6.10.09

Ainda a Implantação da Repúbica

Continuo a ler o livro ontem lançado pela Fundação Mário Soares: "A Maçonaria e a Implantação da República - Documentos Inéditos, Simões Raposo e Carvalhão Duarte. Um dos factos relatados faz-me parar, ler e reler. O testamento ditado por Manuel Buiça no dia 28 de Janeiro de 1908, três dias antes de ter participado no assassinato do Rei D. Carlos e do Príncipe D. Luís.

Nessa última Terça-Feira do mês de Janeiro ditou Manuel Buiça ao Tabelião: "Apontamentos indispensáveis se eu morrer: Meus queridos filhos ficam pobríssimos; não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e a compaixão pelos que sofrem. Peço que os eduquem nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade que eu comungo e por causa dos quais ficarão, porventura em breve, orfãos."

Leio esta declaração outra vez e coloco-me na posição do Tabelião a quem o testamento teria sido ditado. Parece a carta de despedida de um Kamikasé, de um suicida político. Manuel Buiça despede-se e usa a forma de testamento - feito em Tabelião, perante este e duas testemunhas - para que ficasse registado o que ia fazer e a razão pela qual o ia fazer: pela liberdade, igualdade e fraternidade. É ao mesmo tempo uma confissão de culpa antecipada, se por alguma razão Manuel Buiça sobreviver ou escapar, aquela declaração constituirá a prova provada dos seus planos.

O livro que ontem foi lançado revela ainda quem foram as testemunhas dessa Declaração: "Serviram de testemunhas Aquilino Ribeiro, publicista, e Albano José Correia, empregado de comércio. O professor tinha dois filhos, Elvira, nascida em 1900 e Manuel, nascido em 1907." (pp. 229).

Pergunto-me se será o mesmo Aquilino Ribeiro e se seria possível a qualquer uma das duas testemunhas aí indicadas desconhecer a razão de ser da Declaração, desconhecer que aquele homem a fazia porque em breve (na verdade dentro de três dias) iria atentar contra a vida do rei e do seu filho.

No meio dessa dúvida, e para ver se se trataria do mesmo Aquilino socorro-me da Google e pesquiso "Buiça + Aquilino Ribeiro".
Logo no primeiro resultado encontro com um notável texto de defesa dos regicídas assinado por Carlos Barroco Esperança [Manuel Buíça e Alfredo Costa,os Regícidas, Mártires injustiçados] e publicado por este, a 1 de Dezembro de 2007, no sítio de internet de uma Associação Cívica que se apresenta como "Vidas Alternativas".

Como no texto não encontro nada sobre Aquilino, embora dele conste a identidade do Tabelião que reconhecera a declaração (tabelião Motta, na Rua do Crucifixo, em Lisboa), continuo a ler os comentários que lhe foram feitos.
A primeira surpresa é que encontro um comentário (o primeiro feito àquele texto) assinado pela bisneta de Elvira (a filha mais velha de Manuel Buiça, a mesma que o livro refere) diz o comentário: "… a minha bisavó Elvira ficou pobrissiima como o pai tinha previsto. Perseguida durante quase toda a sua vida, contava-nos histórias de quando era pequena, mas sempre ás escondidas da minha avó Rosinda, sua filha que tinha muita vergonha e medo que alguem soubesse que era uma Buiça. Não somos Buiça de nome apenas Costa, porque até há bem pouco tempo ainda se vivia com medo. Medos que esta nova geração já não tem. É com orgulho que recordamos o homem que sabendo o que lhe iria acontecer, não abandonou as suas convicções e mudou a História de Portugal. " Paro outra vez. O que está a acontecer é a história de Portugal de novo a ser escrita. Em directo, através daquele daquele comentário, publicado por Sónia Rodrigues, a 27 de Janeiro de 2008 (um dia antes de perfazerem os cem anos desde o testamento ditado pelo seu trisavô) a um texto publicado em 2007 na Internet, fala a bisneta da filha de Manuel Buiça, revelando um pouco do que foi a vida de sua bisavô e prestando homenagem ao seu bisavô.

Ainda há instantes escrevia sobre a Rainha D. Amélia, empunhando um ramo de flores para defender o filho que lhe restava e a chamar infâmes a quem disparava e agora leio um comentário da trisneta de um deles, com a sua versão, com o seu legítimo amor e orgulho.

No supra referido sítio de internet, encontro, no final do texto, uma referência a outro lugar: "veritas.blogs.sapo.pt/arquivo/1078876.html". Vou lá e encontro o texto completo da declaração de Manuel Buiça que volto a reproduzir:

"Manuel dos Reis da Silva Buiça, viuvo, filho de Augusto da Silva Buiça e de Maria Barroso, residente em Vinhaes, concelho de Vinhaes, districto de Bragança. Sou natural de Bouçoais, concelho de Valpassos, districto de Vila Real (Traz-os-Montes); fui casado com D.Herminia Augusta da Silva Buíça, filha do major de cavalaria (reformado) e de D.Maria de Jesus Costa. O major chama-se João Augusto da Costa, viuvo. Ficaram-me de minha mulher dois filhos, a saber: Elvira, que nasceu a 19 de dezembro de 1900, na rua de Santa Marta, número... rez do chão e que não está ainda baptisada nem registada civilmente e Manuel que nasceu a 12 de setembro de 1907 nas Escadinhas da Mouraria, número quatro, quarto andar, esquerdo e foi registado na administração do primeiro bairro de Lisboa, no dia onze de outubro do anno acima referido. Foram testemunhas do acto Albano José Correia, casado, empregado no comércio e Aquilino Ribeiro, solteiro, publicista. Ambos os meus filhos vivem commigo e com a avó materna nas Escadinhas da Mouraria, 4, 4o andar, esquerdo. Minha família vive em Vinhaes para onde se deve participar a minha morte ou o meu desapparecimento, caso se dêem. Meus filhos ficam pobrissimos; não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que soffrem. Peço que os eduquem nos principios da liberdade, egualdade e fraternidade que eu commungo e por causa dos quaes ficarão, porventura, em breve, orphãos. Lisboa, 28 de janeiro de 1908. Manuel dos Reis da Silva Buiça. Reconhece a minha assignatura o tabelião Motta, rua do Crucifixo, Lisboa".

Talvez Aquilino apenas tenha sido testemunha do registo de nascimento do filho de Manuel Buiça e não testemunha daquela estranha Declaração. Talvez o livro ontem lançado tenha cometido aí uma impresisão: Aquilino não terá testemunhado aquele Testamento, mas saberia das intenções do amigo?

No livro que comprei hoje encontro a descrição que Aquilino fizera do bisavó da autora daquele comentário: "Era isto tudo, galante, franco, liberal. corajoso, blasonador, incoerente muitas vezes, parlapatão mais de uma, sem equilíbrio na vida, sem disciplina moral, uma ou outra anomalia medrando a meio de sentimentos que, além de serem puros, pareciam dever ser inibitórios." (pp. 270 de "A Maçonaria e a Implantação da República"). Volto à leitura dos comentários àquele artigo do site "Vidas Alternativas" e encontro outro comentário que cita o que Aquilino Ribeiro escreveu na Seara Nova sobre o mesmo Manuel Buiça: "Porque é desnecessário demonstrá-lo, a República implantou-se no Terreiro do Paço naquela tarde trágica de Fevereiro; outros vêem sacudir as mãos na varanda de Pilatos” e mais adiante “Foi em 1906 que R* P* apresentou no Gelo Alfredo Luiz da Costa, esse rapaz de vinte e tal anos, alto, desengonçado de corpo, duma fisionomia séria, quase triste, a que ninguém ligou importância. Grandes olhos castanhos, lentos a mover-se, com uma fixidez por vezes de desvario, um dedo de barba loura no queixo, o nariz levemente amolgado sobre a esquerda. Provavelmente uma tuberculose descurada, que traiçoeiramente seguisse caminho, achatara-lhe o tórax aguçando-lhe os ombros e imprimindo-lhe já às costas uma quebratura perceptível.” e ainda mais “Buiça era frequentador do Café Gelo, esse café muito arrumado a meio do Rossio tumultuário, que, não obstante o berrante das fardas, conserva um ar todo plácido de botequim provincial. De corpo, era um homem de estatura meâ, rasta fino, tez branca, que mais realçava a barba preta com tons de fogo, na qual as suas mãos tinham o vício de passear-se, de embrenhar-se, quando a cólera o tomava ou ouvia alguém do seu agrado. A testa era longa, com as arcadas supraciliares marcadas sem de mais, as linhas fisionómicas duma delicadeza que, fora das mulheres, desagrada. A aparência, toda ela de franzino, mascarava-lhe inteiramente o génio assomadiço e a coragem que não era lenta nem jamais foi receosa a medir-se." Comentário assinado por António Carlos, publicado em 11 de Fevereiro de 2008. A quem se referiria Aquilino quando abreviava R. P.? Certamente a Raul Proença, seu Colega da Seara Nova e será que o Pilatos seria mais do que Pilatos, mas o próprio Fernando Grandela que assim se assinava enquanto Maçon?

O comentário de António Carlos continua para lançar uma hipótese: Aquilino teria que ter, pelo menos, presenciado o atentado do dia 1 de Fevereiro. Mais: tendo por diversas vezes sido referido que estariam presentes naquele local, com o mesmo intuito ou como parte do plano que visava a morte do Rei e do seu sucessor, mais três pessoas, uma delas poderia ser o próprio Aquilino. Termina o comentário descrevendo o que em seu entender foi determinante para a escolha de Manuel Buiça: "São escolhidos dentro de os Carbonários aqules que mais se adaptariam a estas funções. O Buiça é inevitável. Porquê? Porque tinha sido instrutor de tiro em Bragança chegando a 2º sargento, era senhor de uma pontaria que se revelou efectivamente extraordinária, e tinha preparação militar que o ajudaria a aperceber-se da melhor maneira de executar o plano. Não é por acaso que a melhor arma uma Winchester de repetição novinha em folha lhe foi distribuida. Veja que o Alfredo Costa dispara à queima roupa sobre o príncipe Luis Filipe mas este ainda consegue após isso desferir 3 a 4 tiros que matam o Alfredo Costa. O tiro fatal para o princípe será mais uma vez oriunda da Winchester de Buiça, que apesar de ser disparado a 8 m de distância lhe penetra no rosto e sai pela nuca. Aqui se vê a descrepância de material. ".

Volto a parar, volto a lembrar-me de todos os livros de Aquilino que devorei com 15 anos, lembro-me especialmente de um que se passava em Lisboa e se chamava Mônica, lembro-me do Manto de Nossa Senhora e da segunda página do livro assinada pelo Aquilino depois da dedicatória ao meu avô, o mesmo livro que ofereci a quem em Coimbra encenou o texto. Volto a parar. Tenho as imagens do Palácio de Vila Viçosa, as aguarelas, em especial as ementas - escritas em papel com desenhos de aguarelas de D. Carlos - para cada dia no Iate D. Amélia. Estou de novo no atelier do meu amigo Luís que fez a estátua ao Rei D. Carlos e que acompanhei a crescer durante o tempo em que estive a pintar em Estremoz. Tudo gira a uma velocidade que produz vertigem, a vertigem do tempo, a da incompreensão, a do que não faz sentido, mas parece não poder deixar de o fazer.

Mas há mais coisas na rede do Google, uma destas é um artigo publicado em 2007 no sítio da "Casa Real Portuguesa" e que revela mais detalhes da amizade do Aquilino com o outro executor do assassinato do Rei e deo seu Filho, Alfredo Luís Costa: «Entre os múltiplos biscates desta fase da sua vida, Aquilino é uma pena mercenária. Enfeudado à acção anarquista, dá-se a redigir, com nomes falsos, traduções de publicações intervencionistas e folhetins escandalosos. Ao que ele próprio dá a perceber em Um Escritor Confessa-se, colaborou com um publicista (que foi depois Ministro da República) num romance intitulado A Filha do Jardineiro, que, no género de O Marquês da Bacalhoa, difamava o Rei D. Carlos. Essa obra, de que saíram apenas três fascículos, editados e financiados por Alfredo Costa - o futuro regicida -, apareceu sob o pseudónimo de Miriel Mirra. Ao contrário do que dizem as biografias oficiosas, o primeiro livro de Aquilino não é Jardim das Tormentas, de 1913 mas sim A Filha do Jardineiro, de 1907. É também possível que Aquilino tenha ajudado a redigir O Marquês da Bacalhoa porque as obras seguintes de António de Albuquerque não têm o polimento literário desse livro escandaloso. Atrás dos folhetins subversivos surgem outros contactos, sendo iniciado na Carbonária e convidado para a Loja Montanha, após falar com o bibliotecário Luz de Almeida. Por detrás dos contactos, adivinham-se muitos conciliábulos e compromissos e, uma vez mais, a eterna “opinionite” da pequena burguesia, o complexo denunciado por Flaubert em Bouvard et Pécuchet. Aquilino, como escreveu Gomes Ferreira, sabe “mentir a verdade”.» O artigo todo está aqui.

O Artigo continua a traz mais revelações que adensam a história que para mim acabou de nascer com a leitura do "testamento" de Manuel Buiça:

"Segundo um agente duplo ao serviço dos juízes Veiga e Alves Ferreira, Aquilino Ribeiro foi visto no Largo do Corpo Santo, com um revólver, uns minutos antes do atentado, como fazendo parte de um grupo que se preparava para o assalto à carruagem com D. Carlos que por ali passaria a caminho das Necessidades, caso falhasse o atentado no Terreiro do Paço. Ao ser reconhecido por um polícia, fugiu. Segundo outras fontes, esteve no Terreiro do Paço com um revólver. Divagando por Lisboa após o regicídio foge em data incerta para Paris onde é acolhido pelos meios radicais. Sucedem-se as informações sobre o seu paradeiro; da Polícia Francesa e dos agentes portugueses em Paris; do ministro Sousa Rosa; do escrivão Abílio Magro. Mais do que uma vez o juiz do Juízo de Instrução Criminal solicita a D. Manuel II e ao Presidente do Conselho que se desloque um enviado a Paris para apurar de Aquilino Ribeiro quem são os regicidas. É a “brandura dos nosso costumes” a funcionar. Uma dessas diligências é efectuada a 13 Maio 1910, como consta da publicação oficial de 1915, Documentos Encontrados nos Paços Reais após o 5 de Outubro. O conhecimento internacional do envolvimento do Aquilino na chacina do Terreiro do Paço foi imediato. Raul Brandão, futuro seareiro ao lado de Aquilino, escreveu em Janeiro de 1909 (Memórias, I): «Um dos regicidas está em França, mas Clemenceau (primeiro-ministro francês, 1906-1909) recusa-se a extraditá-lo». De facto todos os interessados no caso sabiam do envolvimento de Aquilino no regicídio e foi essa “proeza” que o tornou um protegido das forças radicais europeias no poder, ou em vias de o adquirir. Nos seus exílios, Aquilino não experimentou dificuldades."

Bem sei que é o sítio de internet da "Casa Real", mas aquilo está bem escrito e parece apoiado numa memória que se terá perdido ou ficado entricheirada na solidão da Casa que já foi Real. Continuo a ler esse artigo e leio isto:

"Em 1927 após a revolta de 7 de Fevereiro, Aquilino exila-se em Paris. No fim do ano regressa a Portugal, clandestinamente e morre a primeira mulher. Em 1929 Aquilino Ribeiro casa com D. Jerónima Dantas Machado, filha de Bernardino Machado e em 1930 nasce o segundo filho, Aquilino Ribeiro Machado. Em 1931 vai viver para a Galiza mas a partir de 1932, já com 47 anos, permanece no país e recebe reconhecimento pelas suas obras literárias. Em 1960 é proposto para o Prémio Nobel da Literatura. Tendo a família de Sofia Mello Breyner, próxima do Paço documentação sobre o regicídio, a própria Sofia disse em comentário a um livro escrito por JMR que “o Aquilino esteve no Terreiro do Paço com um revólver e tal facto fora do conhecimento internacional mas a família Breyner decidiu não incluir essa informação no livro de memórias do avô… E depois rematou: - «Porque é que acha que nunca lhe deram o Nobel? Eles sabiam que ele participou no Regicídio e a sociedade não dá prémios Nobel a assassinos»

Bernardino Machado - o futuro sogro de Aquilino Ribeiro - que no dia 8 de Outubro de 1910, então o novo Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo Provisório, se despede do recém eleito presidente do Brasil, Marechal Hermes da Fonseca, que quatro dias antes fora recebido pelo então Rei D. Manuel II. a quem oferecera o jantar enquanto começava a revolução de 4 para 5 de Outubro.


Regresso à leitura do livro sobre a participação da Maçonaria na Implantação da República. Na parte reservada a Aquilino escreve-se: "Mil novecentos e sete é um ano agitado na vida nacional. É também um ano agitado para Aquilino: uma bomba artesanal explode no seu quarto, no momento em que dois amigos do escritor a manipulavam. Os dois têm morte imediata. Aquilino, que assistia à preparação, é preso e levado para a esquadra do Caminho Novo, de que se evade no dia 12 de Janeiro de 1908. Vive algum tempo de «clandestinidade», ali a cento e cinquenta metros do Ministério do Reino, numa casa da Rua Nova do Almada que Alfredo Costa lhe prepara. Em Maio, segue para Paris, indo tomar o Sud Express no Entroncamento com a sua valise e o "monóculo a armar ao janota".».

Paro de novo. 12 de Janeiro de 2008 é menos de quinze dias antes da ida ao Tabelião com o Manuel Buiça!. Alfredo Costa é o outro autor dos disparos contra o Rei e o Príncipe! Volto ao livro, leio que o processo aberto na sequência da morte do Rei desapareceu. Fecho tudo isto, estou a precisar de dormir e de acordar na manhã de 6 de Outubro.

1 comentário:

António Conceição disse...

Bem, julgo que é hoje pacífico que Aquilino, se não teve uma participação activa, teve conhecimento de todo o processo que conduziu ao regicídio.
Mas é um erro supor que o regicídio convinha apenas aos republicanos. Bem pelo contrário, os que se imaginavam os grandes beneficiários do regicídio eram os políticos tradicionais do rotativismo que abominavam João Franco e o seu governo de iniciativa régia (presidencial, como hoje se diria). O certo e sabido é que ninguém - absolutamente ninguém - manifestou grande interesse em investigar as circunstâncias em que ocorreu o regicídio e os seus actos preparatórios. Muito menos, em punir os seus agentes.