25.7.11

História numa toalha de mesa (de papel)



“ Eu sei que isto é um pimenteiro


Mas ali eu vejo a sombra do vinho do carteiro



Eu ia muitas vezes almoçar aqui,

Na vida que tinha se vivesse onde cresci,

Aqui é a Casa da Índia e a mesa é a mesma e se não é

É porque o passado aqui não tem presente



Eu ia ser amigo dos rapazes de então

Um deles pode bem ser o carteiro que bebe sozinho o seu vinho

Olho para o pimenteiro

E na sua sombra vejo o vinho do carteiro



Já a sombra da caneta Posca é mesmo uma caneta.

Deve ser porque veio comigo.

Tudo o resto não tem a mesma sombra.

Deve ser por causa da diferença de fuso dos nossos presentes.”



Desenhei e escrevi isto sobre uma toalha do Restaurante “A Casa da Índia”. Foi há uma semana, durante os dias contínuos das pinturas da parede do Majong. Dias contínuos porque quando acontece aquilo de pintar dentro de uma folha enorme ou de uma parede a existência fica suspensa no quadro que pinto. Aconteceu com o Alto Bairro, aconteceu com “Esta rua não tem lado certo nem andar direito”, com o “Jardim do Éden” e voltou a acontecer com a parede do Majong. Nesses períodos compreendo quem se esquece de fazer a barba, quem almoça como eu fora do horário em que os restaurantes estão abertos, quem repetidas vezes tenha de fazer a verificação do que tem de levar nos bolsos antes de sair de casa (aquela história do médico ateu que sempre se benzia ao sair de casa, a quem um dia a Governanta pergunta por não puder mais não perguntar: mas Dr. Se é ateu porque se benze sempre quando saí? – Eu?!!! Mas eu só estou a verificar se está tudo: chapéu, carteira, óculos, braguilha [eu escrevo berguilha, mas isto dá erro, soa bem melhor que braguilha]).

No meio desses dias dou por mim naquele Restaurante. A última vez que ali estive foi há trinta e seis anos. Passo por lá quase todos os dias desde os vinte e três, mas foi aos onze anos a última vez que lá almocei. Tenho a imagem desse almoço como se o tivesse fotografado. Estudava no Liceu Fernão Lopes que lá havia na Rua das Chagas e para onde fui depois de acabar a primária num Colégio chamado Bambi. O meu amigo Óscar convidou-me para almoçar com o pai, comi salsicha com couve lombarda. Daquela que vem com um molho com um cheiro a molho, um cheiro acre que volto a ter a certeza que está ali. Tenho quarenta e sete anos, sei que a minha vida voltou a ser interrompida pouco depois daquele almoço. Três anos antes tinha sido a saída brusca do Porto, poucos meses depois daquele almoço a saída brusca de Lisboa para Cascais.

Estou sozinho a olhar para uma espécie de Museu com um presente que não me inclui: desenho e escrevo na toalha o que está na imagem.

À tarde volto à parede. A Marta passou pelo Majong, tirou uma fotografia ao papel, não me tinha apercebido disso. No final do dia entra no Majong a Susana. A Susana foi minha Colega no Bambi, na terceira e na quarta classe, não a via desde então. Se à Casa da India não voltava há trinta e seis anos, a Susana não a via há trinta e sete. Soube dela pelo Vasco (nosso Colega de então que fui reencontrando e fazendo questão de criar a regra de sempre, mas sempre cumprimentar com a alegria de quem nunca mais se viu, o que é rigorosamente verdade, apesar de nos termos visto inúmeras vezes). Ele deu-me o nome e a indicação de que estava no Facebook. A Susana entrou e disse-me um Olá tão familiar que voltei a temer pela minha sanidade. Mais uma pessoa que não reconheço e com quem se calhar estive a falar demoradamente há uns dias. Confessei-lhe atrapalhado que não a estava a reconhecer. Pedi-lhe ajuda. “Sou a Susana, a tua Colega do Bambi, a que se sentava na carteira da frente”. De novo o tempo às cambalhotas e a bolha da saída do tempo que continua a passar por debaixo do momento em que entrei. Falámos, emocionámo-nos, contou-me entre outras coisas que eu lhe mostrava as histórias que na altura escrevia. Lembrei-me do que tinha escrito na toalha do almoço. Ofereci-lhe esse papel. Era dela. Peço-te apenas uma coisa: que por favor digitalizes ou fotografes o papel, porque eu gosto de ter um registo de tudo quanto faço, gosto não é a palavra, tenho sinto pretensiosamente que tenho o dever de o fazer. Passou uma semana. Hoje chego a casa e encontro a fotografia do papel, postada pela Marta no Facebook. Comento: “As voltas que a vida nos dá”, a Marta pergunta em resposta ao comentário: “Ainda tens esse papel?” Respondo-lhe: “É uma longa história” e acrescento: “vou escrevê-la agora e se ainda estiveres aqui vais perceber porque o digo”.

4 comentários:

Bípede Falante disse...

Gostei tanto da sua escrita :)

Francis disse...

Gosto muito deste registo.

Tiago Taron disse...

obrigado Francis, eu também, mas é tão volátil e caprichoso que raramente me apanha quando escrevo. abç

SRC disse...

Uau, gostei muito. Parabéns!