6.10.09

Ainda o "Testamento" de Manuel Buiça







Reprodução da Declaração de Manuel Buiça retirada daqui

Ontem, por esta hora, escrevia sobre o espanto que me causara a leitura da transcrição da Declaração de Manuel Buiça (autor dos disparos que a 1 de Fevereiro vitimaram o Rei D. Carlos e o seu filho e sucessor Príncipe D. Luís).
Recordando o que então escrevi - depois de ler a transcrição dessa Declaração, supostamente efectuada perante Tabelião quatro dias antes do dia do atentado, ou seja a 28 de Janeiro, estranhava:
a) Que o que ela tínha de anúncio da intenção de cometer um crime não fosse percebida pelo próprio oficial público que é o Tabelião;
b) Que Aquilino Ribeiro e outro tivessem tido intervenção como testemunhas da mesma declaração, associando-se como possível cumplice de forma infantil;
c) Que alguém produzisse antes dos factos e sem saber qual o seu desenlace, um documento que ficaria em poder de terceiros e que poderia constituir a prova provada da sua participação dos factos a acontecer, para além de poder desencadear a vigilância que comprometesse a viabilidade do plano.

Recordando o que então li e está escrito no livro "A Maçonaria e a Implantação da República" (pp. 229): "Recorde-se ainda que Manuel Buiça fizera testamento no dia 28 de Janeiro - «Apontamentos indispensáveis se eu morrer»: «Meus filhos ficam pobríssimos não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e a compaixão pelos que sofrem. Peço que os eduquem nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade que eu comungo e por causa dos quais ficarão, porventura em breve, orfãos."» Depois de transcrever essa parte da "Declaração" os autores do livro (Alfredo Caldeira e António Lopes) escreveram: "Serviram de testemunhas Aquilino Ribeiro, publicista, e Albano José Correia, empregado do comércio. O professor tinha dois filhos, Elvira, nascida em 1900, e Manuel, nascido e registado em 1907.".

Ontem e hoje andei um pouco às voltas com isto, fui desfiando os rumores da participação de Aquilino no atentado, fui encontrando quase sempre os mesmos argumentos e até um pedaço de documento atribuído ao espólio pessoal da Rainha D. Amélia, segundo o qual a esposa de um juiz de 1911 teria indicado àquela o nome de Aquilino como sendo um dos que aguardava no Largo do Corpo Santo pela eventualidade do insucesso da acção de Buiça e Alfredo Costa.

Porém a estranheza daquela Declaração continuava a sobrepor-se ao mundo novo de factos que começava a desenrolar-se a cada vez que puxava uma ponta do novelo.
Hoje, encontro cópia da Declaração em questão e da mesma resulta no essencial o seguinte:
a) Que Aquilino Ribeiro não foi testemunha (pelo menos oficial) da mesma e que só é referido no seu texto porquanto terá sido sim testemunha no registo civil do filho (Manuel) de Manuel Buiça;

b) Que a Declaração em questão não foi reconhecida (a letra e a assinatura de Manuel Buiça) pelo Tabelião no dia 28 de Janeiro de 1908 mas sim no dia 22 de Agosto desse mesmo ano, ou seja, mais de seis meses após a morte do próprio Buiça.

c) Que apesar da Declaração estar assinada com data de 28 de Janeiro de 1908 todos os seus selos, assim como a intervenção do próprio Tabelião Motta, tem a data de 22 de Agosto de 1908.
Com isto ficam afastadas todos os espantos da minha primeira estranheza que produziu uma sucessão de perguntas de que fui dando conta anteriormente e, assim, maçando como não consigo deixar de o fazer, quem teve a pachora de ir lendo o que para aqui fui deixando.
Dissipadas essas perguntas vêm agora outras:
a) Qual a razão deser daquela Declaração (qual o seu objectivo?).
Se o Manuel Buiça nada tem para deixar aos seus filhos, deixa-lhes um testamento de honra?. Um testamento em que regista a fórmula da carbonária e da maçonaria "Liberdade, igualdade, fraterninade" como razão de ser para o desaparecimento do pai?"

b) qual a razão para envolver no texto directamente Aquilino Ribeiro, a quem chama de "publicista" (qualificação que não é honrosa e que confirmaria os adjectivos que alguns lhe dispensaram como "pena mercenária" ao serviço da carbonária escrevendo três fascículos do seu primeiro romance - "A Filha do Jardineiro" - em jornal que pertencia ao outro regicida, Alfredo Costa, e através dos quais pretendia denegrir a imagem do Rei D. Carlos) no texto daquela Declaração.

c) Se - como li em vários lugares - Aquilino Ribeiro ficou depositário dessa carta - como explicar que a 22 de Agosto ela tenha sido reconhecida formalmente pelo Tabelião da Rua do Crucifixo. Quando nessa data Aquilino Ribeiro já estaria em Paris, "com o seu monóculo de janota"?

d) Por último se é certa a participação de Manuel Buiça numa intentona ocorrida precisamente a 28 de Janeiro de 1908 ("Intentona da Biblioteca") será que essa Declaração foi escrita visando a sua participação nessa acção e não no atentado de 1 de Fevereiro.?
Esta última hipótese parece ganhar todo o sentido se tivermos presente que foi a tentativa de golpe agendada para 28 de Janeiro (na sequência da prisão de diversos líderes republicanos, entre os quais João Chagas) que desencadeou o Decreto fatídico para o Rei D. Carlos, através do qual o Governo de João Franco reagiu à descoberta desse mesmo golpe, em consequência do qual se realizaram diversas prisões e diversas fugas. Manuel Buiça esteve envolvido nessa tentativa de golpe que visava, também, a eliminação de João Franco. Logo, o mais provável é que a Declaração (a ter sido escrita por Manuel Buiça) tivesse em vista os acontecimentos de 28 de Janeiro e tivesse mesmo já sido escrita quando se temia que o golpe não triunfasse. Faz mais sentido que no próprio dia do golpe Manuel Buiça tenha escrito o que escreveu do que relacionar essa Declaração com o que aconteceu quatro dias depois, a 1 de Fevereiro.
Quanto ao resto, nomeadamente, quanto à razão pela qual a carta acaba por ser reconhecida mais de seis meses depois pelo Tabelião Motta, teria de se apurar quem a conservou e porquê. Uma coisa parece provável: quem procedeu ao seu reconhecimento (seis meses depois da morte quer do Rei quer do autor da Declaração) pretendeu associar aquela aos acontecimentos de 1 de Fevereiro e, eventualmente, associar a estes o próprio Aquilino Ribeiro. Mas é só - mais uma vez - uma especulação. Por outro lado sabe-se que foi realizada uma subscrição pública a favor dos filhos de Manuel Buiça, podendo também ser essa a razão pela qual a carta foi reconhecida e dada a conhecer, tornada pública como o foi.

Reproduzo as fotografias da declaração, tal como está disponibilizada no site da Fundação Mário Soares.

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