31.12.08

Parte 4 da Variação da História do Príncipe com Orelhas de Burro

tt/2008




"O jardineiro não tinha ainda a mesma capacidade de controlar esse limbo entre a vigília e o sono que a sua mulher há anos aprendera e voltou a adormecer imediatamente antes da parte do copo de leite. Quando acabou de lhe contar o que tinha ouvido a mulher mudou o timbre da voz e perguntou-lhe, estás a ouvir? - Ele respondeu que sim e como sabia que tinha adormecido, para que não voltasse a cair no sono, virou-se para cima e ficou a olhar para o tecto, com os olhos semicerrados porque uma das lâminas de luz que vinha das portadas atravessava-lhe o nariz e encadeava-o, sem que estivesse ainda consciente do que aquilo era, tanto assim que pegou na almofada e colocou-a sobre a cara. (da anterior parte 3)".

Regressou o jardineiro ao lugar das rosas, onde ficara a saber dos dois segredos da rainha: que falava com estas e que não podia dar um príncipe ao reino. No caminho ia pensando porque razão a mulher lhe tinha dito aquilo e, antes disso, será que a mulher acreditava mesmo naquilo? E, ainda mais antes disso, será que o faria? Iremos nós ter um filho? Como podem os ciganos saber destas coisas? E o medo que têm aos sapos! Que segredo esconde? E como é que vamos fazer nós agora com um filho? Mas ela falaria comigo! Ou não. Mas conheces tu a tua mulher?

O Jardineiro desde cedo aprendera que a sua mulher seria sempre um mistério para si. Apaixonara-se perdidamente por ela no momento em que a viu de relance a sair da igreja de mão dada com as irmãs. A visão dela fez tornar baças todas as outras coisas e pessoas, incluindo o cortejo de gaiatas em que seguia, fez ainda interromper o próprio som dos passos, das vozes, do vento e dos sinos, deixando-o apenas ouvir a sua respiração e o pulsar do coração que parecia estar junto aos próprios ouvidos, comprimindo-os e descomprimindo-os.

O primeiro mistério foi desde logo porquê ele?

Uma vez (algum tempo depois dela se ter aproximado dele, num dos bailes com que na Quinta da Felicidade se celebrava a chegada de cada estação, algum tempo depois dela lhe ter dado a mão para dançar, sem lhe dirigir uma só palavra e mantendo esse silêncio durante toda aquela primeira dança em que o olhou mansa e segura, para lhe dizer, uma vez acabada a dança, no instante do desenlace: - para onde é que você vai a partir de agora, onde eu não esteja?) ele perguntara-lhe isso mesmo: porquê ele? Ela respondera-lhe como se tivesse muito clara a resposta e falara-lhe não em destino mas numa palavra que ela usava às vezes, como uma daquelas palavras que não precisam de mais outras palavras para explicar as coisas. Por desígnio, respondera.

Por desígnio? Não perguntou ele, pela primeira vez. Que entenderia ela por "desígnio"? O capricho dela mais intenso do que os outros seria o que ela chamava de desígnio? Ou seria um sinal qualquer que ela vira e de que ele fazia parte e a que ela obedecera cegamente? Lembrou-se então do que acontecera quando a viu e para si a resposta do "porquê ele" passou a ser a mesma para "porquê ela"? - por desígnio, o mesmo que fizera parar todas as coisas e todos os sons quando a viu.

Ia pensando nestas coisas quando a sua Rainha o chamou: - Mestre Jardineiro. Bom dia. - Bom dia minha Rainha. Desculpe-me mas estava para aqui embaralhado comigo. - Respondeu, descobrindo-se, tirando o chapéu de feltro coçado e que junto à fita verde escura tinha uma espécie de desenho de montanhas da cor da geada, manchas que já não saíam e que faziam parte da história do chapéu, como a mulher um dia lhe respondeu quando o jardineiro lhe perguntou como se tirava aquilo.

-Mestre jardineiro, já viu que temos um ninho de pássaros com penas da mesma cor das rosas amarelas, mesmo no meio dessa parte do roseiral? Está ali muito instável e temo que a própria brisa e faça tombar.

Mostrou-lhe então a Rainha o ninho de que falara. Era muito raro a Rainha falar-lhe. Cumprimentava-o sim, e sempre até então depois dele a cumprimentar primeiro e parar enquanto ela passava sorrindo. Nunca lhe perguntara nada, passava a sorrir e pronto. Hoje, havia aquela história do ninho e antes disso, aquela história que ouvira ao acordar e que agora lhe parecia também desígnio, isso do ninho, isso da história, isso tudo que fosse lá o que fosse ou viesse de onde viesse e que o fez falar por tudo isso, com uma voz que sendo a sua não vinha de si, vinha através de si, uma voz que reunia as vozes da cigana, da sua mulher e sabe-se lá mais de quem. "Porquê ele?", voltou a pensar o jardineiro, depois de ter contado tudo quanto ouvira da sua mulher à sua Rainha. (Continua)

4 comentários:

António Conceição disse...

Estou sem tempo, mas prometo que amanhã virei ler com atenção esta variação.
Será uma boa forma de começar o ano.

Tiago Taron disse...

Oxalá seja. Mas não tenho muitas esperanças que assim seja. O conto que vou escrevendo é a passagem a escrito de uma história (aumentada e certamente piorada, em vez de melhorada) de uma que uma vez inventei quando um dos meus filhos me pediu para lhe contar a história do "Príncipe com Orelhas de Burro". Comecei a escrevê-la porque li uma história de que gostei muito (aresdaminhagraça@blogspot.com) e quis retribuir, ou, se quiser ser mauzinho comigo, tentar fazer do mesmo. Aproveito para desejar um ano de 2009 na mesma grande forma em que esteve neste 2008, haja alguma coisa que não deprima neste ano que passa, o seu Blog, para mim, foi uma delas. Parabéns e bom ano.

Patti disse...

Ao ler a resposta da mulher do jardineiro, quando do seu primeiro encontro, sobre a forma de desígnio, veio-me logo à cabeça o seu oposto: a coincidência.

Os desígnios, destinos, sinas, sortes, caminhos pré-determinados, futuro estabelecido mexem-me com a sensibilidade.

Desde sempre. Desde as aulas de catequese e do colégio das freiras irlandesas, em que não achava piada a tudo já estar escrito, como me tentavam fazer ver.

É tão estranho o comportamento das pessoas perante as definições da vida e a existência de certas noções instituídas. O que para uns aufere segurança, estabilidade, tranquilidade, para outros, como eu, a reacção é de prisão, sufoco, obstáculo e nunca de amparo. E assim se afasta uma religião ou filosofia.

Há duas frases que detesto: “Tens de ter paciência” e “ Já estava escrito; tinha de acontecer”.

Só creio em destinos dos pequeninos, isto é, naqueles que conscientemente fazemos acontecer e apesar de muitas coisas na nossa (minha) vida virem a bater certo futuramente, creio muito mais no acaso, na coincidência. O que não deixa de ser muito estranho para uma pessoa organizada e disciplinada, como eu.

Isto serão divagações pessoais, que os pensamentos do jardineiro me fizeram bulir na cabeça, nada têm a ver com o seu conto, obviamente. Coisa minhas, que me fluem quando menos espero e peço desculpa pela divagação.

Bom, vamos ver o que o destino (?) ditará a esta história.

Bom ano Tiago e muitos parabéns pelo dia 1(vi a data no post de apresentação do Aguarelas TT).

Tiago Taron disse...

Patti,
Eu que não acredito em destino escrito (escrito a priori), acredito no destino que se vai escrevendo. Acredito que há uma espécie de memória do futuro que se anuncia às vezes e nos empurra como magnetos para o que de alguma maneira sabemos não podermos deixar de viver. É esse o desígnio que nos retira o falso arbítrio das grandes escolhas. Somos sempre nós, o que fomos no futuro! Eu sei que isto parece a mesma coisa do "estava escrito" e sei também que é pedante a afirmação - jogo de palavas, oca, auto-satisfeitinha, mas é o mais próximo do significado que sei verbalizar do que acho ser o "desígnio".
Muito obrigado pelos parabéns (do aniversário), coincide com um dia em que muda o ano e geralmente - sempre - é consumido por essa efeméride maior. Ainda assim costumo comemorar, comigo.