4.11.08

Pequeno Almoço no Águias vs. Pequeno almoço na Bénard

Acordei e como previa estava novamente inteiro, a meio da noite tive algumas convulsões mas como sabia que estava a reconstituir-me, não cheguei a acordar mesmo e lembrei-me vagamente da Metamorfose e de que um pesadelo é isso, uma coisa que passa quando se acorda e depois desaparece, por isso continuei a dormir.
Continua também o encadeado dos acontecimentos. Às três da tarde vem o senhor jornalista da TSF para fazer uma entrevista sobre o "mudar de vida" para o Alentejo. Nem de propósito. Era bem escrever primeiro para procurar se tenho alguma coisa a dizer sobre isso. O exercício de pensar nas razões das coisas precisa às vezes destas motivações, eu pelo menos preciso , mas não gosto da minha voz quando a ouço falada para ser ouvida. Acontecia-me isso em Tribunal, cada vez que me levantava e começava a alegar achava-me de uma teatralidade pretensiosa, mas só assim conseguia evoluir e criar a verdade que tentava criar com as palavras. Uma realidade que se conseguisse praticamente apalpar. Tornar coisa a razão do cliente, coisa que se visse. Falar para ser ouvido muda o discurso, como escrever no computador muda a escrita relativamente à escrita nos cadernos com a caneta desse tempo (em miúdo dividia as fases da vida pela perda e aquisição das canetas de tinta permanente, primeiro Parker, depois uma Waterman de metal preto que escrevia maravilhosamente se deitada, depois as balofas Montblanc e finalmente a Dupond retro). Não quero mesmo pensar muito nisso antes da conversa com o jornalista e se continuar a tentar fazê-lo a fuga de ideias não vai parar e corro o risco de a levar para essa mesma conversa, o que não quero.
Há uma reacção comum das pessoas quando opinam sobre o vir viver para aqui. As pessoas pronunciam-se sobre as coisas mais incríveis, deixam-me espantado por conhecerem tanto das coisas minhas que eu não conheço, das minhas motivações. Dizem quase sempre que é uma fuga, que estou a fugir do mal que passei em Lisboa e que ia tendo uma consequência verdadeiramente desastrosa para quem verdadeiramente gosta de viver. Que é uma fuga para recuperar forças e corpo, etc. Ouço e apetece-me muito não contradizer, começo a sentir alguma náusea pela estrutura do discurso de argumentação, por essa forma de raciocínio que parte da premissa e começa a virá-la com palavras e lógica (do silogismo ou outra ferramenta). Gostava de lhes dizer que vim para aqui porque sinto -ao contrário da frase do apresentador "já fui muito feliz aí" que posso ser muito feliz aqui. Só isso já me deixa feliz. Isso é uma espécie de intuição que tive desde a primeira vez que para aqui vim, ou mesmo antes dessa primeira vez, desde a primeira vez que vim para o Alentejo. Hoje quando acordei experimentei a sensação de poder que vem dos momentos em que se parte do nada. Não tenho nada aqui que me permita viver - ganhar a vida, como se diz - a não ser pintar, mas é aqui que eu quero viver, então pensei que se pode começar por escolher um lugar e depois, em função dessa escolha, ordenar tudo o resto. Ora a escolha do lugar já tem em si a escolha da ordenação que se lhe segue e que ainda não sei bem qual será mas sei que já lá está nessa escolha. Vou ao Águias tomar o pequeno almoço, compro o jornal, não me causa o mesmo desconforto a leitura das notícias que causa quando as leio em Lisboa na esplanada da Bénard, como ontem, ao frio e com o bloco de aguarelas a intercalar a leitura sofrida das notícias, da pontuação dos filmes recentemente estreados. A torrada é em pão alentejano e é a prima alentejana da torrada da Versalhes, a meia de leite é mesmo quente e tem espuma e sou eu quem está aqui, quem conseguiu vir para aqui fazer a vida a partir de um encantamento. Já cá estou, isto existe e eu existo aqui. Pinta!

5 comentários:

ju e lu [e vice-versa] disse...

lendo assim, dá vontade de mudar de vida.

bem queria eu, fechar os olhos hoje na babilônia e acordar amanhã em shangri-la!

obrigada pela visita ao café e cigarros! ;-D

jú mancin

Anónimo disse...

Quase tudo no Alentejo é bom...e para continuar á procura da perfeição nada melhor que umas bochechas de vitela em vinho tinto, e o tão bom e afamado Pudim de Água de Estremoz, claro com o "xiripiti" habitual... Cumprimentos

Slave...The big Slave!

PA disse...

a net é uma rua onde nos cruzamos com estranhos, conhecidos e assim assim.

ouvi o seu nome.
tiago taron.
ficou em memória.
a pesquisar ...

encontrei vários blogues da sua autoria.


estou a gostar.
não sei bem do quê.

eu volto.

um abraço

Tiago Taron disse...

Amigo Paulo,
Saudades do São Rosas de que esta Lisboa me está a privar mais do que divia. Obrigado pela visita, é uma honra e um incentivo a falar mais do seu alentejo (o "nosso" seria abuso para um alentejanado, chegado de Lisboa e com alma de minhoto).
Abraço.

Pézinhos na Areia,
desses encontros todos nas Rua da Net, os meus preferidos são os assim, assim. Desconfio que são quase sempre os mesmos, porque ninguém me convence que não são variações de nós aqueles que personificamos nos outros que vamos encontrando nessa rua. Obrigado

PA disse...

é bem possível Tiago, que (tb) no online, o Outro seja eu. E eu seja o Outro.

afinal somos humanos.
será mais aquilo que nos une, do que aquilo que nos separa.

pensamos.
sentimos.

tantas vezes, o mesmo.

tantas vezes, o mesmo Olhar sobre a Vida, que é uma história diferente em cada um de nós.

O encontro no desencontro, Tiago.


Fique bem.