11.9.21

Y A TI, QUE TE GUSTA EN LA VIDA?

 


D. Rodrigo Uría, fotografia de Marta Robles

O tempo estava encoberto, todas as divisões da casa no Campo Santana onde então vivia davam para a varanda mais bonita da minha memória. Uma varanda com largura suficiente para ter uma mesa para quatro pessoas, poder estar a chover e poder-se comer confortavelmente “à” chuva. De manhã tomava ali o pequeno almoço.

Ouvia a Dolores O'Riordan dos The Cranberries. Era o DVD que ainda estava a dar em loop na televisão, porque no dia anterior a Carolina (então com 4 anos) pedira para pôr “aquele da senhora da música forte”.

A casa tinha aquela suspensão das sombras das folhas praticamente imóveis, a suavidade dos seus movimentos nos tectos e paredes permitiam saber a brisa que fazia, aquela brisa fria que antecede a chuva. 

Tínha acabado de acordar para o dia “D”. Era o dia da viagem a Madrid. O dia em que seria entrevistado por vários sócios da Uria & Menéndez a quem Coloma Armero me recomendara para abrir o escritório que a U.M. acabara de abrir em Lisboa. A mim caberia dar início a um Departamento de Tribunal e, provisoriamente, Laboral (procesal como era assim chamado o Departamento em Espanha). Tinha 37 anos e era uma espécie de chegar ao sonho de trabalhar num escritório com um rigor, disciplina de trabalho, vocação para a excelência que pode existir na profissão de advogado. 

Para mim era como passar a fazer parte da Fórmula 1. 

Antes disso conhecera a possibilidade dessa nobreza na profissão ao trabalhar no gabinete ao lado de Francisco Sá Carneiro (filho do falecido Primeiro Ministro mais saudoso de Portugal) e que foi de longe o advogado mais exemplar dessa possibilidade de auto-superação que pode dar a advocacia quando exercida sob a sua máxima que corria no écran do seu do seu monitor [Try Hard to do it better]. Máxima que depressa inverti para “Try better to do it harder”, dadas as diferenças entre as nossas duas advocacia: a dos negócios e a dos Tribunais. Na dos tribunais a máxima invertida parecia-me mais aplicável, sobretudo na área a que me dediquei desde o estágio - O Direito Penal. 

Há vinte anos, enquanto me preparava para o avião que seria - salvo erro, pelas 11:00 da manhã, vestia-me e poderia muito bem estar a dar o nó à gravata da sorte - uma gravata que tinha representada em pequenos desenhos de um corvo e de uma raposa a dita fábula de La Fontaine, “da sorte” porque era aquela que me fazia lembrar do defeito fatal [nos momentos decisivos] que é a vaidade] 

Telefonaram-me a perguntar se estava a ver a televisão? Liguei e vi as primeiras imagens. Um avião a embater contra uma enorme torre, estilhaçando-se com o realismo das imagens da série de filmes com “Aeroporto” no título. 

Ainda estávamos na incredibilidade das primeiras imagens quando a cena se repete na outra torre. Um silêncio após a exclamação do terror da surpresa: Outro avião… na outra torre. O que era então um pior cenário entre vários emergiu nítido. Notícias da possibilidade de existirem outros aviões com outros alvos. Notícias do eventual risco em que estariam outros alvos como o Pentágono ou a Casa Branca. 

Fui para o aeroporto. Apanhei o avião. Sentei-me e olhei para as nuvens. Foi aí que tive uma imagem: estas nuvens não diziam nada do que estaria a acontecer em baixo, nem permitiam ver a superfície da terra, como aconteceria se estivesse numa capsula espacial. 

O que é que estaria a acontecer lá em baixo? Será que quando o avião aterrar o mundo já não é o mesmo que eu conheço?

Foi um daqueles momentos “clarão” em que o pensamento se ilumina e aparece nas suas sete quintas de tão nítidas que são as perguntas que então se formulam, as hipóteses que se colocam, a vertigem das infinitas possibilidades que o pensamento começa então a desmultiplicar. 

De repente consigo ver “terra”, é imediatamente antes daquela que seria a primeira de muitas aterragens no Aeroporto de Madrid. 

Liguei o telemóvel, confirmei a hora da primeira entrevista, creio que ainda foi antes do almoço e terá sido com uma referência da magistratura Espanhola, entretanto tornado advogado, Carlos Bueren. Um penalista e um enorme pensador das questões centrais do Direito Penal, como a culpa ou a teoria “da culpa da formação da personalidade” para fundamentar a especial punição dos especialmente perigosos com menos livre arbítrio por terem crescido num meio crimonógeno. Questões que então se discutiam ainda num plano de teoria do direito penal, em que a culpa era a pedra angular de toda uma catedral do pensamento “jurídico” humano. Daí à relatividade dos conceitos, como o acabara de experimentar durante a viagem que tinha feito, em que pensara que quando aterrasse o mundo poderia já ser outro. Terá sido assim que terminou a nossa conversa. 

Seguiu-se um almoço num restaurante que existia em frente do escritório, na Calle Jorge Juan. Um restaurante Tailandês (?) com uma decoração entre o filme Casa Blanca e um jardim de Alhandra. Recordo o excesso de verde, até na luz e de não haver entre esse excesso a luz que procurava, a luz de um écran que me dissesse o que teria mais acontecido, desde a última vez que me tinham dito que não acontecera mais nada. 

 Seguiu-se outra conversa com o responsável do Departamento de Procesal, Jesus Penálver. Um advogado de mão cheia, com aquela humildade natural que os torna os mais temíveis, porque acrescentam à defesa do cliente o timbre do seu carácter humilde, sério e enormemente trabalhador. Departamento, gestão do conhecimento. Tecnologias. Era a minha praia preferida nas conversas sobre os escritórios. Sobre as enormes possibilidades dos grandes escritórios na utilização da sua própria experiência acumulada, num sucessivo refinamento dessa mesma experiência e bibliotecas e artigos e constante discussão interna. Tudo o que eu queria ouvir. Finalmente o momento. O momento mais aguardado. A “charla” com D. Rodrigo Uría.

Entrei e dou com um daqueles sorrisos que preenche todo o lugar, sobrepondo-se ao enquadramento. Um daqueles sorrisos que só tem quem já teve muito mundo humano. A um tempo caloroso e desarmante da tranquilidade melancólica de quem já não espera ser surpreendido.

Cumprimentamo-nos. Tinha os dois últimos botões dos três das mangas do casaco fora das respectivas casas. Detalhe dos fatos “à inglesa” feitos em alfaiate. Só me fez uma pergunta. Tirou os óculos olho-me nos olhos e disse: - “Y a ti que te gusta en la vida?”. 

Uf. Podia estar à vontade, mas não à vontadinha (a gravata lembrava os limites). Respondi sem medos, como então se dizia no snooker do bairro alto, antes de uma bola difícil. 

Acabámos a falar de arte e da dificuldade do conceito jurídico que supõe a “criação original do espírito humano” e como nem o original, nem - portanto - a criação (individual) pode ou não existir. 

Pedi-lhe no fim e a propósito do lugar que dera à Mesa no meu enorme monólogo anterior, que me indicasse um restaurante. Disse-me: 

- “Arce” vai ao Arce. Te va a gustar. 

E lá fui. Primeiro para um Hotel NH, tomar um duche, mudar de roupa. Pedi para reservarem uma mesa no tal “Arce” e à hora marcada lá me receberam e sentaram numa mesa sólida com espaço. Toalhas brancas impecáveis. 

Aparece o Chef do Acre. 

Uma enorme pessoa, uma montanha afável e que interrompeu o que estava a fazer para perguntar: “Hambre o Apetito?”.Lembro-me da minha avó a dizer que “fome” era de três dias. Consigo responder só: “es mas apetite”. É então que o Chef atira com “Y a ti que te gusta en la vida”?. 

Respondo. Nova torrente. Nova, tanto quanto possível para não me sentir a repetir a resposta que antes dera a D. Rodrigo. Com mais foco na mesa. Na maior arte de todas que deveria ser a mesa, porque é aquela que mais anos tem de continuado aperfeiçoamento (da culinária aos vinhos às próprias “regras”, etc.). 

O Chef lá se conseguiu desembaraçar de mim e eu voltei ao branco da toalha, ao peso dos pratos, às cintilações dos talheres areados, dos copos terminados de lavar à mão, em água fria. 

Como numca mais me trazem a carta, peço-a. O Chef desaparecera para os seus domínios. Vem o empregado à mesa e diz que não será necessário carta porque o Chef te vai preparar “la cena de tu vida." E foi, foi sem dúvida um dos melhores jantares da minha vida. Talvez um dos últimos jantares antes da vida ter mudado para sempre. Uma espécie de fim de ciclo. Para terminar o chef voltou à mesa e trouxe um café e a “bebida dos piratas”. Foi então que bebi Calvados pela primeira vez. 

Cada vez que voltava a Madrid voltava ao Arce. Por essa razão, um dia, ao despedir-me do Chef lhe tenha dito: - “Ganhaste um cliente para a vida”. Ao que me respondeu “Un cliente no, un amigo. Un amigo desde que me contaste toda tu vida quando te perguntado si te gustava carne o pescado”. Protestei: "Que no! Me as perguntado que me gustava en la vida”. Respondeu-me: “Si. Eso es. Si te gustava carne o pescado. Asi se pergunta". Pensei que fazia todo o sentido. Em especial se perguntado depois de “Hambre o apetito?”.


Hoje, escrevo esta memória em Caminha, onde pinto, num lugar que fui construindo chamado Alminha. Hoje sei que é este o mundo em que aterrei naquele dia. Não é fácil, mas não deixa de ter aquela luz da incrível frase que Adelino Amaro da Costa citava de Mao Tze Tung: “Vai uma grande confusão em terra e no mar, mas a ocasião é excelente.” [frase que se encontra inscrita no chão em frente da actual sede do P.P., ao Largo do Caldas. Profética inscrição.

 

Caminha, 11 de Setembro de 2021 

 



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