23.3.10

CASCAIS, 1979


[fotografia retirada daqui]


"No meu tempo", costuma-se dizer e bem.


Há idades em que o tempo é mais nosso, na infância e especialmente na adolescência enquanto não atingimos que é finito. Depois de percebermos isso voltamos a aldrabar, mas já não é a mesma coisa, fica a sombra desse reconhecimento recusado, a aura da silhueta da primeira aparição do "papão", à porta da casa até aí feliz e luminosa. Não o deixámos entrar e fechámos a porta. A partir daí ele existe - o tempo crescente e decrescente - e passa mesmo a existir mais de que se tivéssemos deixado entrar o papão e deixássemos o pesadelo correr até ao fim.

No meu tempo eu era o único que ia de bicicleta para o Liceu. O Liceu ficava ao lado da Praça de Touros e a nossa casa a três quarteirões dali. No final das aulas era também o único que ia para o Guincho e celebrava aquilo todos os dias, especialmente nos dias em que o vento não era tão forte e eu não tinha de me aninhar junto ao volante, para fazer menos volume e ir cortando o espaço contra o vento, lenta e persistentemente, pedalada a pedalada, como se estivesse a cavar.

A bicicleta era uma Philips inglesa, sem mudanças, de senhora. Sempre gostei mais do quadro das bicicletas de senhora, que não tinham uma barra de ferro entre o selim e a parte de cima do garfo. A barra, naquela bicicleta, acompanhava com uma ligeira curva a barra inferior do quadro, o que tornava muito mais simples o montar e desmontar. O selim era antigo de couro, com molas atrás, cromadas reluzentes. O melhor detalhe daquela bicicleta - para além da super campainha cromada e que produzia um som que imitava, em campainha de bicicleta, o som dos copos de cristal - eram os travões, ou seja, as hastes dos travões: eram finas, também ligeiramente arqueadas e anulavam o preto dos punhos gastos.

A bicicleta era de um cor de vinho velho, cor carcomida, por nunca ter sido pintada e em várias partes era muito mais escura que a cor original, começando a dominar a mancha negra em várias partes do quadro. Na parte de trás tinha uma grade com uma mola, uma mola onde dava para pôr os livros, e o fato de banho e uma toalha muito dobrada à volta disso tudo.

Foi comprada a uns ingleses, através de um anúncio num jornal que nesse tempo existia (Anglo Portuguese News – APN) para a comunidade inglesa e que os Portugueses compravam especialmente para encontrarem pechinchas a cada venda de garagem que aí se anunciava. Foi comprada numa dessas vendas e foi um daqueles objectos que imediatamente me conquistou, como se tivesse vida própria, daqueles que a cada vez que os revia agradecia o facto de estarem comigo (tive quatro objectos desses: uma cana da Índia, que um imbecil gordo partiu numas férias em São Martinho do Porto, uma caneta de tinta permanente que perdi quando acabou o primeiro namoro a sério, aquela bicicleta, que me roubaram e um descapotável, que vendi).


Cascais era um sítio estranho, habitado pelas pessoas mais erradas para o que aquela Vila merecia ter - e que quase tinha durante as festas do mar, ou em alguns passeios no paredão quando encontrava os mesmos de sempre que por ali passeavam como se fossem exilados.


Um dia, com catorze anos, descia uma rua que vai dar ao Jardim onde ficava o antigo Cinema São José (Visconde da Luz). Poucos dias antes tinham tornado essa rua de um só sentido. Eu não reparara e fui mandado parar por um polícia. – O menino não sabe que esta rua só tem um sentido?


Desmontei da bicicleta, pedi desculpas e lá disse que não sabia mesmo, procurando o sinal aflito.


- Pois agora vai levar a bicicleta pela mão até casa.


- Mas oh Senhor Guarda. O Senhor desculpe-me: está a pensar que depois de virar a esquina eu vou até ao Bairro do Rosário com a bicicleta pela mão? Está mesmo a falar a sério?


Aí ele pediu-me os documentos da bicicleta. A bicicleta nunca teve documentos, desde os meus doze anos que a tinha e não tinha quaisquer documentos, não tinha matrícula, daquelas amarelas que eu via nas motinhas, com as iniciais CSC. Então vamos levar a bicicleta para a esquadra e tu vens comigo.


Eu fui. A esquadra ficava perto. Mandou-me deixar a bicicleta encostada a uma série de Casais Boss e Fameis que lá estavam e sentar-me na entrada da esquadra. Esperas aí.


Foi-se embora e ali fiquei uma tarde inteira, à espera, a olhar para a bicicleta com medo do que lhe pudesse acontecer, a perguntar se não podia telefonar para casa, a perguntar de que é que eu estava à espera. Os Colegas do Polícia diziam que ele já vinha, que aguardasse que já se iria tratar do expediente.

A certa altura passou pela Rua um taxista que por acaso eu e a minha amiga de todos os dias (Tixa) tínhamos apanhado para casa dela. Como muitas vezes acontecia tínhamos ficado a falar com o Senhor do Taxi, que naquela noite fazia anos e que naquela noite falou, falou, e chorou e mostrou-nos a pistola que trazia e a fotografia da filha e, no final, não nos quis aceitar o dinheiro da corrida.

Quando o vi passar na Rua chamei-o. - Olhe, por favor. Lembra-se de mim. O Senhor fez anos ante ontem e levou-me à Rua Joaquim Ereira.


Que já se estava a lembrar. - Mas, mas que raio estás tu aí a fazer dentro?

Expliquei-lhe o que estava a fazer, que estava à espera há três horas do expediente, porque a minha bicileta não tinha documentos e eu descera aquela Rua que agora só tem um sentido.

– Sabe, aquela por cima do Jardim Visconde da Luz?

O motorista entrou, pediu para falar com o chefe. Foi atendido no gabinete do Chefe de onde saiu pouco depois e disse: Podes ir embora, mas a bicicleta fica cá, até teres os documentos.


- Mas como é que eu vou arranjar os documentos sem ter a bicicleta?


- Amanhã eu vou contigo à Câmara.

E foi, e tratou do livrete e da chapinha e aconselhou-me a comprar um cadeado, para ficar com tudo o que é preciso para estar descansado.

No dia seguinte lá fui à esquadra com o livrete e a chapa na mão. Deixaram-me levantar a bicileta que era, com o meu cão, a única coisa que eu sentia que era minha e que todos os dias dava graças a deus por ter.


Nesse dia fui ver um filme ao Oxford, era a "Big Wednesday", um filme impressionante com enormes ondas e tubos e tudo aquilo que qualquer surfista (que, com muita pena e inveja, nunca fui) tinha como mítico. Pela primeira vez usei um cadeado na bicicleta, prendi-a à grade de uma montra que ficava mesmo no fundo da Av. 25 de Abril, junto a uma banca de jornais que lá havia e pouco depois da loja do Prof. Gilberto (o melhor professor que tive em toda a minha vida).

A meio do filme tive um pressentimento: roubaram-me a bicicleta.


Saí do filme.


Tinham-me roubado a bicicleta.


Durante toda a noite procurei-a a pé pelo pontão, noite dentro, contra a vontade da minha mãe. Quando já era muito tarde e tive de realizar que não iria recuperá-la, voltei para casa e nessa noite, em vez de escrever, desenhei, desenhei tantas vezes a bicicleta, com os seus travões, com o seu quadro e cor entre a cor de vinho e o preto, até que se parecesse minimamente com ela. Tudo para que a pudessem encontrar, para que alguém com coração conseguisse que me fosse devolvida. Não a encontraram, bem devolveram e nunca mais fui para o Liceu de bicicleta, foi o fim de um ciclo, foi o fim do "meu tempo", a primeira perda!

2 comentários:

Marta disse...

Gostei muitíssimo de ler Tiago. Obrigada.

Anabela Bártolo disse...

Lindo texto,Parabéns!
Seria possível publicar na pagina facebook do Hotel Albatroz para falar das bicicletas em Cascais

Aguardo a sua resposta para :
anabela.bartolo@albatrozhotels.com

Melhores cumprimentos

Anabela Bártolo