A madrugada em Gondarém abre com um azul de cortina de grande palco. Fumo o cigarro à porta, espectador único. Desde que começou isto que o silêncio mudou, é agora abafado, perdeu a profundidade que tinha quando era fugaz. Agora faz sempre silêncio e os barulhos não são ruído mas sons de coisas que identificamos ou procuramos identificar. O silêncio que é uma cortina para o que se ouve em todas as casas, as notícias non stop da Sic Notícias ou da CMTV. É este o ruído de fundo que sabemos mas não ouvimos, como o Bolsonara sabe do protesto ruidoso enquanto fala num estúdio onde a percursão paneleira não chega. Fecho a porta e regresso ao canto onde espero por mim desde que decidi que ia de uma vez por todas ser capaz de contar a história que me trouxe até este lugar, até este momento.
Tento recuperar o acesso a este Blog que iniciei há dez anos. Consigo. Entro e leio a última coisa que escrevi para aqui, é prova desta espera de três anos que agora, finalmente, posso cumprir. Contar a história que me trouxe até aqui, até este momento casado com o lugar. Como se, finalmente, tudo se tivesse unido e feito aquele sentido que ilumina o passado de cada um, a vida.
Há 25 anos escrevi o princípio desta história, vivia então num dos lugares de que recordo o silêncio perdido das manhãs igualmente límpidas. O Vicente tinha acabado de nascer (a 25 do cinco de mil novecentos e noventa e cinco, às nove e vinte e cinco da manhã, no quarto 405 do Hospital da Cruz Vermelha, o que explicava que o meu Pai sempre o tivesse tratado por "Cinco"):
(Reproduzo o que aqui transcrevi na penúltima visita (em 2013):
(Caxias, 5 de Novembro de 1995)
Campo do Ligo
Havia um caminho, ao lado do rio, por onde ele gostava de ir
passear. Um dia foi busca-la, encontrou-a na copa a separar espargos e foi-lhe
mostrar esse caminho.
Levou-a muito devagar, ainda havia tempo até a hora do
jantar. Caminharam como gostavam de o fazer, encaixados, com o braço dela a
passar-lhe pelas costas e a mão dele no ombro dela, puxando-a para si.
Falavam muito pouco de si próprios. Falavam mesmo pouco
entre si, apenas o prático, o que era necessário falar sobre a organização da
casa, do cuidado dos filhos, do que cada um tinha de fazer em relação aos
assuntos comuns, ou do que ambos tinham de fazer.
Naquela tarde ele passara ele estivera a arrumar a tralha que
se amontoava numa das lojas junto à Adega. Encontrara algumas coisas que lhe
fizeram lembrar os dias em que chegara àquela casa, àquela aldeia pequenina, a
Gondarém.
Deixou as arrumações e saiu em direcção ao rio, para voltar
a percorrer o caminho. Foi no durante esse passeio que ele se lembrou que nunca
lho tinha mostrado, que nunca lhe tinha contado porque é que aquele caminho era
tão importante para ele. Os filhos já tinham cinco e três anos e agora
lembrava-se que nunca tinha contado à mulher que, com oito anos, depois do pai
lhe ter dito que tinha de ir estudar para a metrópole, encontrava todas as
forças nos passeios que fazia por aquele lugar. Foi então chamá-la, antes que
escurecesse, procurou-a como se lhe quisesse mostrar uma coisa que acabara de
descobrir. Quando a encontrou, na copa, disse-lhe:
Vem comigo que eu quero mostrar-te uma coisa:
Ela olhou-o, não disse nada, tirou o avental e deu-lhe o
braço. Foi com ele como ia todas as vezes em que havia uma novidade para ver.
Prosseguiu ao lado do marido por aqueles atalhos por onde já aprendeu a andar.
Tentou adivinhar pela direcção que tomavam, para onde e para ver o que ele a
estava a levar. Iam para o rio. É um barco, pensou. Ou uma nova leira. Como
sempre ela não perguntou nada e ele nada antecipou. Quando finalmente chegaram
à entrada de um pequeno carreiro de terra batida, ladeado de um dos lados com
altas espigas de milho e, do outro, por choupos que impediam a visão do rio que
se ouvia correr por trás. O caminho era comprido e ia estreitando-se na
perspectiva dos pés de milho e dos ramos emaranhados dos choupos.
Como ela era muito mais baixa que ele, não conseguia ver
nada para nenhum dos lados, só as ramadas dos choupos e as folhas do milho.
Pararam na entrada desse caminho e ele disse-lhe então:
Quando vim de Angola para aqui, depois dos trabalhos de casa, ou depois da
escola, corria por este caminho fora vezes sem conta. Ia e vinha, ia e vinha,
quanto mais depressa corresse e maior deslocação do ar provocasse, mais o ar
cheirava ao mesmo que cheirava em Africa.
A meio da corrida fechava os olhos e continuava a correr,
orientando-me pelo ruído ou pelo toque dos pés de milho ou das folhas dos
choupos. De olhos fechados corria e pensava que estava de novo a voltar para
Angola, para junto do meu pai. O cheiro, quando o situava com precisão
permitia-me fingir que estava muito perto, que era uma questão de metros,
corria mais, chegava ao fim do caminho e voltava outra vez para trás, até que
já não conseguia mais correr. No principio atirava-me para o chão e chorava,
não importa a posição em que tivesse caído. Depois, deixei de chorar e passei a
sentar-me numa pequena enseada que há a meio do caminho, ali, a olhar para a
água, a olhar para a ilha e a pensar na
distância que me separava de Angola e do meu pai.
Continuaram a andar pelo carreiro. Ela experimentou inalar
discretamente o ar daquele lugar, que lhe parecia ter o mesmo cheiro de todos
os milheirais, cortado apenas pelo aroma frio do rio.É exactamente aqui, neste momento que pode começar a história que tenho de contar.
Neste momento escrevo do lugar de onde saíram os meus avós para esse passeio imaginário. O cenário que se abriu há momentos tem ao centro o caminho que eles fizeram, o qual, em linha recta vai dar ao Campo do Arinho, ao Rio Minho e à Ilha dos Amores. Toda a minha vida foi orientada para este momento. Todos os meus passos tinham este norte como bússola inconsciente, magnética Santa Tecla, como eixo de um formidável carrossel.
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