27.10.11

FOLHETIM (O Escritor Fantasma) - Parte 1



1.

O Armando usa óculos. Já desistiu de comprar os “que lhe ficam mesmo bem” que também há muito deixaram de lhe dizer e – depois disso -  de procurar os que lhe fiquem menos mal.

Usa os óculos que tem, uns que encontrou de massa e que eram daquelas coisas que por serem tão nhónhinhas, tão inofensivas, tão moscas mortas que nunca as perdemos, sobrevivem sempre e fazem-no com aquele ar aparentemente inofensivo dos que sabem que nos vão sobreviver e olham para nós assim, com aquela peninha que se nota mais porque dissimulada em não peninha.

Mandou arranjar os óculos (pôr-lhes umas lentes, porque eles estavam bons); Marcou uma consulta na Óptica onde trabalha a Alicinha, que é quem o continua a vir visitar, uma vez por semana, sem que ele perceba que o ritmo é mesmo esse – o da promessa que ela se fez de não deixar o gajo enlouquecer sozinho. Foi então à Óptica, no Conde Redondo e foi lá que soube que tinha aumentado as dioptrias e que o astigmatismo regride mas a vista cansada não, a miopia não.

Era tudo branco, parecido ao branco iluminado a fluorescente e tobogénio, ou lá como se chamam as lâmpadas cilíndricas que desde os anos 70 dão aquela luz em todos os sítios em que o Estado dá aquela luz, daquela luz de todos os sítios onde nos tratam da saúde. Armando não gosta disso, por isso achou bem ir a uma óptica ver dos olhos para arranjar os óculos de massa em vez de ir marcar uma consulta no Oftalmologista.

Armando fala bem e escreve, escreve ainda muito,” ainda” porque há muito tempo que acabou o que lhe pareceu na altura um dado adquirido: viver do que escrevia. Armando só vacila em palavras técnicas como as das lâmpadas de Tugonénio  .

- É assim que se chamam não?  Bem, pensando bem acho que não deve ser assim, soa a prémio da Associação Nacional de Inventores, Filatelistas e Malta que Gosta de Falar do Antigamente, pouco importa, adiante).

Armando há muito tempo que não sai à noite para ir beber um copo, assim descontraidamente como quem não quer a coisa e se der até às sete foi uma ganda noite, no dia a seguir, de rastos e um gajo a tentar consolar-se assim: “foi uma ganda noite”.

-  Há muito tempo que não vou sequer ao before hours, antes do after hours, eh eh, diz o Armando a fazer graça com o Victor que o foi ver ao buraco onde te meteste.

- Mas isto não é nenhum buraco, os buracos são nas caves, isto é um sótão e – pera – sobe lá para aquela caixa. Eh pá vá lá, faz o que te digo, carácoles. Tás a ver? Estica o pescoço para dentro da clarabóia. Estás a ver? Cacilhas, carácoles e aquele sítio que tem os restaurantes onde a malta ia quando estava tudo cheio, nas noites deverão: o Ginjal,  tás a ver o Ginjal? O Atira-te ao Rio?

- Bom tava-te a contar que fui lá pôr as lentes e da luz do Tugogénio, eh eh, não deve ser assim que se chamam as lâmpadas, aquelas que piscam antes de acender?

O Victor olha para o Armando e mede-o sem acabar de fechar a boca: Este gajo está-se a passar. Tenho de o tirar de aqui, dã-se. Victor olha à volta enquanto o Armandinho fala aquilo dos Filatelistas e que conversa da treta, pensa o Victor.

- Oh pá, vai dar banho ao cão, veste uma camisa pá e vamos ali à Barraca onde íamos há anos ver aqueles gajos dos Ena Pá 2000. Gandas tempos, um gaijo, um gaijo nunca sabia, nunca sabia  como é que a noite ia acabar. Aquilo agora bebe-se uns copos assim depois do jantar e vou com uma amiga, depois do jantar, tás a ver, diz que há lá uma cena de Teatro, bute Nandinho, bute lá, põe-te a peito Nandinho! faz-te fino Nandinho! passo por cá depois do jantar para desceres. E saiu sem dar tempo ao outro de tugir.

Nem se levantou, ficou ali a ver-se olhar para as pantufas, o que fazia, para aumentar a auto-comiseração que o fazia sentir não ter nada a ver com aquilo que via, via-se de fora e pronto, não estava nessa. Não estou nessa Vanessa, disse o Armandinho alto quando se levantou para ir tomar duche. Bora lá, o Victor é um acelerado mas está-se bem e a amiga pode ser gira. Oh pá e que seja, carácoles? Armandinho fala sozinho muitas vezes, interrompe-se geralmente quando se quer pôr na ordem. Nessa parte ele não consegue ver-se de fora, como na parte das pantufas, desvia o olhar e sussurra para si próprio. Eh pá estás a falar sozinho, vê lá isso.

Às dez o Victor lá estava mais a amiga Márcia.

O Armandinho desce as escadas mais leve, diz-se (agora só a pensar) devia obrigar-me a isto mais vezes, um tipo arranja-se e fica mais leve, com menos culpa é o que é, mas qual culpa? A de não fazer a barba, fónixe, é sempre a mesma coisa, a culpa, a culpa. Bom mas devia fazer isto mais vezes, um gajo olha para o espelho quando vai ter com os outros, e aí vê-se, pelos olhos deles, só aí é que nos vemos, quando sabemos que os outros nos vão ver, é, é o mesmo que se passa com as casas, um gajo pode estar uma semana sem arrumar a casa, vai pondo as coisas no lixo, livrando os cinzeiros, puxa os lençóis pelas orelhas, abre as janelas e tá, e tá e vive assim uma semana, nem vê, não repara no que está a acumular, é o pó do pós dos cinzeiros virados, o amarrotado quente da cama puxada pelas orelhas há cinco dias, o lixo a transbordar com algumas embalagens já em equilíbrio entre o metal do balde e o vácuo, de repente tocam à porta, aí um gajo vê a casa, a partir do toque da campainha aquilo é como acenderem uma luz de projector num quarto com iluminação pró-queca:

 Flash, um flash meu, é o que é. Quanto te batem à porta é que vês a casa. É como sair, vinha a pensar isso enquanto descia as escadas, tenho de vir aqui mais vezes. Tenho de me obrigar a sair. Já parecia que não me conhecia, hoje, quando comecei a fazer a barba.

O Victor olha para a Márcia, enquanto o Armandinho está a olhar para as três cadeiras que estão em sentinela, na forma, no palco, assim em contra luz, só preto.

Diz o Armandinho: -  Aquilo é estranho. O  Palco estão a ver? Parece aqueles palcos do Teatro depois do 25 de Abril, em que não havia cenários, era tudo com as mãos, imaginavas a chávena de chá, o cajado (o cajado era fácil), a garrafa, mas também não podiam ser todos os objectos, há uns que de certeza  eles tinham de tirar da história porque com mímica iam levar muito tempo a descrevê-los.

O Victor e a Márcia voltam a olhar um para o outro, desta vez ela levanta as sobrancelhas com a expressão “qué isso minino” (a Márcia é Paulista).

O Armandinho não dá por nada, está mais leve, está reconciliado consigo, já pode até ser apresentado, “estás a ver? está-se bem. A brasileira é fixóla o Victor está numa de estar caladito, está-se muito bem”, diz a expressão facial dele.

O Armandinho vai à casa de banho, procura o interruptor, aquilo está escuro, é aqui, passou a ponta dos dedos pela parede até encontrar o rebordo e ligou, outra vez, ligou, para cima, para baixo e alternadamente os interruptores até que entreou e fez que bateu as palmas, e ficou à espera e assim a medo esboçou um gesto que parecia o de um pássaro a sacudir  as asas sem querer fazer barulho, também não havia daquelas lâmpadas com censores. Olhou para cima e conseguiu ver o luzir alaranjado da lâmpada cilíndrica do tecto.

Armandinho vai ao balcão e o rapaz que estava ali até a estudar enquanto aquilo dura, levanta os olhos do livro que tem aberto logo por debaixo do tampo do balcão onde o Armandinho tem a mão pousada ouve-o:

- Desculpe mas parece-me que a lâmpada do tubogajogénio está fundida.

- Tubo quê? – Pergunta o rapaz ainda antes da dúvida este gajo está a gozar comigo?

- Eh pá desculpe, não sei como se chamam. A lâmpada da casa de banho está fundida, há outra luz? estás a ver?

O rapaz do bar diz que não sabe, sem uma palavra, só com o franzir dos lábios para baixo, assim em arco quase beicinho. Sei lá.

Começa o espectáculo, as luzes apagam-se, faz-se silêncio e por momentos o Armandinho ouve mesmo o bzzr bzzrr intermitente da lâmpada lá como raio se chame a zunir, logo sobre o zunir da lâmpada há um reflexo mínimo alaranjado que é do filamento que está a luzir. Filamento, olha estão a pedir uma palavra

-  A gente diz uma palavra e eles fazem o teatro a partir dali. Este é o Victor a explicar à Márcia o que está a acontecer. Armandinho estava absorto a olhar para a porta da casa de banho. A Márcia e o Victor olhavam para ele enquanto continuavam a conversar, olhando-o ambos, sem se olharem entre si, até que ele elevou a voz para dizer o que disse “A gente diz uma palavra e eles fazem o teatro a partir dali.”

- Filamento. Diz logo o Armandinho.

- Filamento, filamento, filamento, dizem em tom de voz pensativo/introspectivo os três actores enquanto dão uma série de voltinhas às cadeiras de há pouco, as que pareciam sentinela.

A luz volta a baixar, agora muito suavemente, eles estão sentados agora em cima das cadeiras, em posições tipo o “Pensador”, a luz chega à escuridão total menos o raio da lâmpada que luz e o Armandinho olha outra vez para lá e o Victor olha para as mãos que fecha, mesmo assim, naquela penumbra, os zumbidos do filamento fazem-lhe luzir o anel mesmo antes da pedra verde. O Victor é do Sporting e comprou aquilo num antiquário em Benidorm que o convenceu que o anel era de um pirata, o anel era verde e o Victor era do Sporting, e pronto trás, pum cantrapum: anel de pirata do Sporting.

- De prata, perguntou-lhe a sogra quando ele contou a história lá em casa, no almoço de Domingo.

- De pirata, falou ele mais alto.

A mulher deu-lhe uma canelada, assim de lado mas com a ponta do f. da p. do sapato que se o apanho no chão. O Victor lá se controlou, engoliu a dor na canela e repetiu mansinho. - Pirata D. Júlia. Pirata do Sporting.

Isto fora na véspera, hoje dissera à mulher que ia com o Antunes ver os equipamentos para o torneio de Footsale da empresa, que já estavam atrasados e que a malta que tinha dado o dinheiro já andava a gozar com eles.

Agora estava ali, sem saber como iam voltar a falar normalmente. Dantes falavam logo, a coisa acontecia e falavam logo, agora não, passa um dia, passa dois dias e aquilo fica ali, como uma batata mal migada na sopa, um trambolho, a meio. Bom e o Armandinho que está porreiro, a Márcia não o conhece, é verdade que ele está assim pró estranho com aquela coisa da mímica e dos teatros dos anos 70, diz cada coisa de repente.




O pianista, está ali o pianista. Foi a primeira coisa que se viu quando a luz encarnada começou a subir. É uma senhora que faz as luzes, ali desde uma mesinha. Sorri-lhe, ela parece  fazer aquilo por causa da folga de alguém, mas está serena e feliz, olha para as luzes a subir e sorri enquanto gira os botões. Primeiras notas do piano, como o piano é quente para a alma, às primeiras notas depois do silêncio fica tudo cheio, o palco mudou de luz e está cheio, com os actores que chegaram, o piano e começam a viver uma história, que fazem logo ali, à nossa frente. Filamento que raio de palavra fui dizer. E porque é que não estou calado? Agora vão todos ter de levar com uma história feita sobre o “filamento “.

(cont.)




5 comentários:

Sofia D'Aire disse...

O Folhetim pos-me muito bem disposta. E agora... estou curiosa... à espera da continuação. Obrigada Tiago.

Sofia D'Aire disse...

O Folhetim pos-me muito bem disposta. E agora... estou curiosa... à espera da continuação. Obrigada Tiago.

Francis disse...

grande Armando...

Teresa disse...

Bonito blogue.

Jackey disse...

I like the pictures very much which is interesting and meaningful!