Picalima
Estremoz, Outono de 2008. Sala com lareira que no pico desta era mais lareira com sala. O efeito da lareira nas conversas diante era o mesmo dos reflexos que produzia na parte mais côncava dos balões por onde bebíamos o Cognac. Instantâneos de mais luz com cada crepitar vindo do azinho que estala e parece fazê-lo feliz, graciosamente, enquanto se consome na alegria de abreviar o processo que vai até às cinzas.
À minha frente está o Picalima. Conheci-o há uns meses enquanto desenhava no Atéjazz, que durante a minha estada em Estremoz foi para mim o abrigo que devem ser alguns bares dos portos mais desabrigados.
A figura do Picalima situa-se no final do século XIX e é uma daquelas caras que nessa época tornavam quasi iguais os mais ferozes republicanos portugueses aos mais brandos anarquistas russos. A sua fotografiam (que reproduzo em cima) pode completar o que gostava de transmitir.
Passo-lhe o último dos blocos Moleskine em que trabalhava ("O Carrossel"). Estava quase no final, faltariam dois desenhos para terminá-lo e o último só tinha o esqueleto de umas asas caídas (desenhadas a partir das esculturas do meu mais amigo de todos, Gonçalo Jardim).
O Picalima acaba de o ver e segurando-o como os padres seguram no prato que contém as óstias, com as pontas do dedo, como se fosse uma bandeja cheia de coisas frágeis e não quisesse deixar nela mais impressões que as digitais das pontas das cinco falanges que o equilibram, devolve-me o bloco, dizendo: é uma jóia.
De todas as pessoas que conheci por causa dos desenhos foi aquela que mais sinceramente disse gostar deles.
No final da noite pediu-me de novo o bloco e a autorização para escrever na antepenúltima das páginas por desenhar. O Picalima escreveu um dos livros com os contos mais bonitos que li. Ofereceu-me depois de lhe ter dado um desenho, na mesma noite em que voltei para o Monte com um queijo, uma garrafa de vinho e o seu livro, tudo ganho em troca directa, o que me fez pensar na hipótese de poder sobreviver assim em Estremoz. Pensei isso enquanto regressava de bicicleta ao Monte ("Amor aos Montes") e pensava que não precisava de trocar desenho nenhum para a gasolina. O livro chama-se "Atropelado Pela Vida" e só pode ser encontrado na Biblioteca Nacional e na de Coimbra.
Se fosse uma criança a pedir-me para desenhar no bloco, teria deixado; se fosse alguém a entornar um café no bloco, teria aproveitado; com a hipótese de ter qualquer coisa do Picalima no bloco, fiquei encantado.
Com o mesmo cuidado de há pouco, folheando as páginas como se fossem asas de borboletas a que não queria tirar o pó, lá chegou à antepenúltima página e escreveu: "A vida continua nas páginas em branco". De facto continuou, assim como em branco continuaram as páginas seguintes àquela em que escreveu.
Nunca mais vi o Picalima e hoje lembrei-me tanto dele por causa disto.
5 comentários:
que delicia. tudo toma outro significado quando se conhece, quando se entende
Gostaria de poder utilizar algumas das suas ilustrações num livro que vou publicar. Pode enviar-me um e-mail para conversarmos? Aguardo a sua resposta. Obrigada.
Luísa
Paula. Às vezes o significado que se altera quando se conhece torna as coisas menos interessantes, desde a descoberta da não existência do Pai Natal que tenho coleccionado algumas decepções desse tipo de vitórias da realidade sobre o sonho.
Luísa, o meu e-mail está (ou julgo que esteja) no perfil, de qualquer modo é: tiago.taron@mail.telepac.pt
Terei todo o gosto em falar consigo sobre essa possibilidade e só o facto de ter pensado nela já é gratificante.
são pontos de vista Tiago. eu dou-me mal com o imaginário. eu sei que alimenta a criatividade, mas para mim, é pantanal, é nevoeiro, são claras em castelo.
e depois, é tão incontrolável, a imaginação, derrapante.
gostei de conhecer o Picalima
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