23.11.09

"A Vida Segue nas Páginas em Branco" [Picalima]


Picalima

Estremoz, Outono de 2008. Sala com lareira que no pico desta era mais lareira com sala. O efeito da lareira nas conversas diante era o mesmo dos reflexos que produzia na parte mais côncava dos balões por onde bebíamos o Cognac. Instantâneos de mais luz com cada crepitar vindo do azinho que estala e parece fazê-lo feliz, graciosamente, enquanto se consome na alegria de abreviar o processo que vai até às cinzas.

À minha frente está o Picalima. Conheci-o há uns meses enquanto desenhava no Atéjazz, que durante a minha estada em Estremoz foi para mim o abrigo que devem ser alguns bares dos portos mais desabrigados.

A figura do Picalima situa-se no final do século XIX e é uma daquelas caras que nessa época tornavam quasi iguais os mais ferozes republicanos portugueses aos mais brandos anarquistas russos. A sua fotografiam (que reproduzo em cima) pode completar o que gostava de transmitir.

Passo-lhe o último dos blocos Moleskine em que trabalhava ("O Carrossel"). Estava quase no final, faltariam dois desenhos para terminá-lo e o último só tinha o esqueleto de umas asas caídas (desenhadas a partir das esculturas do meu mais amigo de todos, Gonçalo Jardim).

O Picalima acaba de o ver e segurando-o como os padres seguram no prato que contém as óstias, com as pontas do dedo, como se fosse uma bandeja cheia de coisas frágeis e não quisesse deixar nela mais impressões que as digitais das pontas das cinco falanges que o equilibram, devolve-me o bloco, dizendo: é uma jóia.

De todas as pessoas que conheci por causa dos desenhos foi aquela que mais sinceramente disse gostar deles.

No final da noite pediu-me de novo o bloco e a autorização para escrever na antepenúltima das páginas por desenhar. O Picalima escreveu um dos livros com os contos mais bonitos que li. Ofereceu-me depois de lhe ter dado um desenho, na mesma noite em que voltei para o Monte com um queijo, uma garrafa de vinho e o seu livro, tudo ganho em troca directa, o que me fez pensar na hipótese de poder sobreviver assim em Estremoz. Pensei isso enquanto regressava de bicicleta ao Monte ("Amor aos Montes") e pensava que não precisava de trocar desenho nenhum para a gasolina. O livro chama-se "Atropelado Pela Vida" e só pode ser encontrado na Biblioteca Nacional e na de Coimbra.

Se fosse uma criança a pedir-me para desenhar no bloco, teria deixado; se fosse alguém a entornar um café no bloco, teria aproveitado; com a hipótese de ter qualquer coisa do Picalima no bloco, fiquei encantado.

Com o mesmo cuidado de há pouco, folheando as páginas como se fossem asas de borboletas a que não queria tirar o pó, lá chegou à antepenúltima página e escreveu: "A vida continua nas páginas em branco". De facto continuou, assim como em branco continuaram as páginas seguintes àquela em que escreveu.

Nunca mais vi o Picalima e hoje lembrei-me tanto dele por causa disto.

5 comentários:

ana disse...

que delicia. tudo toma outro significado quando se conhece, quando se entende

L.C. disse...

Gostaria de poder utilizar algumas das suas ilustrações num livro que vou publicar. Pode enviar-me um e-mail para conversarmos? Aguardo a sua resposta. Obrigada.

Luísa

Tiago Taron disse...

Paula. Às vezes o significado que se altera quando se conhece torna as coisas menos interessantes, desde a descoberta da não existência do Pai Natal que tenho coleccionado algumas decepções desse tipo de vitórias da realidade sobre o sonho.

Tiago Taron disse...

Luísa, o meu e-mail está (ou julgo que esteja) no perfil, de qualquer modo é: tiago.taron@mail.telepac.pt
Terei todo o gosto em falar consigo sobre essa possibilidade e só o facto de ter pensado nela já é gratificante.

ana disse...

são pontos de vista Tiago. eu dou-me mal com o imaginário. eu sei que alimenta a criatividade, mas para mim, é pantanal, é nevoeiro, são claras em castelo.
e depois, é tão incontrolável, a imaginação, derrapante.
gostei de conhecer o Picalima