17.12.21

FINGIDOS DO MAR / GALERIA BAR AFTER EIGHT / CAMINHA / DEZEMBRO 2021


 

 

Desde que abri a Oficina da Alminha em Caminha que todos os anos, em Dezembro, fazemos (eu e o Francisco Ramalhosa, feliz proprietário do After Eight - Galeria/Bar) uma exposição com trabalhos da “oficina da Alminha” [“oficina” porque foi sempre o que mais me interessou na pintura: a possibilidade do trabalho de artificie, da sua disciplina e da sua humildade no fazer, sabendo-se um mero instrumento, uma mera caixa ao vento soando, eventualmente bem, e aí: misteriosamente bem; “da”, porque sempre “assinei” os trabalhos feitos nessa oficina com o seu nome, na tradição medieval de não ser a criação coisa individual, mas do lugar; “Alminha” porque a primeira oficina aconteceu em Outubro de 2014, numa casa em Cerveira a que chamávamos “das Alminhas”, por ter um nicho do Senhor dos Passos na sua esquina.].

Todos os anos esta exposição tem-me dado um motivo para orientar a produção da Oficina para essa exposição; organizo o trabalho sistematizo-o e preparo a sua montagem.

Para este ano escolhi a terra dos meus trisavós paternos: Seixas - que é também o lugar que une tantos grandes artífices (com Vilar de Mouros e Lanhelas). Eram famosos os Ferreiros; Serralheiros; Estucadores; Canteiros; Arquitectos (Miguel Ventura Terra); Pintores (o avó do Cruzeiro Seixas era de Seixas; o Pai de António Pedro também era de Seixas, Guilherme Renda era de Seixas; Raul Pérez, meu querido amigo, também poderá ter antepassados em Seixas, o que ainda investigo).

É curiosa esta coincidência de serem de Seixas os supostos melhores “Pintores Fingidores” e depois serem também de Seixas aqueles referidos pintores e o próprio Arq.to Miguel Ventura Terra. Sem “bairrismo” é coisa que intriga. Invocar os “Pintores Fingidores” era - e é - a intenção desta exposição.

Invocar esses artistas que foram todos os outros artífices nas suas artes de aqui (ferreiros, serralheiros, canteiros, estucadores). Verdadeiros Artistas como o era o Tio Antonino Recaredo Cruz, que fez os estuques nos tectos da casa de Gondarém, casa para a qual sempre pintei, como era o avô de Francisco Ramalhosa, Eduardo Sousa, de quem é a autoria do fingido de madeira, executado sobre o louceiro, também de madeira, que está no lado direito da barra do After Eeight, como o foram todos aqueles cuja história e nome foi revelada nos notáveis livros do Prof. Paulo Bento: “Dos Caidores aos Estucadores e Maquetistas Vilamourenses” e  “Ferreiros e Serralheiros de Vilar de Mouros”, ambos disponíveis na Biblioteca de Caminha.

Na anterior exposição procurei mostrar a possibilidade de se extrair do pigmento da “uva tinta” (uvas da casta tintureira Vinhão ou Sousão), um efeito cromático que supera o dos pigmentos que geralmente uso nas aguarelas. Nesta procuro mostrar como a repetição do gesto dos Pintores Fingidores, tem uma beleza que foi sempre o último reduto da minha esperança de não ter feito uma escolha desastrosa quando escolhi ser pintor e deixei de ser advogado: se nenhum valor tiver o que faço, ao menos que tenha o valor do trabalho que está no que faço. Porém, aos poucos fui aprendendo que esse seria o maior predicado a que o meu trabalho poderia aspirar: conter trabalho, conter em si tempo dedicado. Não seria assim: “no pior dos casos”, mas "no melhor dos cenários": O que faço procura conter essa dedicação, praticamente total, ao que me propus fazer a pintar; comunicar-me da melhor maneira que o sei fazer: por imagens. Imagens o mais próximas possível do ambiente marítimo que procuro Fingir, simulando no papel o que de verdade vejo de olhos fechados, como simulando a água com a água com que pinto, como no poema de Fernando Pessoa:

“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.”

Os fingidos eram uma arte de simular materiais nas pinturas de paredes, tectos, portas, armários, etc.. Era a arte dos “Pintores Fingidores”, assim designados nas Bases para Orçamentos para as obras civis, os quais recebiam por jorna 1.500 reis, enquanto que o “vulgar” Pintor de Pincel recebia 700 reis (já o “Pintor Decorador”, nessa mesma Tabela de 1880, recebia à peça e não à jorna, tendo maior liberdade na execução dos trabalhos solicitados).

Terão sido os fingidos de madeira aplicados sobre uma porta também de madeira, em casa de um amigo de Fernando Pessoa, que o terão motivado o poema “Autopsicografia” _ e certamente ao próprio título (a história foi contada por Júlio Pomar e se não for verdade é, pelo menos, muito bem caçada), tal como os fingidos de madeira executados no louceiro do After Eight pelo avô de Francisco Ramalhosa, deram o “clique” para esta exposição.

Quem saberá ainda hoje replicar os fingidos de mármore ou azulejos sobre estuque, ou de madeira sobre madeira, executar os estuques trabalhados, românticos, ora barrocos, ora ingénuos, simples ou como se fossem filigrana, o serpentear do ferro, trabalhado, sem soldaduras, só com rebites? O saber destes Mestres merece mais do que uma homenagem, merece que se pense seriamente se não deveríamos dar-lhe futuro, a bem do presente. Para quando uma escola de Artes e Ofícios (em Caminha ou em Seixas, ou em Vilar de Mouros) que honre este saber que distinguiu durante anos os artistas deste concelho?

Gondarém, 17 de Dezembro de 2021

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