6.6.17

De volta à manivela do mundo



Ouvi ontem este poema de Almada Negreiros (dito por Germana Tânger, que parece ser a voz de que vieram as palavras escritas):

Se me ponho a trabalhar
e escrevo ou desenho,
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar pra diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado,
até que cansado me julgo satisfeito;
e o efeito da fadiga
é muito igual à ilusão da satisfação!
Em troca, se vou passear por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito,
sinto-me tão chefe do que é fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos
de uma aflição que não é minha,
dou-me tão perfeitamente conta do que
se passa fora das minhas muralhas
como sou cego ao ler-me ao espelho,
que, sinceramente não sei qual
seja melhor,
se estar sozinho em casa a dar à manivela do mundo,
se ir por aí a ser o rei invisível de tudo o que não é meu.


Almada Negreiros, Escrito em 14 de Dezembro de 1941.

A sensação de irmandade, que antes me confundia e emocionava, ante as palavras do outro que me explicavam melhor que eu, regressa intacta enquanto ouço o poema.
A primeira vez foi com o Livro do Desassossego, minto, foi com os Cinco na Quinta Finniston a cada descrição do prazer dos lanches ou dos passeio de bicicleta. Depois, houve aquela frase de uma dessas estrelas que passam pela nossa vida, cadentes e luminosas, com a composição etérea e imprecisa das aparições, o pai do amigo Mário Canijo, Dr. Manuel Canijo, que explicava o sucesso de Fernando Pessoa na capacidade deste fazer sentir inteligente quem o lia, e o livrinho de Marcel Proust, chamado o Prazer da Leitura. Neste livrinho Proust contraria o anterior conferencista, um inflamado e aplaudido catedrático que declarara a leitura como o maior prazer humano, porquanto era a única actividade que permitia a cada um vencer as limitações do tempo e do espaço. Através da leitura, cada um podia privar com outros humanos de outras regiões e tempos, sem a limitação da língua, do lugar ou do tempo em que se encontrasse. A esta aparente evidência contrapôs Marcel Proust, que o Prazer da Leitura estava não no contacto com os outros, mas no acesso a nós próprios, o acesso a essa comunhão que vem da irmandade da condição humana.

A expressão "estar sozinho em casa a dar à manivela do mundo" é talvez o que melhor caracteriza o desconfrto que sinto na dúvida que sempre acompanha o tempo ausente, o apagamento do tempo, que sempre ocorre quando pinto, desenho ou escrevo.

Regresso ao Blog que deixei interromper pela pintura e pela vertiginosa compulsão que me deu a pintura desde que numa noite de Agosto de 2006, empurrado por estas palavras de Almada e por outras que depois destes anos de travessia apareceram aqui, escritas por quem tem um blog chamado "Mi Amiga Rosario". A Almada Negreiros devo a consciência da minha imperfeita finitude, ante a sua desassombrada e transparente clarividência, à desconhecida Ana Prado, devo o incentivo de aqui regressar e tentar mais uma vez encontrar palavras que não traiam.

I'm back!

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