do nariz e boca antes do choro, depois do choro. Um franzir que num primeiro instante é de resistência, de contenção, de reunião de forças. Franzir que quando termina o choro é de aviso, de regresso a si e outra vez de reunião de forças.

Ouço também o seu nome, dito na planura casta dos sacerdotes entre as expressões semi cantadas do ritual do baptismo, em latim: “António dos Santos Domingos” eu te babptizo em nome do pai, do filho e do espírito santo. Amen. Vejo a igreja, na parte alta da cidade de uma Luanda onde nunca estive. Cidade Alta, ponto mais exposto ao sol, mais exposto ao bafo de África que eu um dia julguei sentir ao aterrar na Ilha do Sal, mas não era esse, de comum só tinha a temperatura, faltava-lhe o cheiro da terra misturado com o odor da explosão de vida que rodeia a terra e que é adocicado, seco e tem um halo de especiarias.

O homem está só. Sempre esteve só. Todos o conhecem como só. Quando chegou da última viagem à metrópole e trouxe para casa aquela figurinha impressionante, aquela espécie de anjo, pardal, menina, senhora. Fê-lo tão discretamente, tão em silêncio e sem quaisquer explicações ou apresentações que a sua aparição, assim acompanhado, não fizera ninguém pensar que a sua solidão terminara, antes somando à sua solidão uma solidão ainda maior e mais perturbante, a solidão daquela criatura de que muitos só souberam o nome após a sua morte, no parto, na sucessão de vida àquele que agora é baptizado.

“Helena cuida te teu filho onde quer que estejas, Helena meu amor, cuida do nosso amor.” O Homem comprime os lábios e o esgar é parecido ao franzir de há pouco do bebé. O homem não chora, o bigode fino não esconde a tremura dos lábios, torna-a aliás mais evidente, mas depressa cessa ainda que ninguém a tenha visto, porque ninguém consegue olhá-lo. Mesmo o Padre só o olha – e nos olhos – em cada momento da cerimónia que é especialmente dirigido ao filho, como se nessas alturas tivesse de transmitir ao pai o que aquela criança vai ter de receber deste.

O Padre olha-o nos olhos e diz: “A carne é lavada, para que a alma seja liberta de toda mancha; a carne é ungida, para que a alma seja consagrada; a carne é assinalada, para que a alma seja revigorada; a carne acolhe a imposição das mãos, para que também a alma seja iluminada pelo Espírito; a carne sacia-se do corpo e do sangue de Cristo, para que a alma seja nutrida abundantemente de Deus.”

É este Padre que aquele homem tanto respeita e que ele sabe ser quem ele quer que eduque o filho assim possa ele aprender as primeiras letras. É nisso que o homem pensa e isso que diz com o olhar com que fixa o padre enquanto ele lhe diz aquelas palavras antigas e cheias do poder que aquele homem crê conhecer.

O olhar dos dois, terminadas aquelas palavras, produz um silêncio ainda maior, um sustar de respiração por instantes em tudo, uma imobilização das partículas que serpenteavam nos feixes de luz, uma aparência de reforço de atenção ao que se passa na expressão do bebé que acabou de ser baptizado.

11 comentários:

Rosa disse...

Vai continuar?

Tiago Taron disse...

Claro que sim, não estou certo é que seja aqui, ou pelo menos sempre aqui. Ontem alguém chamou-me a atenção para o óbvio. Demasiada exposição e tem razão: não pelos outros mas pelo que perdemos de intensidade/designio a cada vez que nos expomos. Obrigado Rosa.

Rosa disse...

A exposição tem vantagens e desvantagens, no entanto, não acho evidente que a exposição tenha como consequência a perda de intensidade que refere. Mas se calhar sou eu que estou a ver mal a coisa.

Tiago Taron disse...

É defeito meu isso de sentir que a cada vez que mostro qualquer coisa interrompo a sua vida.

Patti disse...

Se este texto é o princípio de um projecto maior, guarde-o para si até ao fim (mesmo que com pena nossa); para o feixe de luz final.

Mas pode publicar por aqui, os textos paralelos que surgem e que nem sempre são aproveitados; como os minúsculos grãos de pó suspensos...

Tiago Taron disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tiago Taron disse...

Patti, (in)felizmente é o que estou a fazer, por decoro que como li hoje escrito por Agustina Bessa Luís "é introduzido na sociedade para velar os defeitos de cada pessoa"; "o decoro é uma forma de preservar o segredo".

Patti disse...

Então já somos dois; também eu ando a tentar um 'decoro' desses.

É tão difícil!

Tiago Taron disse...

como dizia a Natasha Kinsky no Paris Texas: "Yeap I know that feeling".

Marta disse...

Gostei tudo tanto íssimo!

E sim, sim guarde para si, para os seus.
Depois, mostra-nos por inteiro
e com capas!

Antecipo é o pedido de autógrafo, só para não ter de ficar na fila :)

[claro que ficarei! e com gosto]

Parabéns.Muitos.

Tiago Taron disse...

Obrigado Marta. Adio a resolução, mas assim fica mais fácil. As capas podem ser em papel de aguarela e as folhas fotocopiadas? se sim, assim que estiver pronto é seu.