17.2.10

LISBOA, GUIMARÃES, SOLMAR E O LIVRO DO DESASSOSSEGO



Quando fiz dezoito anos a minha mãe deu-me os dois volumes do Livro do Desassossego e escreveu: "Para o Tiago pelos seus dezoito anos que prometem ser muito desassossegados".

Ela não sabia que me estava a tirar todas as pretensões de um dia conseguir escrever qualquer coisa de que gostasse. Foi por bem. Foi por saber o que eu me esforçava para escrever nas noites em que esperava pelo silêncio da casa para me instalar na cadeira favorita, no lado da mesa da sala mais recolhido, com candeeiro à esquerda, o que tinha uma luz amarela antiga e fazia brilhar o fim dos traços da caneta de tinta permanente, nos últimos instantes de vida de cada palavra. Na altura conseguia escrever enquanto ouvia o programa de uma senhora chamada Maria José Mauperrin ("Café Concerto", chamava-se).

Escrevia o mesmo todos os dias e preparava-me nessa repetição para a náusea da escrita, precedida por uma sonolência que me fazia adormecer literalmente sobre o que escrevia. Depois lia o Livro do Desassossego e era tão evidente que eu não poderia nunca escrever assim porque tudo o que pensava vinha em bolas confusas de ideias e as ideias daquele senhor eram como fios de ouro que se ligavam sem o embaraço do meu novelo a cada uma das palavras. Li e reli várias vezes o Livro do Desassossego de quem passei a esperar, secretamente, que me fizesse a mim o que o Padre António Vieira tinha feito a Bernardo Soares (ensinar a escrever).

O que havia começado como uma certeza (a de que haveria de ser escritor), depressa foi denunciada como mais uma das falácias de um espírito que até muito tarde acreditou que para sofrer o que achava que tinha sofrido era porque estaria destinado a grandes coisas. Uma das grandes coisas era continuar o que o bisavô e o avô tinham feito. Eles eram escritores e eu assim seria também. Antes disso tinha passado muitas manhãs na livraria dos avós (a Guimarães Editores) e passava pela tipografia onde se imprimiam os livros. Via as máquinas em que se escreviam as letras em fileiras de chumbo, ajudava a empilhar os livros para serem transportados para a livraria que ficava na Rua da Misericórdia. Na livraria estava sempre escuro e as palavras saiam abafadas, muito baixinhas, porque era assim que falava a D. Natália, enquanto o Sr. Armindo praticamente não falava, excepto se os olhos, tristes e sempre à espera de uma oportunidade para sorrirem, contarem.

Junto à montra onde estavam sempre poucos livros, no formato pequeno da colecção poesia e verdade ou da colecção de filosofia, com as capas clássicas brancas e verdes (antes da revolução gráfica que se deu depois do 25 de Abril), estava também o ex libris do bisavô Delifim Guimarães, um cavaleiro com armadura e transportando uma bandeira com os dizeres "Pela Verdade". As estantes eram escuras, como o próprio ar, no fundo da livraria – no lado oposto à parte mais iluminada que era a estante que ficava à direita, junto à porta e onde estavam uns poucos álbuns de banda desenhada (Irmãos Dalton, Spirou e Lucky Luccky) - ficava uma casa de banho a que se chegava depois de um curto e estreito saguão, que tinha o cheiro que depois compreendi que se repetia em todos os saguões de lisboa, um misto de humidade entranhada com os vapores fétidos que vinha das manilhas, ou lá como se chamavam os tubos que saíam daquelas paredes bafientas. A casa de banho era ainda mais escura, o que se agradecia, porque depois daquele saguão era melhor que assim fosse para não perturbar nem a cadência da progressiva penumbra, nem a ilusão de que tudo estaria muito limpo (e estaria certamente, apesar do cheiro acre permitir a dúvida).

Ontem passei pela Guimarães e já não se chama Guimarães a loja, chama-se "Babel" qualquer coisa. A Guimarães tinha mais de cem anos, continuará a ser uma Editora, mas o seu lugar de há décadas na Rua da Misericórdia, está agora transformado numa luminosa galeria, que poderia existir em qualquer centro comercial dos modernaços, daqueles Foruns qualquer coisa, que tentam reconciliar as pessoas com a inevitável fobia a esses lugares, replicando o antigo, replicando jardins de plástico e mesmo alguns lagos e quedas de água, sob uma cúpula de vidro por onde se vê o céu, tudo isto acompanhado por sons de pássaros e ecos de um bosque.

Ontem, jantei na Grande Cervejaria Solmar, que continua a chamar-se assim e há cinco anos comemorou os seus cinquenta anos. A Solmar é um dos lugares dessa Lisboa que resiste. Ontem estava lá o João Botelho a filmar umas scenas do seu próximo filme a partir do Livro do Desassossego. Depois do choque de ver a Guimarães chamar-se Babel, depois do choque de ver o Jardim do Príncipe Real travestir-se em jardim transparente e luminoso, depois destes dias em que a minha idade começa a concordar com a precariedade de tudo, senti que há lugares menos precários, mais do tempo de sempre, que por muito mais que não exista, não consigo deixar de acreditar que sim, ou de querer acreditar que sim.

Viva Lisboa, Viva Bernardo Soares, Viva a Grande Cervejaria Solmar, Vivam os lugares do tempo do sempre e da terra do nunca.

9 comentários:

Patti disse...

E Viva textos destes, Tiago.

Tiago Taron disse...

sabe que não acho que devam viver, basta ler o post em questão, e não é dúvida, é certeza confirmada que me vai dando finalmente o prazer de escrever sem a angústia de o fazer para ser lido. obrigado patti, já tinha saudades.

ana disse...

pois é tiago, escrevendo sem olhar para trás, ao sabor do pensamento, deixando correr. mergulhei no texto duma ponta à outra, «sem romper a água».
parabéns.

Tiago Taron disse...

Paula, com estes dois cumprimentos, o seu e o da Patti, sinto-me envergonhado, porque parece que o que escrevi foi para os pedir, se gostou mesmo começo a pensar que talvez haja esperança para o "Loanda", o que vale mais dez páginas. Grazie Mile

analima disse...

Lisboa merece textos destes. Que continue o seu desassossego!

Carlos Pires disse...

Há um ditado popular na China (!) que diz: para escrever um livro é preciso ler mil. Há livros que valem por muito, mas lê-los não leva - paradoxalmente - a descontar alguns a esses mil, mas pelo contrário impõe a necessidade de aumentar a lista.

Tiago Taron disse...

Caro Carlos Pires, os ditados da china talvez sejam os únicos que não precisem de ponto de exclamação, para mim são sempre sábios e ouço-os como se fossem proferidos pelos anciãos respeitados, que os receberam de outros, antigos e igualmente respeitados e assim sucessivamente, iludindo as aparências juvenis do tempo. Ao ouvir o seu ditado lembrei-me da frustração que senti ao ler a "Breve Introdução à Literatura Inglesa" de Jorge Luís Borges, em que a certa altura ele listava o que considerava ser uma biblioteca de campanha, assim o básico da coisa, aquilo que deveria existir na bagagem de campista de cada um. Percebi que nunca os iria conseguir ler todos. Depois soube do único livro do Tomaso de Lampedusa, que deu um enorme filme: O Leopardo, depois senti que não conseguia escapar à sucessiva escalada de continuar a tentar escrever. Não vou escrever certamente um livro, nem aqueles que li somados aos que lerei depois de acabar o 2066, o vão proporcionar, mas vou continuar a escalar. Obrigado pelo seu comentário e parabés pelo seu blog, é do maravilhoso (desculpe a palavra mas é a que se me impõe) ver um professor de filosofia nesse diálogo com os seus alunos. Muitos parabéns. É isso para mim um Mestre e os mestres são essenciais, antes dos mil livros e por causa deles.

Margarida Azevedo disse...

TT, excelent!

Margarida Azevedo disse...

Caro colega Carlos, importa-se de transcrever o ditado no seu original? Ao tempo que ando à procura mas nenhum dos estudiosos da língua chinesa (é que nem sei qual o dialecto que dá origem a tão maravilhoso dizer) e por isso, perdoe-me a generalização ... voltando ao assunto, não sabem. Eu não sei. O colega sabe?

Também gostaria de entender a razão porque usou o termo paradoxalmente ... mas lá está ... pedir uma coisa já é muito. duas pode ser considerado uma provocação.

Cordialmente,
Margarida Azevedo