9.6.09

Loanda (2)






Hoje recebi uma carta. Há muito tempo que não recebia uma carta. Uma carta que quisesse abrir enquanto subo as escadas e que me fizesse sorrir a olhar para ela e não para quem a entrega.

Há três anos estava a jantar no XL e senti-me olhado por uma figura mínima, desenhada num rótulo emoldurado. O olhar vinha de uma moldura entre muitas e muitos outros objectos que se amontavam pelas paredes do restaurante de então. [Eu gostava muito do XL como era, sobretudo de Inverno. Tinha uma atmosfera de sala de duendes. A luz coada do amarelo pardo dos velhos abat-jours, os objectos reunidos por um coleccionador sem método (ou em que o critério poderia ter sido o de povoar um lugar com uma série de figuras, brinquedos, retratos, capazes de se animarem quando a sala regressasse à penumbra e silêncio da sua verdadeira natureza de lugar encantado) faziam do restaurante um dos meus sítios preferidos para as noites de chuva de Dezembro, antes do Natal.]

A figura estava longe e tive de fixar o olhar para perceber o que era aquilo. Quando se fixa o olhar assim paramos também o gesto que esteja em curso e apesar de saber que não é verdade, que não pode acontecer, poderia jurar que esse olhar produz uma alteração no ar, que só não a detectamos porque não vemos tudo, tal a energia que nele se concentra, inversamente proporcional à diminuição de intensidade de todos os outros sentidos.

Reconheço então a figura. O Rótulo de vinho tem desenhada uma pequena cabeça de criança que é o meu avô. Existia um rótulo desses numa das paredes da casa do Porto. Apesar da pouca luz - e da distância - a circunstância de ser o mesmo rótulo que via com cinco anos (sem nunca ter olhado especialmente para ele) numa das paredes da casa da Rua do Paraíso, interrompeu a minha atenção, fez-me desligar do que estava a conversar ou a pensar e - antes mesmo de ter consciência de que aquilo estava ali - obrigou-me a ganhar essa consciência.

Levantei-me e fui confirmar o que já sabia. Era o mesmo rótulo. Na casa do Porto, como escrevi atrás, a presença do meu avô era como a daquele rótulo, apesar de ter falecido em 1942 (sei-o agora, nesta febre das pesquisas) e de pouco nos falarem dele, era alguém que eu julgava ter conhecido e que só compreendi que não quando percebi a lógica da morte e a sua dicotomia: estar vivo e não estar vivo (hoje essa lógica já sofreu mais alterações e sem que também saiba explicar porquê, sinto que estou mais perto de acreditar outra vez que de facto o conheci e que a diferença entre o estar vivo e não estar vivo não é bem assim como o papão da morte me fez inicialmente pensar).

Perguntei então ao dono do restaurante como é que aquele rótulo tinha ido lá parar. O rótulo que eu conhecia era único, teria sido mandado fazer pelo meu bisavô (de quem praticamente nada sei), como forma de celebrar o seu filho, nascido em Luanda (Loanda, como está escrito debaixo do nome do meu avô - Mário - nesse rótulo). Porque razão fez aquele rótulo, para que vinho, para ser servido onde, será que era hábito? Mas se em Luanda não havia vinho? Seria para ser engarrafado e levado para lá?. Enfim, tudo o que diga respeito a quem eu conheci sem conhecer intrigava-me então, como me intriga agora. O Vasco fez-me o favor de explicar que tinha sido através de um antiquário. Deu-me o nome, deu-me o telefone e eu regressei à mesa, atordoado, num limbo entre a casa do Porto, a expressão do avô que é o mesmo quase rir que tem o meu filho Santiago.

Passados três anos desse jantar, lembrei-me de telefonar outra vez ao antiquário com quem na altura falei e que ficou de tentar localizar se ainda existiriam mais alguns desses rótulos. Hoje, quando recebia o correio vejo a carta que já não recebia há muito tempo, com remetente manuscrito e o nome de quem se deu ao trabalho de procurar os rótulos, de encontrá-los, de os meter numa carta e, assim, com esta discrição, oferecê-los, sem mais ruído, sem galhofice, com um cartão de visita assinado por um Senhor.

1 comentário:

Marta disse...

Gostei de "cuscar" essa carta que recebeu!
Bom, muito bom!
Quando nós dão
,assim, sem mais!

E fico contente por essas pesquisas irem de vento em popa!

Teremos estória :)