14.4.10

LUGAR 1



O primeiro lugar de amor que me lembro, foi a varanda da Rua Luís Woodhause. Lembro-me do toque do parapeito que era de madeira velha, carcomida, com falhas e pedaços que se deixássemos as mãos deslizar se enfiavam na pele, farpas, depois ficavam translúcidas lá dentro, e tinham de se tirar com uma agulha e uma pinça. Quando era a minha avó a pinça e agulha eram esterilizadas, com uma lamparina de álcool e ela colocava os óculos para a ver melhor. O tempo dessa varanda era sempre claro, excepto quando vinha da escola e não estava ninguém em casa – o que era impossível porque eu tinha cinco anos – mas estava aquele vazio, apagado e cinzento dos fins de tarde no Porto, uma coisa insuportável para qualquer pessoa normal, quanto mais para um miúdo de cinco anos. Horas de um pão com manteiga na cozinha e um copo de leite, sentado na ponta do banco, chateado, por sei lá o quê, do tédio das tardes cinzentas e mudas da Rua Luís Woodhause no Porto.


Vejo-me na cozinha, sentado naquela ponta do banco de madeira, contrariado a mastigar e remastigar um pão que era seco e que não tinha a compota da avó, uma vermelha que estava sempre numa compoteira com desenhos de pássaros e tinha uma tampa de metal com um buraco parecido com a porta dos gatos da porta verde da casa de Gondarém, saía de lá o cabo da colher. Só era usada de manhã, quando o meu pai tomava o pequeno-almoço e lhe punham a mesa na sala de jantar que encadeava de claridade, com as cortinas cor de laranja a fazerem franzir os olhos à entrada e a provocarem um halo de luz à volta dele. Acho que já contei isto, um dia ele disse-me no meio daquela luz toda, que fizéssemos a brincadeira de trocar de lugares, troquei embaraçado, e ele entrou para me dar os bons dias e eu servi-me da compota, que não sei se não foi mesmo a parte da brincadeira que mais gostei, essa e a de ele me imitar a dar-lhe os bons dias.


A varanda dava para a rua que era daquelas ruas do "lá vai um" de vez em quando e os que iam de vez em quando iam rente ao muro, que era de ladrilhado com aqueles quadrados, pastilhas, que se usam nas piscinas, e era bom de acompanhar com o dedo esticado enquanto andávamos, produzindo um ritmo irregular, fazendo saltar o dedo que aquecia se fizéssemos aquilo muito depressa.


Acho que ela estava encostada àquele muro e eu estava por acaso na varanda, foi aí – na varanda – que a vi, sei que era loura e sei também que andava na mesma Escola que eu, tenho a certeza que andava na mesma escola que eu porque achava que ela era a menina mais bonita da escola e todos os dias lhe levava um brinquedo que nunca tinha coragem de lhe dar (um dos que mais custou não lhe ter dado era uma réplica de um avião, um Caravele da Tap). Vivia sete casas acima da nossa e uma vez eu entrara na casa dela com a Conceição que fora lá buscar qualquer coisa para a cozinha. Ela não estava, eu sabia que não estava, senão não teria ido, não teria conseguido ir, mas fui e fiquei ali parado a querer saber todos os sítios por onde ela passava todos os dias. Foi aí a primeira vez que gravei de propósito imagens na memória. Estava a olhar para o corredor e a esforçar-me por decorá-lo para saber por onde ela entraria no fim do dia. Acho que se chamava Patrícia e teria também cinco anos. O pai dela tinha um carro igual ao do meu, era verde, o do meu pai era cor de vinho.


Era ela do outro lado da rua e aquilo era muito no meio daquela tarde morrinhenta, um acontecimento tão grande que a casa que estava atrás da porta da varanda se fechou e passou a existir só a varanda e ela encostada ao muro à espera, sem me ver, porque eu era invisível, ou não me ocorreria nunca que não o fosse, porque ela não sabia de nada e se não sabia não me poderia ver, como não poderia estar em casa quando lá fui com a Conceição. De repente ela olhou para mim e eu acordei, estava ali, na varanda e ela via-me, conseguia ver-me. Procurei a porta da varanda, que era de madeira, também velha e também com farpas, empurrei o vidro, porque não queria mais farpas, a porta estava fechada, não sei como é que aconteceu mas para abrir a porta, para sair dali, acabei por partir o vidro e abrir a porta por dentro. Tenho uma pequena cicatriz em forma de olho nas costas da mão direita e sei perfeitamente que a fiz ali, antes de voltar para casa e sair daquele lugar que foi o primeiro lugar de amor de que me lembro.